CAPÍTULO
XX
João,
às vezes, percebia que passava por um dos melhores momentos da sua vida. Então,
de onde vinha aquela enorme angústia que o impulsionava, de diversas maneiras,
a tentar detonar com tudo? Há alguns dias, sentado na privada, lera uma antiga
entrevista de Eric Clapton, onde ele, refletindo sobre seus muitos problemas
com a heroína e o álcool, afirmava que os artistas, em particular, possuem uma
espécie de obsessão por comportamentos destrutivos. E isso, segundo Clapton,
ocorria justamente quando tinham pensamentos criativos. Para fugir da dor que envolve
todo o processo de criação, eles acabavam, de maneira inconsciente, chutando o
pau da barraca. O problema, no caso, é que era justamente o pau da barraca
“deles” que eles chutavam. Então, como é óbvio, eles é que se fodiam.
A
questão é que Clapton era “Deus” e João não era nem mesmo um anjo de segunda
categoria, muito menos artista. Sendo assim, a sua compulsão por detonar tudo
quando as coisas iam bem não podia ser atribuída à obsessão que, conforme
Clapton, vitimava muitos artistas.
De
qualquer forma, essa conversa toda o levou a lembrar-se de quando, muitos anos
atrás, um psiquiatra com quem se consultava, comentando a sua compulsão por
álcool e qualquer outro tipo de droga que lhe caísse nas mãos, afirmou: “Cara,
você tem que parar com isso. Você precisa entender e aceitar que não é o Keith
Richards. Nem guitarra você toca, rapaz.”
Mas
o ponto fundamental era que João, lá no fundo, começava a achar que a coisa
toda com relação a Jeremias tinha a ver com essa sua irresistível tendência a
jogar merda no ventilador, quando o ar ao seu redor começava a ficar puro.
Afinal, ele estava quieto no seu canto, quer dizer, não tão quieto assim, já
que havia tido a inconveniente idéia de começar a escrever um outro livro, mas
pelo menos era o “seu” livro, e não a história de outra pessoa, que ele, aliás,
tinha se empenhado muito em tirar da sua cabeça – e, lógico, do seu coração e,
lógico, da sua vida.
De
qualquer forma, já fazia cerca de duas semanas que Jeremias mantinha o mais
absoluto silêncio.
Isso,
contudo, não estava refrescando muito, já que, na falta de material novo, João
continuava a remexer no material antigo. Cada vez que pegava no texto, achava
que alguma coisa não estava boa e reescrevia tudo. Foi numa dessas suas
investidas perfeccionistas que ele se deu conta de que o texto parecia estar
ficando muito longo, em relação ao que ele imaginava que Jeremias tivesse
originalmente encaminhado. Embora ele apenas pudesse imaginar o tamanho do
texto original, resultado da soma dos fragmentos enviados por Jeremias, já que
João tinha, recentemente, deletado tudo, num dos seus cíclicos acessos de fúria
em que decidia nunca mais botar a mão naquilo, mas, por algum motivo, sempre
acabava mudando de idéia.
Ao
mesmo tempo, o reaparecimento de Jeremias, ainda que no mundo virtual, o tinha
colocado novamente diante de um antigo dilema: enfrentar ou não o que ele
chamava de “situações inacabadas”. Ele identificava várias dessas situações em
sua vida, situações em que a gestalt não havia sido fechada, em geral porque os
conflitos entre as pessoas envolvidas haviam sido muito intensos e a pressão
tinha se mostrado insuportável, fazendo com que a opção fosse cair fora,
deixando as coisas mal resolvidas. Os esqueletos, contudo, permaneciam dentro
do armário e, de vez em quando, faziam barulho durante a noite. João tinha a
sensação de que havia muitos fios soltos e desencapados, o que tornava a
possibilidade de um curto-circuito uma ameaça constante.
Com
freqüência, achava que só encontraria algum tipo de paz interior quando
resolvesse, fechasse essas situações inacabadas. Mas logo se questionava se
isso valia a pena. Afinal, como ele mesmo admitia, existiam várias dessas
situações e, se ele entrasse numas de fechar cada uma delas, provavelmente
teria que passar o resto da sua vida fazendo isso, e então nunca atingiria a
tal da paz interior que almejava, já que, com certeza, morreria antes de
completar a missão.
