Saturday, February 24, 2018

JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 5ª de 16 partes)



CAPÍTULO VIII

Não era exatamente uma reprodução exata do e-mail que Jeremias lhe enviara alguns dias antes. A linguagem original era truncada, volta e meia havia frases soltas, expressões em inglês (várias delas escritas de forma incorreta) e algumas palavras num dialeto semelhante ao castelhano que Jeremias parecia ter inventado para se expressar sempre que não encontrava as palavras que queria.

Havia, no entanto, uma certa coerência naquele fragmento de história que ele tentava contar. Ou seja, Jeremias conseguia, pelo menos, passar a idéia do que queria dizer. Talvez por isso João tenha decidido perder um tempo considerável tentando dar um pouco mais de fluidez e ritmo ao texto que Jeremias mandara. Só depois de terminar de mexer no texto, percebeu que, embora houvesse decidido no dia anterior não pensar mais em Jeremias nem na sua história maluca, ele estava justamente começando a fazer o que Jeremias queria: começara a escrever a história que Jeremias achava tão importante contar.loucura1

Nos tempos em que andavam sempre juntos, Jeremias parecia ter um poder irresistível de envolver as pessoas próximas em sua loucura particular, e João era sem dúvida uma das suas principais vítimas. Tanto que, quando se separaram, João passou muito tempo tentando distinguir as coisas das quais realmente gostava e nas quais realmente acreditava das coisas que pensava gostar e acreditar apenas porque Jeremias dizia que gostava e acreditava. Ao pensar nisso, sentiu um leve arrepio. Talvez Jeremias estivesse fazendo de novo. Talvez, mesmo à distância, estivesse exercendo seu poder de enlouquecer João com essa história de lhe pedir para escrever uma história que ele não sabia qual era, como começava, nem como iria terminar.selo b

E, por falar nisso, João se indagou se seria aquele primeiro e-mail o início da tal história ou Jeremias havia simplesmente sentado num computador qualquer, talvez numa lan house suja e escondida, bem ao seu estilo, aliás, e escrito e mandado a primeira coisa que lhe veio à cabeça. Não seria surpresa. Aliás, nada em se tratando de Jeremias era surpresa. Nunca tinha sido no passado, e não seria agora.

Nos dois ou três dias que se seguiram, embora João estivesse ocupado com a revisão de alguns textos que precisava entregar até o final do mês, ele checava com freqüência sua caixa postal, com um misto de expectativa e medo em relação à chegada de uma nova mensagem de Jeremias. Na verdade, percebeu que, por mais incrível que parecesse, a possibilidade de Jeremias não dar mais sinal de vida o deixava bem mais apreensivo do que a hipótese de Jeremias levar adiante aquela idéia maluca de contar a tal história.

Passaram-se vários dias e Jeremias não deu qualquer sinal de vida.

Finalmente, ele acordou numa madrugada e, como um sonâmbulo, foi até o computador e escreveu uma mensagem para Jeremias: “E aí? Vai mandar mais ou já mudou de idéia sobre contar a tal história? Outra coisa: aquele negócio que você me mandou é o começo da história ou pode ser colocado em qualquer lugar na seqüência do texto? Mais uma coisinha: a história vai ser só sobre trepadas ou a gente pode esperar algo mais, digamos, abrangente?”

 Não havia o mínimo sentido naquilo, mas, quando Carlos disse “É só pra gente sentir a sensação”, Jeremias achou que era uma ótima idéia. Então eles combinaram de comprar uma quantidade razoável de cocaína. Recuperariam o dinheiro investido vendendo para os amigos e o “lucro” ficaria por conta da poeira de graça que poderiam consumir com as “sobras”.

Afinal, era “só pra sentir a sensação” de ter uma grande quantidade nas mãos.

Ter uma grande quantidade nas mãos era realmente uma sensação diferente. Não havia aquele tão conhecido medo de que a coisa acabasse de uma hora para outra e fosse preciso sair em expedição pela cidade para um reabastecimento de emergência, em geral, com mercadoria de péssima qualidade. 9334

Era só ficar “lá dentro”, cheirando e cheirando e cheirando, até não ter mais vontade. E quando a vontade voltasse, era só cheirar, cheirar e cheirar outra vez, até a vontade passar de novo.

A única coisa que não permitia que esse nirvana branco fosse completo eram as batidas na porta que Jeremias e Carlos volta e meia ouviam. Como imaginavam que deviam ser as pessoas a quem haviam anunciado que tinham poeira de boa qualidade e barata, simplesmente fingiam que não havia ninguém em casa, até que as batidas na porta cessavam. Então voltavam a cheirar em paz.

Foi depois de uma dessas interrupções que Jeremias, após recomeçar a cheiração, percebeu que já anoitecera e ligou a luz da sala. Ao olhar para Carlos, viu que seu rosto estava cheio de marcas roxas de diversos tamanhos e formatos.

– Ou essa cocaína é alucinógena ou você tá com a cara toda manchada, disse Jeremias.overdose9pt

Carlos correu para o banheiro e Jeremias ouvi-o gritando: “Caralho, eu tô todo pintado. Que porra é essa?”

A porra era um princípio de overdose, pelo menos foi isso que o médico disse, após prestar um atendimento de emergência a Carlos, que já chegou ao pronto-socorro quase não conseguindo respirar.

O problema foi que o médico não disse só que era overdose de cocaína. Ele disse também que ia chamar a polícia para fazer um boletim de ocorrência.

