Tuesday, September 1, 2015

UMA COCA COM AMÂNCIO AMARO (por José Luiz Tahan)



Para mim nunca foi fácil lidar com pessoas de áreas mais técnicas, formais.

Estava no Rio, na bela praia de Botafogo, para uma reunião de negócios. O motivo era nobre: um livro sobre o Pelé. 

Estava cheio de esperança e ao mesmo tempo apreensivo, meses já haviam se arrastado desde o primeiro papo sobre aquele patrocínio. 

Fazíamos um livro de fotos e buscávamos uma grande empresa para apoiar aquele projeto real.

Para mim nunca foi fácil lidar com pessoas de áreas mais técnicas, formais. Exatamente a linha daquela equipe. Expressões em inglês também eram muito utilizadas, quase tanto quanto a nossa rica língua portuguesa. Me assombra até hoje, por exemplo, o termo work in progress, algo como "em andamento, inacabado".

O clima era tenso. Talvez pela influência da matriz americana, a negociação era sempre mediada por advogados e, ainda por cima, sempre que eu tinha alguma nova proposta de contrapartida, ela travava entre a mega empresa e o maior jogador de todos os tempos. 

É, a vida não estava fácil.

Claro que eu estava ansioso, mas ao mesmo tempo estava animado, afinal os dois lados já haviam mostrado interesse no negócio. 

De um lado o Pelé, do outro, a Coca-Cola.


Nesse lindo dia fui dar uma olhada na baía de Botafogo antes de ir ao escritório, caminhava lentamente e pensava em coisas boas, queria avançar rumo à assinatura do contrato.

Chegando ao moderno prédio fui retirar o crachá de visitante e avisar a minha subida à recepcionista. 

Recebi a notícia de que o sistema estava fora do ar, ela poderia informar a chegada, mas eu não poderia subir, pois o crachá não abriria a porta do andar.

Já se formava uma boa fila de cariocas, que debochavam da fragilidade do sistema, e eu, tamborilando com os dedos no balcão, aguardava alguma mudança na situação.



Como nada acontecia me dirigi a uns assentos num canto do saguão e resolvi continuar a leitura do livro A Paixão de Amâncio Amaro (Agir), de André Laurentino, escolhido para me fazer companhia na viagem.

Este é um dos livros mais especiais que já li, por uma série de fatores. 

Quem me indicou o André Laurentino foi o Milton Hatoum, quando o consultei sobre um bom escritor para convidar para a primeira jornada da Tarrafa Literária, evento que organizo em Santos. 

Além da sugestão do Milton, lembrei que não havia reparado no livro porque bons clientes o compraram antes de eu poder conhecer a obra.

Pois eu estava na parte final do livro, que é divertido sem ser humorístico, é romântico sem ser piegas e é nordestino sem ser caricato, como numa novela global.

Enquanto aguardava o sistema voltar, eis que tenho um sinal, para mim premonitório do desfecho daquela tarde. 

No meio da trama, o personagem, que era um pequeno empreendedor, havia acabado de investir todos os seus recursos e recebia uma reluzente máquina de fazer garapa quando é surpreendido com a vinda retumbante e impiedosa da...Coca-Cola! 

Exatamente no mesmo dia do início do seu negócio, o refrigerante negro, gelado e borbulhante conquista os boquiabertos habitantes do lugarejo.

Era um sinal! 

Depois de quase uma hora de espera o sistema volta a funcionar e eu subo confiante para a reunião. Ao ser recebido disparo com aquela voz ligeiramente aguda dos ansiosos.

Você conhece o André Laurentino? Puxa, é inacreditável, li uma passagem em que a coca e a garapa...fui interrompido educadamente com a mão no meu braço. 

Vamos reler o contrato? Está work in progress.





José Luiz Tahan, 41, é livreiro e editor.
 Dono da Realejo Livros e Edições em Santos, SP,
 gosta de ser chamado de "livreiro",
 pois acha mais específico do que
 "empresário" ou "comerciante",
 ainda mais porque gosta de pensar o livro
 ao mesmo tempo como obra de arte e produto.
 Nas horas vagas, transforma-se
 no blues-shouter Big Joe Tahan.

(a ilustração acima é do Seri)



No comments:

Post a Comment