CAPÍTULO
VIII
Não
era exatamente uma reprodução exata do e-mail que Jeremias lhe enviara alguns
dias antes. A linguagem original era truncada, volta e meia havia frases
soltas, expressões em inglês (várias delas escritas de forma incorreta) e
algumas palavras num dialeto semelhante ao castelhano que Jeremias parecia ter
inventado para se expressar sempre que não encontrava as palavras que queria.
Havia,
no entanto, uma certa coerência naquele fragmento de história que ele tentava
contar. Ou seja, Jeremias conseguia, pelo menos, passar a idéia do que queria
dizer. Talvez por isso João tenha decidido perder um tempo considerável
tentando dar um pouco mais de fluidez e ritmo ao texto que Jeremias mandara. Só
depois de terminar de mexer no texto, percebeu que, embora houvesse decidido no
dia anterior não pensar mais em Jeremias nem na sua história maluca, ele estava
justamente começando a fazer o que Jeremias queria: começara a escrever a
história que Jeremias achava tão importante contar.loucura1
Nos
tempos em que andavam sempre juntos, Jeremias parecia ter um poder irresistível
de envolver as pessoas próximas em sua loucura particular, e João era sem dúvida
uma das suas principais vítimas. Tanto que, quando se separaram, João passou
muito tempo tentando distinguir as coisas das quais realmente gostava e nas
quais realmente acreditava das coisas que pensava gostar e acreditar apenas
porque Jeremias dizia que gostava e acreditava. Ao pensar nisso, sentiu um leve
arrepio. Talvez Jeremias estivesse fazendo de novo. Talvez, mesmo à distância,
estivesse exercendo seu poder de enlouquecer João com essa história de lhe
pedir para escrever uma história que ele não sabia qual era, como começava, nem
como iria terminar.selo b
E,
por falar nisso, João se indagou se seria aquele primeiro e-mail o início da
tal história ou Jeremias havia simplesmente sentado num computador qualquer,
talvez numa lan house suja e escondida, bem ao seu estilo, aliás, e escrito e
mandado a primeira coisa que lhe veio à cabeça. Não seria surpresa. Aliás, nada
em se tratando de Jeremias era surpresa. Nunca tinha sido no passado, e não
seria agora.
Nos
dois ou três dias que se seguiram, embora João estivesse ocupado com a revisão
de alguns textos que precisava entregar até o final do mês, ele checava com
freqüência sua caixa postal, com um misto de expectativa e medo em relação à
chegada de uma nova mensagem de Jeremias. Na verdade, percebeu que, por mais
incrível que parecesse, a possibilidade de Jeremias não dar mais sinal de vida
o deixava bem mais apreensivo do que a hipótese de Jeremias levar adiante
aquela idéia maluca de contar a tal história.
Passaram-se
vários dias e Jeremias não deu qualquer sinal de vida.
Finalmente,
ele acordou numa madrugada e, como um sonâmbulo, foi até o computador e
escreveu uma mensagem para Jeremias: “E aí? Vai mandar mais ou já mudou de
idéia sobre contar a tal história? Outra coisa: aquele negócio que você me
mandou é o começo da história ou pode ser colocado em qualquer lugar na
seqüência do texto? Mais uma coisinha: a história vai ser só sobre trepadas ou
a gente pode esperar algo mais, digamos, abrangente?”
Afinal,
era “só pra sentir a sensação” de ter uma grande quantidade nas mãos.
Ter
uma grande quantidade nas mãos era realmente uma sensação diferente. Não havia
aquele tão conhecido medo de que a coisa acabasse de uma hora para outra e
fosse preciso sair em expedição pela cidade para um reabastecimento de
emergência, em geral, com mercadoria de péssima qualidade. 9334
Era
só ficar “lá dentro”, cheirando e cheirando e cheirando, até não ter mais vontade.
E quando a vontade voltasse, era só cheirar, cheirar e cheirar outra vez, até a
vontade passar de novo.
A
única coisa que não permitia que esse nirvana branco fosse completo eram as
batidas na porta que Jeremias e Carlos volta e meia ouviam. Como imaginavam que
deviam ser as pessoas a quem haviam anunciado que tinham poeira de boa
qualidade e barata, simplesmente fingiam que não havia ninguém em casa, até que
as batidas na porta cessavam. Então voltavam a cheirar em paz.
Foi
depois de uma dessas interrupções que Jeremias, após recomeçar a cheiração,
percebeu que já anoitecera e ligou a luz da sala. Ao olhar para Carlos, viu que
seu rosto estava cheio de marcas roxas de diversos tamanhos e formatos.
–
Ou essa cocaína é alucinógena ou você tá com a cara toda manchada, disse
Jeremias.overdose9pt
Carlos
correu para o banheiro e Jeremias ouvi-o gritando: “Caralho, eu tô todo
pintado. Que porra é essa?”
A
porra era um princípio de overdose, pelo menos foi isso que o médico disse,
após prestar um atendimento de emergência a Carlos, que já chegou ao
pronto-socorro quase não conseguindo respirar.
O
problema foi que o médico não disse só que era overdose de cocaína. Ele disse
também que ia chamar a polícia para fazer um boletim de ocorrência.
–
Foi um atendimento de urgência motivado pelo uso excessivo de uma substância
ilegal, afirmou o médico, como se Jeremias e Carlos não estivessem carecas de
saber os motivos que os levaram àquela merda toda.
