Saturday, May 18, 2019

REQUIEM PARA MARCIO CALAFIORI (parte 1)


Conheci Marcio Calafiori há 16 anos, por aí. Eu morava em frente à Universidade Santa Cecília, onde ele trabalhava como professor. Eu estava recém-despejado de meu primeiro casamento, e condenado a continuar morando sozinho no mesmo apartamento onde fui casado por alguns anos. Não era uma situação de todo ruim. Mas às vezes a solidão virava um grande incômodo. O jeito era ir para a rua. Passava uma ou duas horas da manhã conversando com meu amigo Paulinho, dono da banca de revistas ao lado da Universidade, e com alguns de seus clientes matinais. Márcio era um deles. Figuraça. Três anos mais velho que nós dois. Jornalista de coração e de alma, com uma longa carreira pelas costas, muitas histórias pitorescas em seu curriculum e passagens por várias cidades onde também morei. Naquela altura da vida, Márcio já estava há tempos longe das redações, e se dedicava a formar novos jornalistas. Memorizei os dias da semana e os horários em que ele tinha “janelas” em sua grade de aulas na Universidade. Daí, era só descer as escadas do meu prédio e trombar com ele e com Paulinho na banca – às vezes com o cartunista Oswaldo Da Costa e com o grande cronista Marcus Vinícius Batista como convidados especiais – para que a conversa rolasse solta. Manhãs inesquecíveis aquelas. Conversa boa nunca faltou alí.

Mas então eu casei novamente e mudei daquela vizinhança. E Márcio se aposentou como professor. Logo a seguir, Paulinho morreu. Nos encontramos no enterro dele. Foi quando nos reaproximamos pelo Facebook. E nos tornamos amigos muito próximos, mesmo nos encontrando pessoalmente raras vezes. Quando idealizei este LEVA UM CASAQUINHO, Márcio não só foi um dos primeiros colaboradores, como indicou vários outros que ele julgava adequados ao projeto, e que acabaram virando amigos meus também. Tinha prazer em agregar e aproximar pessoas que ele julgava complementares. E tinha um ótimo faro para isso. Para ele, unir pessoas com afinidades era uma maneira de construir um mundo melhor.

A notícia da morte do Márcio domingo, dia 12 de Maio de 2019, aos 62 anos de idade, me deixou completamente desnorteado. Soube logo após o almoço de Dia das Mães. Corri para o Memorial, onde seu corpo estava sendo velado, mas não consegui ficar muito tempo, pois aquele cidadão mudo e de cara fechada deitado no caixão não parecia nem um pouco com ele. Acho que foi a primeira vez que o vi sem que estivesse falando alto, ou rindo, ou mesmo gargalhando. Me neguei a registrar aquela imagem. Daqui para a frente, só quero lembrar de meu bom amigo rindo alto, fazendo galhofas e disparando comentários espirituosos.

Separei para esta edição especial de LEVA UM CASAQUINHO esses 3 textos de altíssimo gabarito escritos pelo Márcio e publicados aqui 4 ou 5 anos atrás. Leiam e julguem por si próprios. (Chico Marques)
  


 VELHA COM CACHORRO



Lá em cima o animal arranha os tacos,

como o diabo em O Exorcista;

o dia inteiro o dia todo e a noite sonâmbula

pra lá e pra cá o dia todo

a velha que é a dona deixa cair tudo,

coisas que pesam toneladas:

bumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbum

Quando o telefone toca,

ela corre do quarto para a sala

— como um cavalo, o cachorro pula da cama [dormem juntos];

ele quer ser o primeiro a chegar:

trimtritrimtritrimtrimtrimauauauauauauuauauauauauauauatrimtrimtrimtrim

Como pode essa senhora ter voz tão potente?

Ela se enraivece: “Cala a boca, Cauã!”;

“pelo amor de Deus, caaaaaaaala a boca, Cauã, eu quero falar no telefone!” auauiiiiiiiauauauaiiiiiiiiiiuauauauauauiiiiiiauauauuauaiiiiuauuaiiiiauu

O latido esganiçado é o de um cão mimado.