E
havia ainda um outro problema: mexer com essas situações poderia, em vez de
melhorar, piorar as coisas, já que as outras pessoas envolvidas poderiam muito
bem não querer mais se meter com aquilo. Existia sempre a possibilidade de, ao
se mexer na merda, ela feder ainda mais.
Por
fim, ele também tinha sérias dúvidas a respeito de se essas situações
inacabadas não estavam inacabadas apenas na cabeça dele. Se fosse assim, não
havia nada a fazer, a não ser tentar começar a aceitar isso e seguir em frente.
Jeremias
era mesmo um grande de um filho da puta!
CAPÍTULO
XXI
A
neblina deixava a cidade diferente e ele gostava disso. Aliás, qualquer coisa
que deixasse a cidade diferente o deixava satisfeito. Quando percebia isso, se
perguntava por que não dava um jeito de cair fora de uma vez por todas. Não
havia o mínimo sentido em continuar vivendo numa cidade que só ficava
interessante quando não parecia a mesma cidade, como acontecia agora, enquanto
a neblina encobria o alto dos prédios da orla da praia e, do outro lado da
avenida, próximo da areia, escondia o mar atrás de uma névoa branca e densa.
Mas
aquela neblina logo se dissiparia e o calor se tornaria cada vez mais forte.
Bem, mas enquanto isso não acontecia, ele poderia fingir que estava em outra
cidade, ou melhor, “naquela cidade” onde, muitos anos atrás, ele e Jeremias
viviam. Com certeza não era a mesma cidade por onde agora ele caminhava,
seguindo a avenida à beira-mar. Ou talvez aquela cidade nunca tivesse existido,
a não ser na cabeça daquelas pessoas. Mas Jeremias que se fodesse, ele iria
continuar caminhando por aquela cidade estranha escondida e revelada pela
neblina.
Aquelas
mulheres reunidas na praça pareciam mães conversando sobre seus filhos, mas não
estavam rodeadas de crianças, mas sim de cachorros, sete ou oito cachorros dos
mais diferentes tamanhos e raças. Embora João não pudesse ouvi-las, devido à
distância a que se encontrava, sentado num banco afastado, não havia dúvida de
que elas falavam a respeito dos seus cachorros. João ficou alguns instantes
observando os cachorros, alguns parados, apenas apreciando a paisagem, outros
brincando entre si. Interessante aqueles cachorros, tão diferentes, se darem
tão bem.
Havia
alguma coisa errada naquela premissa quase religiosa que insistia em que éramos
todos iguais. Estupidez, concluiu João, éramos todos diferentes, muito
diferentes, não só em termos de raça, mas também em termos sociais, culturais,
individuais. A saída, pensou ele – se é que havia uma saída -, era procurar
conviver com as diferenças, aceitar a diversidade era o único caminho, como
aquele grupo de cachorros estava demonstrando, de uma forma tão simples e
direta.
Foi
mais ou menos por aí que aconteceu. João se sentiu como se estivesse em outro
lugar, aquela não era a praça pela qual já passara centenas de vezes e aquela
não era a cidade onde ele vivia. Gostava
muito quando esse tipo de dissociação alterava a sua percepção. Era algo raro
de acontecer e não se lembrava de nenhuma ocorrência do tipo nos últimos
tempos. Quanto isso aconteceu pelas primeiras vezes, ele associou o fato a
alguma possível seqüela do consumo, alguns anos antes, de ácido lisérgico, ou
mesmo maconha. Logo percebeu, contudo, que, apesar das semelhanças na alteração
de percepção, aquilo não tinha nada a ver com causas externas, mas internas.
Embora tivesse deixando de consumir as duas substâncias há muitos anos,
conseguia até mesmo provocar esses estados de percepção alterados, bastando
concentrar-se para isso. Mas o que ele estava agora experimentando naquela
praça não havia sido premeditado, pegou-o de surpresa. Sua única interferência
proposital, no caso, foi tentar prolongar conscientemente aquele estado
alterado o máximo de tempo possível.a
Ver
coisas e lugares conhecidos como se fosse pela primeira era uma sensação
incrível. Devíamos fazer isso mais vezes, pensou João, concluindo que a
freqüência cotidiana com que vemos as coisas e os lugares de sempre embota a
nossa percepção do real, já que, depois de um tempo, apenas registramos, sem
ver, a imagem das coisas e dos lugares que está gravada em nossa mente. Ou
seja, na verdade, não vemos, apenas pensamos que vemos. Se é assim com as
coisas e os lugares, o mesmo deve ocorrer em relação às pessoas conhecidas.