Convencer
o médico a não meter a polícia no meio não foi fácil, mas finalmente eles
conseguiram sair do PS. Sem algemas.
–
E aí, vamos voltar lá pra casa?, perguntou Carlos.
CAPÍTULO
IX
Não
fazia ideia se aquele segundo e-mail de Jeremias havia sido enviado antes ou
depois de ele ter lido a mensagem que João lhe mandara, se é que Jeremias se
preocupava em ler as mensagens que chegavam à sua caixa postal.
Dessa
vez, Jeremias não havia escrito a respeito de trepadas, mas também não tinha
dado qualquer indicação sobre se aquele novo texto obedecia a alguma seqüência
de como a tal história deveria ser contada. Resumindo, era bem provável que
Jeremias não houvesse lido a mensagem que João lhe enviara, e se o fizera, não
tinha dado a mínima atenção ao que João escrevera.
Contudo,
o que mais surpreendeu João nesse segundo e-mail foi a coerência e a fluidez do
texto. Não havia absolutamente nada que lembrasse a linguagem truncada e
confusa da mensagem anterior. Tanto as expressões em inglês quanto as do
estranho dialeto castelhano-alienígena haviam sumido. Por isso, João
praticamente transcreveu o que Jeremias havia escrito, limitando-se a
acrescentar e suprimir alguma pontuação e alguns parágrafos. As diferenças eram
tão grandes que a primeira e a segunda mensagem pareciam ter sido escritas por
duas pessoas totalmente diferentes. selo 3
Esse
pensamento, João não sabia bem por que, lhe provocou um calafrio, que começou
na base da espinha e explodiu bem no alto da sua cabeça.
Decidiu
então não tentar mais qualquer tipo de comunicação com Jeremias, até porque
estava ficando claro que isso era inútil. Apenas aguardaria que Jeremias desse
sinal de vida. Passaram-se alguns dias sem que nenhuma mensagem chegasse à
caixa postal de João. Por isso, ele começou a considerar a possibilidade de que
Jeremias simplesmente tivesse resolvido abandonar o seu projeto maluco de
contar a tal história. A hipótese perturbou João, e ele ficou ainda mais
perturbado ao perceber o quanto aquilo o incomodava. Afinal, desde o início,
vinha considerando uma espécie de pesadelo aquela coisa toda de Jeremias haver
entrado em contato depois de tantos anos, e ainda por cima para pedir que o
ajudasse a contar uma história qualquer que ele acreditava importante ser
contada. Era uma espécie de pesadelo do qual, de uma hora para a outra, João
esperava simplesmente acordar.
Mas
agora ele se preocupava com a possibilidade de Jeremias não me enviar mais
nenhum e-mail com a continuação da tal história. Merda, esses sentimentos
contraditórios não faziam o mínimo sentido.
Talvez
por isso, logo em seguida, uma ideia totalmente absurda, mas irresistível,
passou pela cabeça de João. E se tudo, absolutamente tudo, desde o começo, não
passasse de uma alucinação, de um delírio seu. paranoia
Talvez
Jeremias não tivesse enviado nenhuma mensagem e João tivesse imaginado tudo
aquilo, os dois pequenos fragmentos de textos em cima dos quais ele trabalhara,
a linguagem truncada e as expressões erradas e estranhas do primeiro e-mail, a
narrativa fluente e clara do segundo, enfim, tudo, tudo não passaria de um
grande delírio.
Assim,
as duas narrativas, a que começava com a trepada com uma tal de Mô e a que
contava uma passagem de dois sujeitos cheirando cocaína num apartamento, seriam
também, é lógico, fruto da imaginação de João, e não um relato de situações
teoricamente vividas por Jeremias.
Embora
essa hipótese fosse, como o próprio João admitia, absurda, ele ficou realmente
preocupado. Então foi procurar na sua caixa postal os três e-mails que Jeremias
havia mandado ou que ele imaginava que Jeremias havia mandado. Só aí se lembrou
de que, um dia antes, tentando inutilmente localizar uma mensagem antiga com
orientações sobre um pedido de trabalho de condensação de um texto, ficara tão
puto com a busca frustrada, devido à grande quantidade de lixo acumulada no seu
correio eletrônico, que, sem querer, deletara todos os e-mails arquivados.
Ou
seja, agora não havia como, naquele momento, comprovar se Jeremias havia mesmo
mandado os e-mails ou se ele estava no meio de um surto violento, daqueles que
já enfrentara tantas vezes no passado, mas que, nos últimos tempos, nunca mais
tinham se repetido, a ponto de João achar que estava totalmente “curado”.
Percebeu
que precisava urgentemente se acalmar e o jeito foi convencer-se de que as
mensagens de Jeremias eram mesmo reais e que o delírio, na verdade, havia se
insinuado quando começara a cogitar a hipótese de que estivesse delirando. O
delírio era achar que estava delirando. Simples assim! E isso o acalmou.
Contudo,
outro pensamento inquietante veio à cabeça de João: se ele já sabia que lidar
com Jeremias, mesmo à distância, sempre envolvia certo risco de enlouquecer,
por que diabos tinha deixado que Jeremias o arrastasse para aquela piração
estúpida de contar uma história que só Jeremias parecia conhecer e ter
necessidade de contar?
A
cabeça de João começou a latejar. Precisava de ar fresco. Abriu a janela e
respirou o mais fundo que pôde. Ficou tonto e quase desmaiou. Depois abriu a
porta e saiu.
JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.
(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.
(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)
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