Quero rachá-lo ao meio com uma boa paulada;

imagino um taco de beisebol,

 igual àquele que o português bruto do boteco

amassou os dedos do bêbado chato:

auauauiiiiiiiiiiiiuauauauauaiiiiiiiiiauauauauauauauaiiiiiiiiiauauauuauauiii

Aconselhada por uma parente sensata,

a senhora parou de dar comida na boca do cachorro;

era uma garfada pra ela e outra pra ele,

o mesmo prato e o mesmo talher.

[No sítio da minha avó, no caminho pra Jaguarão,

os cães e os gatos eram proibidos de entrar em casa.

O mundo era assim: bicho era bicho; gente era gente.]

Cauã agora faz a refeição primeiro,

e a velha logo depois;

mas atormentado pelo antigo hábito ele não para: uiiiiiiauaauauauauauaiiauauiiiiiiiiiiauauauuaiiiiii

“Cala a boca, Cauã, você já comeu!

Agora é a minha vez! Tenha paciência!

Cala a boca, Cauã, cala a boca!

Deixa eu almoçar em paz?

Cala a boca, Cauã!”

Todos os dias a dupla do barulho: bumbumbumbumbumauauauaiiiiiiuauiiiiiuuuu

“Cala a boca, Cauã!” auauiiiiauauiiiiiauuuuuauuuuiiiiiiiiauuauauauauuuiiiiiiiiiii

No entanto, a velha e o cachorro têm o direito sagrado de viver.


MACACO

Ele e Ela estão no sofá da sala. O ambiente é simples, organizado e limpo. Há um computador em cima de um móvel apropriado, com impressora e luminária de mesa. Ao lado do computador há uma estante com tevê e molduras com fotos. Ao lado do sofá de três lugares em que o casal está, à direita, há um abajur de pedestal e na frente uma mesa de centro; num canto da sala há um móvel-bar, com bebidas, balde para gelo, copos, taças. Ela deve ter uns quarenta ou quarenta e cinco anos. Pode ser que seja professora de escola pública. Usa um vestido solto que vai até a altura dos joelhos, pois talvez seja o início da primavera. Ele tem mais de cinquenta. É fisicamente comum. Está de jeans, camisa polo e sapatos pretos.

Ela — Você é assim organizado ou arrumou tudo antes d’eu chegar?

Ele — Normalmente, sou organizado.

Ela — Ah, eu sou bagunçada. Acho que você não iria gostar de mim se visse a minha casa. Não gosto de nada arrumadinho. [Levantando-se do sofá] — Mas afinal, o que você preparou pra me embebedar?

Ele [se levanta também e começa a beijá-la suavemente no rosto, na testa e nos lábios] — Eu não quero te embebedar...

Ela [incrédula] — Não quer me embebedar? Mas todo o homem quer embebedar a mulher. Não existe um que não queira. Os homens são todos uns tarados.

Ele — Eu não sou assim.

Ela — Ah, então vou começar a ficar preocupada! Estou com um cara que não quer me embebedar? Tenho medo de homens assim, são os piores.

Ele [dirigindo-se ao móvel-bar e rindo de leve] — Ao contrário, preparei algo que não vai te deixar bêbada, apenas tontinha.

Ela [sorrindo] — O que é? Fala!

Ele — Surpresa...

Ela — Ah, não, vai me dizer que fez batida de amendoim? Eu adoro, adoro, adoro!

A batida está no móvel-bar dentro de um balde com gelo, numa garrafa improvisada. Ele tira a garrafa do balde.

Ela — Não acredito! Mas que homem ardiloso! Você fez batida de amendoim? Isso é uma arte. Ninguém mais sabe fazer batida de amendoim. Ou fica fraca demais ou forte demais ou doce demais.

Enquanto Ela fala, Ele despeja a bebida cremosa num copo baixo, com duas pedras de gelo. Enche o copo.

