A
CORTE DO BOBO
Por
Demétrio Magnoli
O
guru bolsonarista adula seu rei para iludi-lo, conduzindo-o à beira do
precipício
Os
soberanos renascentistas empregavam um profissional encarregado de entreter os
cortesãos e, antes de tudo, a si mesmos: o bobo da corte. A entourage
bolsonarista tem um personagem assim, que é Olavo de Carvalho. Mas, com uma
diferença: por aqui, a corte é que presta serviço ao bobo.
Nas
cortes do passado, recrutavam-se bobos no próprio círculo da nobreza, entre
jovens com deficiência mental. Mais comumente, eles eram pinçados entre
comediantes que cantavam ou dançavam em grupos de saltimbancos. Salvo engano,
Olavo enquadra-se no segundo caso.
Depois
de tentar a sorte como astrólogo e islamita, ele vestiu a fantasia de filósofo
e passou a exibir truques intelectuais primários no palco itinerante da
internet. O ofício de comediante intelectual propiciou-lhe uma carreira
precária no diversificado mercado da autoajuda —até que, miraculosamente, o
colapso do sistema político brasileiro degenerou no governo dos ignorantes da
extrema direita. Daí, ele virou um bobo singular: o guru de uma corte
abobalhada.
Os
bobos eram contratados para cometer equívocos divertidos. Nesse ponto, Olavo, o
bobo de plantão, é fiel à tradição. Segundo o que ele qualifica como uma “tese
histórica irrefutável”, os militares brasileiros entregaram o país ao
comunismo. O interessante, aqui, é que não há, entre pessoas medianamente
informadas, nem mesmo um debate histórico relevante sobre o tema.
O
golpe de 1964 não salvou o país da ascensão comunista pelo simples fato de que
a hipótese inexistia: Jango e os seus, populistas da cepa varguista, não
nutriam qualquer simpatia pelo comunismo. Os comunistas, cindidos em dois
partidos rivais, eram colinas periféricas na paisagem nacional. Duas décadas
depois, na hora da transição democrática, a esquerda aglutinou-se no PT, que de
socialista só tem trechos esparsos de resoluções escritas para enganar trouxas.
Golbery
do Couto e Silva tinha razão, se é verídica a versão de que enxergava em Lula o
coveiro da esquerda radical no Brasil. Mas, ainda que divertida, a “tese
histórica irrefutável” de Olavo é um equívoco proposital de um profissional da
comédia. O bobo que nada tem de bobo formulou uma galhofa destinada a ser
levada a sério por seus devotos estúpidos da corte bolsonarista, entre os quais
contam-se o presidente e seus rebentos.
No
“Rei Lear”, o bobo desempenha papéis cruciais. Honesto, completamente leal, ele
vai muito além de seu dever de entreter, agindo quase como superego do rei.
Depois do injusto banimento de Cordelia, o bobo assume a função da única filha
íntegra do rei, protegendo Lear e, por meio da ironia e do sarcasmo,
alertando-o sobre seus impulsos autodestrutivos.
Na
corte bolsonarista, tudo se passa ao inverso. Leal apenas a si mesmo, o bobo
sabota incessantemente o rei, estimulando seus piores instintos e semeando
perenes intrigas palacianas. O bobo de Lear não teme dizer a verdade
desinteressada; o bobo de Bolsonaro só profere mentiras interessadas. Nesse
país tão pouco shakespeariano, a corte presta vassalagem a um bobo que não
almeja o triunfo do rei, mas unicamente seu triunfo pessoal.
“Bobos
frequentemente provam-se profetas”, diz Regan, a segunda filha de Lear, a
Goneril, sua irmã mais velha. Olavo errou em todas as suas profecias, mas
esforça-se para acertar na mais recente: a implosão do governo Bolsonaro “em
seis meses”. O bobo shakespeariano, um sábio cético que vira a procissão
inteira de vilezas humanas, ria da afetada pretensão de majestade de Lear.
Entretanto, inarredável na sua decência, jamais o abandonou, acompanhando-o na
trajetória da humilhação, rumo à loucura. Já o bobo bolsonarista, um malcriado
untuoso, adula seu rei para iludi-lo, conduzindo-o à beira do precipício.
“Rei
Lear” é a mais sublime tragédia da literatura. A nossa é uma farsa de terceira.
Mas não é ficção.
(publicado originalmente na FOLHA DE S. PAULO em 24/04/2019)
(publicado originalmente na FOLHA DE S. PAULO em 24/04/2019)
Demétrio
Magnoli é sociólogo,
autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em
geografia humana pela USP.
No comments:
Post a Comment