Depois de um tempo, também não as vemos mais, apenas imaginamos que as estamos
vendo. Desconstruir nossa percepção embotada, durante períodos de tempo
pré-determinados, devia se transformar num exercício usual, uma forma de treinarmos
para perceber melhor a realidade…
A
sirene estridente de uma ambulância que passava do outro lado da praça trouxe
João, abruptamente, à realidade “normal”, ou embotada, isto é, a praça onde
estava sentado voltou a ser a praça conhecida de sempre, localizada na
cidade que, sem dúvida, tinha voltado a
ser a cidade de sempre. Até mesmo a neblina havia desaparecido.
Então,
lembrou-se de Lennon que, no final de “God”, onde, depois de anunciar que o
sonho havia acabado, dizia “então, meu caro amigo, o negócio é seguir em
frente”, ou algo parecido com isso. De qualquer forma, decidiu seguir em
frente, e bem em frente havia um grande shopping cujas lojas, àquela hora da
manhã, começavam a abrir as portas. Enquanto entrava naquele local ainda quase
deserto, lembrou-se de que, alguns anos antes, a construção daquele shopping
naquele bairro e de um john_lennonenorme hipermercado em outro bairro havia
começado a definir a cara que aquela cidade tinha hoje. Não era por acaso que
os dois locais em que foram edificados os dois empreendimentos estavam,
originalmente, reservados para parques, quadras esportivas e áreas de
convivência. Não era por acaso que nos dois locais surgiram um enorme shopping
e um grande hipermercado. Não era por acaso que ele gostava da neblina que
parecia tornar uma outra cidade possível, pelo menos em sua cabeça.
Mas
nem tudo estava perdido. Dentro do tal shopping, numa improvável prateleira dos
fundos de uma livraria, um também improvável livro novo de Bukowski, “Ao sul de
lugar nenhum”, com contos inéditos. João tinha praticamente certeza de que não
havia mais nada publicado de Bukowski que ele ainda não tivesse lido. No
entanto, ali estava a evidência de que isso não era verdade. Comprou o livro e
foi embora da porra do shopping, com a sensação de que tinha se vingado de
alguém, talvez do sujeito que havia construído aquela merda.
E
como nem tudo estava perdido, ele logo divisou, algumas ruas depois, a placa do
hotel onde ele e ela haviam passado uma noite, anos antes, na verdade uma noite
de sábado para domingo. Lembrou-se, então, de que naquela noite de sábado eles
haviam ido passear no tal shopping e ele tinha a sensação, naquela noite, de
que estava numa outra cidade. Mas não se tratava de nenhum daqueles momentos de
percepção alterada. Ao contrário, a
impressão era causada por dois fatos bem concretos. Um deles era que, pela
primeira vez, ele e ela iriam passar uma noite inteira de sábado juntos, o que
lhe dava a inusitada sensação de que eram um casal de verdade, e não dois
foragidos da justiça, como em geral vinham se sentindo na época. O outro motivo
era que ele jamais havia entrado, até então, naquele shopping. Assim, juntando
essas duas coisas, era como estar passeando em outra cidade.
E
lá estava a placa com o nome do hotel daquela noite de sábado. E lá estava ele
olhando para a placa e pensando em quanto tempo havia se passado desde aquele
dia, e como tinha sido bom passear com ela naquele dia, jantar com ela no
quarto do hotel naquele dia, fazer amor com ela naquele dia, acordar ao lado
dela e, então, descobrir que já era domingo e que ambos teriam que se despir de
suas capas de super heróis e voltar ao mundo real. Bem, pensou ele, o mundo
real agora não era tão punk como naqueles dias. Mais uma vez, João concluiu que
nem tudo estava perdido.
Quando
deu por si, estava em outra praça, bem distante da primeira, se aproximando do
porto pelo lado inverso da ilha. Sentou num dos bancos, observou uma velha
mendiga dormindo abraçada ao seu saco de farrapos e bugigangas. Então João
olhou para suas mãos e percebeu várias pequenas manchas escuras e claras. Não
havia dúvida, ele estava mesmo ficando velho.
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JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.
(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)
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