Ela — Como você preparou? Me ensina?

Ele [meio posudo] — Usei pasta de amendoim, e não paçoca. A paçoca é que deixa a batida doce e granulada demais. Coloquei leite condensado, um pouco de açúcar, licor de cacau, duas gemas, cachaça... e gim. Tudo bem batido no liquidificador. Prova.

Ela [bebendo] — Nossa!... Enquanto você falava, fiquei pensando: “Isso não é batida, é sorvete de amendoim.” Mas ficou o máximo. Muito diferente.

Ele [se servindo de uísque com gelo] — O segredo é o gim e a pasta de amendoim no lugar da paçoca.

Ele senta no sofá. Ela continua em pé, bebendo. Ele põe o copo em cima da mesa e começa a acariciá-la por baixo do vestido.

Ela [graciosamente] — As tuas mãos são tão macias...

Ele — São mãos de quem não faz nada.

Ela [graciosamente, leve] — Se eu fechar os olhos — assim — sinto uma mulher me acariciando.

Ele — Então abre os olhos. [Ele continua o carinho. Agora Ela está de costas].

Ela — Fiquei com essa sensação...

Ele — Qual sensação?

Ela — De uma mulher me fazendo carinho. [Ela continua de pé]. Deixa eu ver as tuas mãos. [Ele estica as mãos, obediente] — Que mãos! Nem eu tenho mãos assim. Olha aqui as minhas mãos [Ela estica as mãos].

Ele [segurando as mãos dela] — As tuas mãos são lindas, delicadas, as unhas pintadas de rosa, adoro. [Beija as mãos dela com muito carinho, num clima erótico de muito respeito].

Ela — Ah, não! As minhas mãos não são iguais às tuas. [Agora Ela senta no sofá e examina de novo as mãos dele]. Olha só: Você não tem nem cutícula. As tuas mãos são perfeitas, perfeitas. Frequenta manicure?

Ele [meio chocado] — Não, claro que não!

Ela — Mas essas mãos foram tratadas por manicure.

Ele — Não sei se é manicure. É uma senhora que trabalha na barbearia onde corto o cabelo. Ela perguntou se podia cortar as minhas unhas e eu deixei.

Ela — Mas sem dúvida ela caprichou nas tuas mãos. Me dá mais batida.

Ele se levanta e serve mais, levando a garrafa do móvel-bar até a mesa de centro. Senta de novo no sofá.

Ela [sentada, bebendo do copo que foi novamente servido] — Ah, as tuas orelhas [toca nas orelhas dele, alisando-as de leve]. Tão bem feitas. Mas são pequenas... Eu gosto de orelhas grandes.

Ele — Mas que importância as orelhas têm? Não entendi.

Ela — As tuas orelhas parecem as orelhas de um bebê. Só isso.

Ele [puxando-a] — Deixa o bebê mamar. Vem cá...

Ela — Eu não quero um bebê mamando em mim. Eu quero um macaco.

Ele — Um macaco? Mas eu sou um macaco!

Ela — Não, você não é um macaco. Você não tem pelos.

Ele [contrariado] — Você tá falando sério? Respondi todas as perguntas que me fez pelo Facebook e pôde constatar que não menti. Eu disse que depois dos trinta anos comecei a perder os pelos dos braços e das pernas. Isso é normal.

Ela — Não se trata de normalidade.

Ele — Mas eu...

Ela [interrompendo-o] — Eu sei que você não me escondeu nada. E é isso o que me espanta. Acredita em tudo o que te dizem pelo Facebook? Eu não acredito! Sou humana, por isso não acreditei em você. O bom no relacionamento digital são as surpresas.

Durante o diálogo, o casal senta e levanta do sofá, caminha pela sala, senta de novo.

Ele — Está me acusando de ser verdadeiro?

Ela — Estou dizendo que você é ingênuo. Só isso.

Ele — Mas você também não mentiu. Disse que era bonita, e de fato é bonita.

