Tudo começou durante a Segunda Guerra Mundial, quando
um navio alemão de nome Windhuk aportou em Santos. Faz tempo. Tanto tempo que naquela época as guerras precisavam ter, pelo menos, uma centena de razões sérias para serem deflagradas. E não apenas interesses econômicos, mal disfarçados em motivos de segurança nacional. Como hoje.
Voltando ao cais do porto, lá estava o Windhuk, ostentando em sua popa a tremulante bandeira alemã, onde se destacava a enorme suástica. Imponente. Agressiva.
De repente, dois navios brasileiros foram afundados por submarinos alemães (há controvérsias) em nossa costa. Pressionado pelos gringos, Getúlio Vargas não pôde fazer outra coisa senão entrar na briga. Ao lado dos ingleses e americanos. Logo ele que chegou a flertar com o Eixo.
Declarada guerra à Alemanha, a medida seguinte foi confiscar
as “armas” alemãs que estavam em nosso território. O Windhuk era uma delas. Ocorre que, em toda a tripulação do Windhuk havia, quando muito, dois ou três nazistas. O resto era apenas simples marinheiros alemães.
O que fazer? O capitão foi mais esperto. E sensato. Dos males, o menor. Mandou que jogassem açúcar nos motores. Pronto. O problema não era mais dele. Para todos os efeitos, o barco estava inutilizado. Não poderia
ser usado contra seu país.
Mas, e a tripulação? Depois de um tempo presos em um campo de confinamento que, segundo testemunhas, mais parecia uma colônia de férias tropical, alguns quiseram voltar ao seu país de origem. Afinal,
a Alemanha estava em guerra. Outros, mais astutos, decidiram ficar no Brasil. Sábia decisão.
Esta história trata de dois desses trabalhadores do mar. Daquela
dupla que, mesmo sem saber uma única palavra em português, optou por morar no Brasil. E dedicar sua vida aos prazeres da mesa, ao invés dos horrores da guerra. Quem saiu ganhando fomos nós. Como veremos.
O primeiro deles foi para a capital do estado, São Paulo, onde abriu um restaurante alemão de nome Windhuk. Isso mesmo, igual ao navio.
Lá, a nau foi eternizada numa pintura, de gosto duvidoso, exposta numa
das salas da casa. No entanto, se a tela era ruim, as comidas típicas
e o chope eram deliciosos. E ainda são porque o Windhuk continua firme
em seu curso, singrando o tradicional bairro de Moema.
Vamos ao segundo marinheiro. Para começar o nome dele era Heinz. Karl Heinz. E, diga-se de passagem, o dito cujo também sabia tudo da culinária germânica. Neste caso, a sorte favoreceu aos peixeiros, pois ele escolheu Santos para viver. Como se já soubesse que um chope gelado também é a praia dos santistas.
O alemão não tinha medo de trabalho. Pelo contrário. Aqui e ali
fez de tudo um pouco, até conseguir algumas economias. Com elas,
e a incansável colaboração de um nordestino baixo, atarracado, chamado José de Alagoas, o Zé da Lagoa, Karl decidiu se arriscar em águas mais agitadas. E investiu num bar-restaurante tipicamente alemão, que recebeu
o seu nome: Heinz.
8 de junho de 1960. Esta data está para Santos, assim como
o 4 de junho de 1944, para a Europa. É o Dia D dos santistas. O marco
zero dos degustadores da bebida mais leve e deliciosa do mundo:
o chope bem tirado, cremoso e gelado. O chope perfeito. O chope
do Heinz.
O local, escolhido meio por acaso, foi o bairro da Vila Rica, perto
do Canal 3, na esquina das ruas Lincoln Feliciano e Pindorama. O sucesso foi imediato. Fulminante. Avassalador. O Heinz caiu nas graças da cidade. Primeiro virou um ponto obrigatório. Depois extrapolou a condição de bar. Tornou-se uma lenda.
Hoje não existe santista que se preze, ou turista que saiba das
coisas, com mais de dezoito anos, que não conheça o lugar. O Heinz virou sinônimo de chope. E de canapés e pratos alemães. E também de um cantinho gostoso e agradável para se jogar conversa fora. Incomparável. Imbatível. Insubstituível.
