Thursday, February 22, 2018

APROXIMANDO-SE DE "A FERA NA SELVA" (por Flávio Viegas Amoreira)



No primeiro domingo pós-folia uma experiência preciosa: assistir uma delicadíssima adaptação de Henry James e seu universo para o teatro no Brasil! Quão dissociado o palco e a literatura não fossem irmãos siameses. E a “Fera Na Selva”, que vi no sempre charmoso Centro Cultural São Paulo. É um feito ainda mais ambicioso por transpor à cena a obra dum autor denso e não tão dramatúrgico quanto Henry James. Mestre do romance e virtuoso contista, James foi alçado à categoria de gênio na tessitura estilística e rigor narrativo alçando status de teórico involuntário do distanciamento ficcional,  do discurso indireto e elaborador de personagens com ares de dissecação.



Senhor de perspectiva personalíssima, deve ser considerado altura das “catedrais literárias”, como Proust e Faulkner, ampliando escopo da literatura até um projeto artístico maior de retrato da condição humana pela técnica mais apurada possível. Nos dava uma trama como deleite sem descuidar da ourivesaria. Encantador e artesão, James foi ao lado de Flaubert um grande profeta das novas possibilidades e responsabilidades da literatura no período de maior inovação tecnológica da humanidade. O fim do século XIX com advento da fotografia, do cinema, do telefone e irrupção do niilismo, de Nietzsche e da psicanálise, foram campo fértil para essa empreitada de saber contar e refletir para quem contar as grandes estórias. Ministrando oficinas literárias para atores, fascinado pela comunhão da grande tradição literária com o teatro outra vez, utilizando-me dos conceitos de James para romance e conto, imagine minha curiosidade por essa empreitada que foi direção e concepção de Malú Bazán.



Com necessário minimalismo de elementos cênicos, iluminação e sons protagonistas sutis e magistral adequação do conto e aspectos biográficos, o espetáculo sintomaticamente foi o link perfeito da dialogação “jamesiana” com interpretação impecáveis de Gabriel  Miziara e Helô Cintra Castilho. Sem cair no didatismo a peça enfeixa trechos relevantes do conto que a intitula, aspectos relevantes da trajetória de Henry James e de sua amizade com a escritora Constance Fenimore Woolson que de certa maneira mimetiza a essência dessa novela  cada vez mais valorizada.  “A Fera Na Selva” é da mesma família estética de “Bartebly” de Melville ou de “Missa do Galo” de nosso Machado. Toda ela atmosfera, evasiva, eloqüente, reticência contundente, tudo para expressar o drama da incomunicabilidade, a intransferibilidade de sentimentos e a condenação moderna a profunda solitude. James anuncia aí já rumos de Tchekhov e Pirandello. Tudo é matiz, sugestão e convergência de emocionalidades entrecortadas de despedida. A segura dramaturgia de Marina Corazza elabora eficiente convergência: musica de câmara para nossos ouvidos tão desacostumados da poeticidade intrínseca ao impressionismo e sua intimidade com o detalhe. Nítida influência ou mesmo pesquisa no já clássico romance biográfico “O mestre” do admirável Colm Tóbin, com delicadas referências a homoafetividade de James e decorrente abortado afair com Constance.  Essa companhia é bem capaz de nos dar outras adaptações na mesma escala e virtuosismo a partir de escritores que tiveram dificuldade com experiência teatral ou nem tentaram por imperícia noutro suporte que não o livro. Quem sabe um dia Clarice, Cortázar ou Borges?  Teatro de palavra, texto, locução direta e densa, desnudamento através das entrelinhas, esmero na dicção no transporte do espírito.



Na atualidade em que leio mega-produção-fake-broadway de “A Noviça Rebelde”, com atores globais e patrocínio de leis de incentivo -- que alento saber que o melhor da resistência se faz no subsolo desses tempos rasos.  Até 18 de março no CCSP, uma verdadeira masterclass de teatro e alta literatura de quinta a domingo!  Detalhe: a peça denomina-se com riqueza semiológica de “Aproximando-se de A Fera Na Selva”.  Extrema destreza nesse “work in progress” onde nada escapa e tudo nos provoca, pensar sobre alma humana e seu caleidoscópico itinerário. Afinal para quem escrever, por que atuar, onde as perguntas certeiras para nosso absurdo na busca e interação com outro. Que exercício de arte! Recomendo....


Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).

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