Ela — Foi a única coisa que você quis saber, se eu era bonita, se a minha foto era atual.

Ele — Afinal, por que quis me conhecer, se encontrar comigo?

Ela — Posso ir ao banheiro?

Ele — É lá.

Ele está tenso. Vai ao móvel-bar e bebe mais uísque. Agora Ela está de volta, segurando uma embalagem de creme.

Ela — O que é isso? [Ela lê a embalagem] — Creme Nívea. Milk. Hidratação intensiva. Com óleo de amêndoas. É você quem usa?

Ele — Qual é o problema?

Ela — É só uma pergunta. Não fica tenso. É você quem usa?

Ele — Uso antes de dormir, ao redor dos olhos. Por quê?

Ela — Ao redor dos olhos? Quem te ensinou isso?

Ele — Foi o meu oftalmologista.

Ela — Oftalmologista?

Ela retorna ao banheiro, desta vez demora um pouco mais. Ele se serve de mais uma dose de uísque. Ela volta trazendo mais embalagens de produtos de beleza.

Ela [Começa a ler as embalagens, uma por uma e com sotaque francês onde precisa de sotaque francês.] — Loréal Paris, Pure Zone, Passo 1, Sabonete purificante, Ação antiacne constatada; Loréal Paris, Passo 2, Adstringente, Limpeza profunda; Loréal Paris, Passo 3, Gel creme antiacne; La Roche-Posay, gel mousse purificant.

Ele — O que é isso, afinal? Pode botar tudo de volta no banheiro, já!

Ela — Eu mesma não tenho esses produtos em casa. Lavo o rosto com sabonete de glicerina. E só. Sabe uma coisa que me irrita? É quando um homem entende mais de xampu e de cremes do que eu. Os homens aprenderam rápido demais sobre esses cuidados.

Ele — Você é exagerada. São só cuidados, atualidades da estética masculina.

Ela — Eu exagerada? A mulher está no salão e, de repente, olha pro lado e tem um cara fazendo limpeza de pele e cuidando das sobrancelhas. E os senhores de setenta anos? Eles tiram o dia pra depilar os pelos das orelhas. É a melhor idade ridícula.

Ele — Tudo é uma questão de dedicação pessoal. No meu caso é só higiene, manter a pele limpa, saudável. Só isso. É quase como filosofia. As mulheres do século 21 não gostam de homens relaxados.

Ela — Que mulheres?

Ele — As mulheres! As mulheres!...

Ela — Sim, mas quais? A quem se refere? Os homens dizem “as mulheres”, “as mulheres” como se isso fosse um produto. Que mulheres?

Ele [um pouco exaltado] — As que aparecem nos programas de tevê! Elas gostam de homens bem cuidados. O Fantástico fez até uma pesquisa, ouviu várias na rua. Absolutamente todas disseram que o homem precisa se cuidar, ser vaidoso.

Ela — ahhhhhhhhh!

Ele [Preocupado] — O quê?

Ela — Você acredita na televisão?

Ele [meio discursando] — É o século! Ninguém discute com o século!

Ela — Por que você não tem cabelo no peito?

Ele [Indignado] — Eu tenho cabelo no peito!

Ela — Não tô vendo.

Ele — Eu tenho. Só que raspo.

Ela — Por quê?

Ele — Porque a última mulher que tive pediu pra eu raspar. Ela encostava a cabeça no meu peito, mas dizia que o pelo irritava o rosto dela. Foi por isso que raspei o peito. Para agradá-la.

Ela — Você ainda sai com ela?

Ele — Não, já disse! Não tenho ninguém.

Ela — Você é exatamente o tipo de homem que faz o que as mulheres querem. Você deveria ter insistido em ser um macaco, ter desafiado a tua ex-mulher. Ela sentia a tua falta?

Ele [perplexo] — Mas como eu posso saber?

Ela — Aposto que quem lavava a louça era você. Adivinhei?

Ele — As tarefas aqui em casa eram divididas. As mulheres hoje exigem isso.