Como em todo bar de raça, ele também tinha a chamada mesa
da “diretoria”. Ou seja, aquela em torno da qual gravitam as figuras mais interessantes e distintas. Em todos os sentidos. E a mesa da “diretoria”
do Heinz, a de número “12”, era realmente especial. Como o próprio bar.
E seu dono.
A exemplo da Seleção Canarinho de Futebol, ou do Santos Futebol Clube, seria impossível escalarmos aqui a melhor formação de freqüentadores do lugar, em todos os tempos. Impossível e injusto. Afinal, não se deve confiar na memória de quem bebe, pelo menos, uma dúzia de chopes, todos os fins de tarde. Não inteiramente. Com certeza muita gente boa seria esquecida. E o lapso debitado à fatal amnésia alcoólica.
Portanto, o mais prudente a fazer, é nos determos num certo período do lugar. Uma “época de ouro”, em que tanto o Heinz como seus clientes estavam no auge. Em plena forma. Os anos 70.
Nesta década, a mesa 12, era um espetáculo à parte. Ali, todas
as tardes, a partir das 17 horas, entrava em campo um verdadeiro escrete.
Um time de apreciadores do chope de peso. E de respeito. Que escalação!
Muita gente boa assinava o ponto no local. “Cotidiariamente”.
Porque cotidianamente deveria significar “todo ano”, no entender do despachante e filólogo amador, Luizinho “Careca”. Vamos perpetuar seus nomes em palavras. Porque na memória do Heinz eles já estão gravados. Para sempre. Em letras douradas, como o chope.
Para abrir o Hall da Fama, Carlos Alberto, freguês de carteirinha do Heinz desde a inauguração, sua esposa, Dona Elisa e o filho mais novo deles, o Betão. O já citado Luizinho “Careca” (que só bebia uísques, assim mesmo, no plural) e sua mulher, a impagável Germaninha. Os irmãos Marcelo, João Afonso e Luiz Carlos “Ministro”, bons de copo, bons de papo e melhores ainda quando de pileque. Bernard, o mais brasileiro dos ex-submarinistas alemães, e seus parceiros de mesa, Dr. Ney Romiti e Dona Ike. Sem esquecer de Reinaldo, do Café Adelino, que adorava os “presuntinhos” feitos ali. O magnífico português era um glutão.
A lista é imensa. Os irmãos Tonico e Roberto Dias, que representavam a Brahma na Baixada Santista e, principalmente, bebendo. Os comerciantes Alberto Atick, Márcio Fracarolli e o despachante Gílson. Os três bons de chope e, os dois últimos, também de caratê. Parada dura. Jaimão e seu fiel amigo Francês. O poeta e escritor nato Gilberto Martins, o Giba, que abraçou a profissão de bancário como disfarce. O sedento e bon vivant Janca. E mais Seu Luís Mendes, sempre calado, amigo de Luizinho e de Germana.
Em seguida, uma ala de nobres doutorados: Dr. Stamato, Dr. Bola,
Dr. Mundinho, Dr. Haroldo e Dr. Edgar de Paula Jr. Todos seniores em matéria de copo. O nobre deputado Milani, Falcão, Zé Amorim e Professor, que também dava aula de chope. E de amenidades.
Agora, vamos à diretoria da casa, propriamente dita. Ou seja, aqueles que eram os donos do estabelecimento. Pelo menos no papel. O velho Karl Heinz, seu filho Egon, e Darci, namorada do rapaz. Finalmente, Zé da Lagoa que, com justiça, foi promovido a sócio, e Dona Osmilda, sua esposa.
Nos finais de semana essa turma aumentava com as adesões dos santistas que trabalhavam na Paulicéia. Estes desvairados chegavam sempre mortos de sede para engrossar o grupo inicial. Bitencão (filho mais velho de Carlos Alberto e Elisa), Zezé, Maneco (diretamente de Taubaté), Ramon, Cobra, Betinho e Petito Kannebley. E, ainda, Eusébio “Queridinho”, grande boêmio e figura humana, com seu irmão Picolé, um dos mais geniais centroavantes do Santos Futebol Clube. Esta corriola só aparecia aos sábados e domingos. Que time. E que sede. Haja chope para regar tanto papo furado.