– Foi um atendimento de urgência motivado pelo uso excessivo de uma substância ilegal, afirmou o médico, como se Jeremias e Carlos não estivessem carecas de saber os motivos que os levaram àquela merda toda.

Convencer o médico a não meter a polícia no meio não foi fácil, mas finalmente eles conseguiram sair do PS. Sem algemas.

– E aí, vamos voltar lá pra casa?, perguntou Carlos.

 

CAPÍTULO IX

Não fazia ideia se aquele segundo e-mail de Jeremias havia sido enviado antes ou depois de ele ter lido a mensagem que João lhe mandara, se é que Jeremias se preocupava em ler as mensagens que chegavam à sua caixa postal.

Dessa vez, Jeremias não havia escrito a respeito de trepadas, mas também não tinha dado qualquer indicação sobre se aquele novo texto obedecia a alguma seqüência de como a tal história deveria ser contada. Resumindo, era bem provável que Jeremias não houvesse lido a mensagem que João lhe enviara, e se o fizera, não tinha dado a mínima atenção ao que João escrevera.

Contudo, o que mais surpreendeu João nesse segundo e-mail foi a coerência e a fluidez do texto. Não havia absolutamente nada que lembrasse a linguagem truncada e confusa da mensagem anterior. Tanto as expressões em inglês quanto as do estranho dialeto castelhano-alienígena haviam sumido. Por isso, João praticamente transcreveu o que Jeremias havia escrito, limitando-se a acrescentar e suprimir alguma pontuação e alguns parágrafos. As diferenças eram tão grandes que a primeira e a segunda mensagem pareciam ter sido escritas por duas pessoas totalmente diferentes. selo 3

Esse pensamento, João não sabia bem por que, lhe provocou um calafrio, que começou na base da espinha e explodiu bem no alto da sua cabeça.

Decidiu então não tentar mais qualquer tipo de comunicação com Jeremias, até porque estava ficando claro que isso era inútil. Apenas aguardaria que Jeremias desse sinal de vida. Passaram-se alguns dias sem que nenhuma mensagem chegasse à caixa postal de João. Por isso, ele começou a considerar a possibilidade de que Jeremias simplesmente tivesse resolvido abandonar o seu projeto maluco de contar a tal história. A hipótese perturbou João, e ele ficou ainda mais perturbado ao perceber o quanto aquilo o incomodava. Afinal, desde o início, vinha considerando uma espécie de pesadelo aquela coisa toda de Jeremias haver entrado em contato depois de tantos anos, e ainda por cima para pedir que o ajudasse a contar uma história qualquer que ele acreditava importante ser contada. Era uma espécie de pesadelo do qual, de uma hora para a outra, João esperava simplesmente acordar.

Mas agora ele se preocupava com a possibilidade de Jeremias não me enviar mais nenhum e-mail com a continuação da tal história. Merda, esses sentimentos contraditórios não faziam o mínimo sentido.

Talvez por isso, logo em seguida, uma ideia totalmente absurda, mas irresistível, passou pela cabeça de João. E se tudo, absolutamente tudo, desde o começo, não passasse de uma alucinação, de um delírio seu. paranoia

Talvez Jeremias não tivesse enviado nenhuma mensagem e João tivesse imaginado tudo aquilo, os dois pequenos fragmentos de textos em cima dos quais ele trabalhara, a linguagem truncada e as expressões erradas e estranhas do primeiro e-mail, a narrativa fluente e clara do segundo, enfim, tudo, tudo não passaria de um grande delírio.

Assim, as duas narrativas, a que começava com a trepada com uma tal de Mô e a que contava uma passagem de dois sujeitos cheirando cocaína num apartamento, seriam também, é lógico, fruto da imaginação de João, e não um relato de situações teoricamente vividas por Jeremias.

Embora essa hipótese fosse, como o próprio João admitia, absurda, ele ficou realmente preocupado. Então foi procurar na sua caixa postal os três e-mails que Jeremias havia mandado ou que ele imaginava que Jeremias havia mandado. Só aí se lembrou de que, um dia antes, tentando inutilmente localizar uma mensagem antiga com orientações sobre um pedido de trabalho de condensação de um texto, ficara tão puto com a busca frustrada, devido à grande quantidade de lixo acumulada no seu correio eletrônico, que, sem querer, deletara todos os e-mails arquivados.

Ou seja, agora não havia como, naquele momento, comprovar se Jeremias havia mesmo mandado os e-mails ou se ele estava no meio de um surto violento, daqueles que já enfrentara tantas vezes no passado, mas que, nos últimos tempos, nunca mais tinham se repetido, a ponto de João achar que estava totalmente “curado”.

Percebeu que precisava urgentemente se acalmar e o jeito foi convencer-se de que as mensagens de Jeremias eram mesmo reais e que o delírio, na verdade, havia se insinuado quando começara a cogitar a hipótese de que estivesse delirando. O delírio era achar que estava delirando. Simples assim! E isso o acalmou.

Contudo, outro pensamento inquietante veio à cabeça de João: se ele já sabia que lidar com Jeremias, mesmo à distância, sempre envolvia certo risco de enlouquecer, por que diabos tinha deixado que Jeremias o arrastasse para aquela piração estúpida de contar uma história que só Jeremias parecia conhecer e ter necessidade de contar?

A cabeça de João começou a latejar. Precisava de ar fresco. Abriu a janela e respirou o mais fundo que pôde. Ficou tonto e quase desmaiou. Depois abriu a porta e saiu.




JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)

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