Ela — Sei, você cozinhava e lavava a louça e o banheiro e ela botava as roupas na máquina de lavar. Acertei?

Ele — Não me lembro... Você parece louca!

Ela — Louca? Não, meu caro, eu sou apenas uma mulher, algo que você não conhece. Ainda me acha bonita?

Ela não espera Ele responder. Volta para o banheiro com os produtos e retorna trazendo três sabonetes fechados nas embalagens. Ele está no bar, bebendo mais.

Ela — E isso aqui é o que é? [Começa a ler as embalagens]: sabonete cremoso, figo da Turquia; sabonete cremoso, alfazema provençal. Mas que bom gosto!

Ele — Não é bom gosto! Esse sabonete não irrita a minha pele.

Ela — Ah, mas não é só isso. Vem cá.

Ele obedece. Ela o cheira um pouco e depois o empurra de leve.

Ela — Eu gosto de homem com cheiro de barbearia. Mas o cheiro da Acqua Velva não existe mais, nunca mais senti... Era um aroma másculo. O meu avô era barbeiro... Algo se perdeu, não consigo mais...

Ele — O que se perdeu?

Ela [meio perdida, aérea] — Algo que estava no cheiro e que agora eu só consigo imaginar. Entende isso?

Ele — Não, não entendo.

Ela — Aposto que se eu voltar ao banheiro vou deparar agora com outra variedade de sabonete cremoso, tipo “fragrância limão siciliano”. Você garante que não?

Ele — Basta! Basta! Eu gostaria que você fosse embora. Por favor. [Ele abre a porta].

Ela — Eu vou. Não quero ficar. Imagina eu, de repente, com uma vontade gigante de mijar e você trancado no banheiro seguindo os passos 1, 2, e 3 da Loréal Paris.

Ele [sem calma, perdido] — Oh, Deus, eu não sei mais... Não entendo mais... Me ajuda, por favor...

Ela — Cada mulher é uma mulher.


NA HIDROGINÁSTICA, BOIANDO NO AZUL


O endrocrinologista disse:

“O senhor anda descuidado com a saúde. Precisa mudar de vida, dormir e acordar cedo, se exercitar e lutar contra si mesmo. Como diabético, precisa comer pouco e bem. No seu caso, além do tratamento e da dieta, recomendo hidroginástica.”

“Será que em vez de hidroginástica eu não poderia fazer musculação?”

“Não. O senhor precisa é de hidroginástica.”

“E a dieta?”

Ele pegou um cardápio rodado em xerox. Antes de me entregar, examinou um item:

“O senhor gosta de abobrinha?”

“Gosto.”

“Pois corte a abobrinha do cardápio.”

O médico chamava aquilo de cardápio? Eram sugestões de pratos como cenoura e nabo ralados, acompanhados de uma colher de arroz branco e de meia sobrecoxa de frango, cozida e sem sal. Pode não parecer, mas me adapto bem às condições adversas. Portanto, a minha maior dificuldade não seria a dieta, mas a hidroginástica. Pesquisei na internet: Exercícios aquáticos existem há muito tempo. Mesmo que você não goste de nadar ou não saiba, ainda assim dá para praticar a hidroginástica, pois a maior profundidade que terá de encarar será até os ombros. Você não vai se afogar porque não terá de mergulhar a cabeça na água.

Mais: Pessoas com excesso de peso ou com problemas específicos que dificultam o movimento em terra descobrem que a flutuação permite se exercitar com facilidade, pois um corpo imerso num fluído é sustentado por uma força igual ao peso do fluído deslocado pelo corpo. É por isso que se flutua na água. A flutuação também evita o impacto nas articulações.

Ah, bom! O site em que pesquisei apresentava mulheres jovens e bonitas, de maiô. Claro, não levo a publicidade a sério. Se o site mostra mulheres assim, seria exatamente o contrário. E então me imaginei cercado de velhotas que mijam discretamente dentro da piscina. Geralmente essas senhoras têm os pés deformados por joanetes. Elas costumam ser espirituosas. Com a idade, os homens vão ficando mal-humorados, enquanto as mulheres riem de si mesmas.