É claro que havia mais gente. Muito mais. Gente que só não está aqui citada, porque provavelmente já havíamos passado dos vinte e muitos “cristais”, quando gravamos esses nomes em nossa memória afetiva. Para toda a eternidade. Aos esquecidos, portanto, as nossas mais sinceras desculpas. Foi o chope. Ou, melhor dizendo, o excesso.
De volta aos anos 70. Que década. Nesse período, o Heinz era uma
ilha da fantasia. Apesar da Ditadura, da repressão e do clima de paranóia que foi instalado no país. Apesar da força. Da estupidez. Dos milicos.
O bar era uma embaixada. Terreno neutro. Solo sagrado. Onde, cada um resistia à dura realidade ao seu modo. Mas todos do mesmo jeito: bebendo chope. Em paz.
No Heinz, também chamado de “igrejinha” pelos mais fanáticos,
os garçons não tinham descanso. Pergunte ao Seu Cassiano, o “Charles Bronson”. Ou ao Zé. Eles simplesmente não paravam. A sede da turba era bem maior do que a capacidade humana de tirar e servir a tempo os chopes mais fantásticos da moderna civilização.
Porque não tinha para ninguém. Nenhum outro bar no Brasil
poderia superar o Heinz nos anos 70. Pelo menos na qualidade do chope.
No máximo, conseguiria se igualar a ele. E isso para não sermos
acusados de bairristas.
Tudo bem. O Velloso (Garota de Ipanema para os mais novos)
e o Vilariño, no Rio de Janeiro, também eram ótimos. Como o Bar do Léo
e o Estalagem, em São Paulo. E o Pingüim, em Ribeirão Preto. Mas a lista acaba aqui. Passa a régua e fecha a conta.
O Heinz era tão maravilhoso que, em sua homenagem, foram criadas até camisetas e adesivos. Com o título de “Velha Guarda do Bar Heinz”. Era a segunda geração de santistas, prestando tributo ao sublime local onde seus pais e avós eram felizes. E sabiam.
O tempo passou na janela. E como passou. Hoje, o mundo é outro.
Há quem diga que a humanidade avançou. Inventaram a Internet. O celular. O Viagra. Tratamentos efetivos contra o câncer e a AIDS. Transplantes de todo tipo, inclusive de fígado. Pelo visto, nem tudo está perdido. Há esperança. Ainda. Pelo menos para todos aqueles que incorporaram o velho bar no “cotidiário” de suas vidas, como dizia o saudoso Luizinho.
Portanto, se algum dia você passar pelas redondezas, entre no Heinz. E no ritmo que ele gentilmente impõe aos seus freqüentadores. Um timing calmo, porém, constante de servir chope. Aqui, cabe uma dica.
Quando você já estiver satisfeito, coloque uma “bolacha” sobre a boca do copo vazio. No código da casa, isso significa que você parou de beber. Ou que está dando um tempo. Sem ofensas. Isso acontece.
Então, aproveite a pausa no álcool. Olhe em volta. Ouça o burburinho. Sinta o clima. Repare. O Heinz tem alma. E seus mistérios. É mágico. Quanto mais as horas passam, a caminho da madrugada, mais intensa é a aura do boteco. A mística.
E, caso você esteja na mesa 12, ou perto dela, e em perfeita sintonia com a atmosfera da casa, saiba que ali tudo pode acontecer. Ou quase tudo. Até mesmo você sentir um leve olor de charuto no ar. Mas não se assuste. Essa fragrância, agradável, vem de dois legítimos Ouros de Cuba, fumados como se deve. Devagar.
Por trás da suave cortina de fumaça e do cheiro bom de tabaco que
envolve o ambiente, como nuvens azuladas, estão dois pilares da casa: o velho lobo do mar Karl Heinz e o grande boêmio e filósofo Carlos Alberto Ferreira. Ambos agora dividem a mesa 12 com Egon, Zé da Lagoa, Bernard, o insuperável Luizinho “Careca” e outros imortais.
Portanto, fique tranqüilo. Há vibrações altamente positivas ao seu redor. Um fenômeno raro está acontecendo. Silêncio. Você está na presença da realeza.
Peça um chope. Acenda um cigarro. Relaxe. Deixe-se levar. De vento em popa, o Heinz avança pela madrugada como um barco.
Homens ao bar!
Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve todas as quartas-feiras em LEVA UM CASAQUINHO
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