Wednesday, April 11, 2018

CENAS URBANAS NUM DIA E NO OUTRO (uma crônica de Ademir Demarchi)



I - Numa manhã, ao sair do prédio, um flamboyant enche os olhos e a rua, saindo da calçada como um imenso volume verde que se espalha em longos galhos de folhas e flores enternecendo os que passam com a sensação física de cruzar sob ele, benzidos por seus braços sobre as cabeças. Ele está ali desde sempre, porém hoje a incidência de luz especial proporciona uma majestade inesperada. O impacto de sua visão não cessa e se transfere, enquanto se transita, como uma continuada sensação de ver novos seres verdejantes pelas ruas, que entram pelos olhos, não por suas particularidades, mas pela massa e volume de verde vistosos. Noutra manhã, ao sair do prédio, o flamboyant é apenas o tronco e alguns galhos mais grossos que restaram, amputado de sua massa verde e dos galhos que, sem impedir o trânsito, se debruçavam sobre a rua. Os pássaros que nela habitavam ou faziam algazarra, sumiram. Os prédios azulejados estão à vista, toda a beleza se foi, roída pela incompetência administrativa municipal.

II - O sinal fica vermelho e, à frente, a faixa de pedestres é tomada por um fluxo intenso e contínuo de dezenas de bicicletas indo rápidas e brilhantes num mesmo sentido e emitindo um zunido metálico. Então uma pedestre, como uma potranca, passa espremida à margem da faixa, entre o fluxo de bicicletas e os carros, correndo com tamancos que batem no asfalto, sobrepondo o som do galope ao som do zunido metálico das bicicletas.

III – Num dia, no morro, as aves estão à solta e em festa. Começam por um tiê que, indiferente a tudo, na beira do caminho, se pendura de ponta cabeça num arbusto de capim, enquanto tenta, completamente absorvido, cortar com o bico um outro arbusto que servirá de alicerce ao seu ninho. As angolas caminham ocupadas uma com a outra cantarolando sua música que se combina com os passos em notas redondas. Após uma curva, um galo e seu harém de três galinhas fizeram ninhos para uma sesta num montículo de areia de construção; ele pega algo e, emitindo um som, mostra para a que está grudada nele, certamente a preferida, distanciada uns dois palmos das outras para bem caracterizar a distinção. Logo mais, após outra curva, um urubu nanico ocupa o meio do caminho andando como se tivesse amortecedores nas pernas, mordomo inglês de fraque em passos lentos e espaçados, até que voa tomado de prudência para avisar aos outros que alguém se aproxima, ocupados que estão com as vísceras de algum porco abatido pelo chacareiro que os cria em meio aos pés de banana no morro. Após os urubus, o caminho passa a ser ocupado por frangos e frangas de pescoço pelado que correm para todos os lados como se a peste estivesse chegando.

No dia seguinte, nada de aves ou pássaros. É sábado e, sem ir trabalhar, os humanos estão por todos os lados.

[publicado originalmente em 14/05/2009]


Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Livros e Edições.
(basta clicar nos nomes para ser enviado
ao website da editora)

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