No primeiro dia, entrei na piscina do Clube Atlético Dores pensando assim: “A hidroginástica melhora a minha capacidade aeróbica, a minha resistência cardiorrespiratória, a minha força muscular, a minha flexibilidade e o meu bem-estar geral, além de queimar muitas calorias.”

A professora, uma baixinha, me mandou fazer par com uma senhora de maiô marrom e pés com joanetes, dona Lourdes, que era excessivamente simpática. Ela usava uma boia ao redor da cintura. Vistos sob a perspectiva da água, os pés dela tocavam o fundo da piscina como as garras de uma ave estranha.

“O senhor é casado?”

“Não.”

“Não quis casar?”

“Sou um infeliz amoroso.”

“Ah!... Quantos anos o senhor tem?”

“Cinquenta.”

“Está conservado para a idade. O senhor pinta o cabelo?”

“Não, não uso nada no cabelo.”

“A sua pele do rosto...”

“Essa pele é minha mesmo, desde que nasci.”

Foi então que a vi. Ela usava um maiô em tons de azul e azul-marinho. Entrou na água, se concentrou um pouco e, em seguida, relaxou o corpo e começou a boiar, com os braços estendidos. Azul, azul e azul. Ela boiava no azul.

É claro que agora morando aqui não espero encontrar o médico com o qual me consultei em São Paulo. Ao término da primeira aula de hidroginástica, depois de me exercitar com facilidade, pois um corpo imerso num fluído é sustentado por uma força igual ao peso do fluído deslocado pelo corpo, me senti no direito de beber uma cerveja. Em vez de cenoura e nabos ralados, pedi uma porção de calabresa frita com cebola e pão fatiado. Dona Lourdes me avistou no bar da piscina:

“Na aula de quarta-feira é melhor o senhor ficar bem no rasinho.”

“Pode deixar, dona Lourdes, se eu afundar seguro na sua boia.”

Aula de quarta-feira. Quando cheguei os pares já estavam formados. Era o que eu queria, pois o meu atraso fora estratégico. Logo depois, ela entrou na piscina. A professora sugeriu que formássemos um par. Quando demos as mãos para fazermos um exercício, Laís disse:

“Olha, este exercício é assim que se faz, percebe? Pode ser que o senhor tenha um pouco de dificuldade no começo. Mas eu não, tenho muita flexibilidade.”

“Só de olhar sei que você é flexível.”

“Gozado, tenho a impressão de que já nos vimos.”

“Será?”

“O senhor é daqui?”

“Não, mas agora estou morando aqui.”

“Posso te fazer uma pergunta íntima?”

“Claro.”

“A sua pele é natural?”

“Como assim?”

“A sua pele do rosto. Olhando para o senhor tenho a impressão de que é... uma maquiagem.”

Desde que a conheci pelo Facebook e descobri que Laís, assim como eu, faria hidroginástica a conselho médico, tomei a decisão. Aposentado, sem família e nada pra fazer, decidi mudar de vida e de cidade. Ali mesmo na piscina, tirei o disfarce.

“É tu mesmo, meu amor? Não acredito! Quando te vi tirando essa máscara, juro que achei que fosse efeito dos medicamentos. Pensei que eu estivesse entrando em outra dimensão.”

De mãos dadas, agora boiávamos no azul.

  

Márcio Calafiori foi jornalista, escritor e professor. Nasceu em 1957 e se formou pela Facos em 1986. Exerceu quase todos os cargos em redações de jornais em Santos, Santo André, Campinas e São Paulo. Foi redator, repórter, revisor, editor, secretário de redação, chefe de reportagem e ombudsman. Aposentou-se em 2012 como professor da Unisanta, depois de 29 anos de dedicação exclusiva ao Jornalismo Impresso. Na falta de coisa melhor para fazer, foi uma espécie de sócio fundador de LEVA UM CASAQUINHO


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