Friday, May 31, 2019

UM DIA CULTIVADO (para Walt Whitman, por Flavio Viegas Amoreira)



Vivemos um Tempo sem tempo ,  a pressa se impõe ‘a percepção,  o caos não criativo substitui a reflexão criadora,  a busca de um sucesso oco escraviza nosso cotidiano estéril.  ´´Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração´´ diz-nos Drummond : para onde vão todos na manhã que se esvai como se esvai o dia, o mês que corre, o ano que escoa nessa sensação de que tudo voa e nada se fica em nossas retinas tão cansadas de tanto e tudo?  Talvez só os poetas não se impõem essa correria doida porque os poetas são antenas da raça e precisam observar a atmosfera eterna por trás da paisagem barulhenta das cidades.  Os poetas são mantenedoras do encanto,  da fruição atemporal , das nesgas de infinito que ainda deitam raízes em nossos hábitos prosaicos,  o eterno que ainda teima colorir nossas pegadas por esse mundo já esgotando-se  por maus tratos .  É preciso alguns minutos para contemplação,  alguma pausa para saudade,  algum olhar para a lua cheia escondida pelo trânsito e os fios elétricos da noite sem silêncio de noite.  Se o crepúsculo não foi notado em seu esplendor de prece,  talvez na madrugada que se anuncia você sorva o vinho notando o dourado nas ondas.  Outro poeta,  Baudelaire, dizia com tristeza que a vida moderna nos roubara a ´aura´ :  a aura da distância, do brilho nos olhos,  da fantasia , das boas ilusões.  Assistir um filme numa matinê tranqüila , entrar numa exposição de Paul Klee ou Tarsila enquanto as bolsas de valores se esgoelam,  percorrer estantes numa recôndita livraria longe do bulício das multidões lá fora do teu recanto.  Quem se permite sossego, silêncio, encontro, afago, uma prosa com toda sua poesia? Na Roma antiga um outro poeta ( sempre nós os poetas ) , Horácio,  definiu um termo, um conceito delicioso: ´´Carpe Diem´´.  Sim! Pompéia, Herculano, as cidades romanas já provocavam stress para os padrões de patrícios e plebeus.  Cultive, curta, colha com sutil delicadeza o seu dia não de modo desenfreado de ´aproveitar ou saciar´ os sentidos . Cultivar é curtir com espírito,  não exigir demais da vida material e do consumo ,  procurar no casamento da alma com o mundo a comunhão perfeita através dos prazeres do instante.  Despojar-se das ansiedades vãs,  não prender-se a ambições que aprisionem num futuro improvável,  vivenciar o tempo que passa porque vivenciar é viver com noção do milagre perceptível.  Ouvir uma sonata de Mozart,  caminhar observando a variedade de árvores de tua terra,  vibrar no íntimo com um beija-flor inesperado no batente diante um pátio que remete a tua infância.  Uma coleção de epifanias suplicam tua atenção no teu tempo e o tempo é o teu dia. Esse mês a literatura celebra 200 anos de nascimento de mais um poeta que viveu conforme esse ´´Carpem Diem´´ : Walt Whitman.  Patriarca das artes norte-americanas e profeta do homem livre de preconceitos ,  Whitman cantou o amor fraterno, a generosidade radical entre os seres,  o louvor ao planeta e suas criaturas mais simples.  Ao lado de Thoreau e Emerson formou a trindade de ouro do pensamento libertário ocidental que iriam desaguar em Gandhi  e Mandela.  Em tempos de ódio ele pregava a liberdade e a mudança : ´´Me contradigo? Claro , eu contenho multidões! ´´  Quem muda de idéia afinal se recupera da intransigência, não tem compromisso com erro.  ´´Para cada minuto que você se aborrece, você perde sessenta segundos de felicidade´´ , esse conselho que Emerson aprendeu com Whitman vale por muitas vidas ! Saudo-te  Walt Whitman como fizeram Pessoa e Lorca!  Carpem Diem!





Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).



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