Thursday, July 7, 2016

LO-FIDELITY ALLSTARS (OU UMA CAIXA DE POLARAMINE E TRÊS CONHAÇÕES NA CAVEIRA) (por Marcelo Rayel Correggiari)



“(...) As transformações das práticas de leitura, as novas modalidades de publicação, a redefinição da identidade e da propriedade das obras, ou o imperialismo linguístico estabelecido sobre a comunicação eletrônica são todos pontos da maior importância em nossa época. Há diferentes maneiras de abordá-los: a descrição das técnicas, a economia da edição, a sociologia das práticas, a análise dos processos cognitivos. Minhas próprias competências levam-me a situar os diagnósticos das transformações contemporâneas numa história de longa duração da cultura escrita. (...)”
[CHARTIER, Roger. “Os desafios da escrita”. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. – São Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 7-8]

“(...) O tipo de “hospitalidade à crítica” característico da sociedade moderna em sua forma presente pode ser aproximada do padrão de acampamento. O lugar está aberto a quem quer que venha com o seu trailer e dinheiro suficiente para o aluguel; os hóspedes vêm e vão; nenhum deles presta muita atenção a como o lugar é gerido, desde que haja espaço suficiente para estacionar o trailer, as tomadas elétricas e encanamentos estejam em ordem e os donos dos trailers vizinhos não façam muito barulho e mantenham baixo o som de suas TVs portáteis e aparelhos de som depois de escurecer. Os motoristas trazem para o acampamento suas próprias casas, equipadas com todos os aparelhos de que precisam para a estada, que em todo caso pretendem que seja curta. Cada um tem seu próprio itinerário e horário. O que os motoristas querem dos administradores do lugar não é muito mais (mas tampouco menos) do que ser deixados à vontade. Em troca, não pretendem desafiar a autoridade dos administradores e pagam o aluguel no prazo. Como pagam, também demandam. Tendem a ser inflexíveis quando defendem seus direitos aos serviços prometidos, mas em geral querem seguir seu caminho e ficariam irritados se isso não lhes fosse permitido. Ocasionalmente podem reivindicar melhores serviços; se forem bastante incisivos, vociferantes e resolutos, podem até obtê-los. Se se sentirem prejudicados, podem reclamar e cobrar o que lhes é devido – mas nunca lhes ocorreria questionar e negociar a filosofia administrativa do lugar, e muito menos assumir a responsabilidade pelo gerenciamento do mesmo. (...) Quando vão embora, seguindo seus próprios itinerários, o lugar fica como era antes de sua chegada, sem ser afetado pelos ocupantes anteriores e esperando por outros no futuro; embora, se algumas queixas continuarem a ser feitas por grupos sucessivos de hóspedes, os serviços oferecidos possam vir a ser modificados para impedir que as queixas sejam novamente manifestadas no futuro. (...)”.
[BAUMAN, Zygmunt. “1 Emancipação”, in: “Modernidade líquida”. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 31-32]

“(...) Eu sou homem de Wagner, eu sou homem de Shakespeare. O que é que eu tenho a ver com Mamonas Assassinas?! (...) Olha, se isso é estar vivo, estou tecnicamente morto! (...)”
[Paulo Francis, programa Manhattan Connection, em torno de março de 1996]



Oliviero Toscani, fotógrafo e publicitário italiano, ficou internacionalmente conhecido por assinar a parte imagética das campanhas um tanto ‘sui generis’ da empresa de moda italiana Benetton, nos anos 1990. Em entrevista recente a um canal de televisão brasileiro, Toscani sapecou mais uma: de que arte (ou cultura) e política tendem a se unir. O pensamento se deve a um raciocínio que soa até simplório de tão elementar que é: o político tem ‘o poder’ e o artista detém ‘a força de comunicação’. É ambição do homem/mulher de vida pública possuir uma capacidade mágica de potência de comunicação com as massas que o artista tem, enquanto o artista deseja ardorosamente interferir na vida de quem for como se tal interferência pudesse se operar como uma “legis”, uma lei (o poder). Casamento temerário em que, lá pelas tantas, apresenta seu café-da-manhã com os papéis do decreto de divórcio sobre a mesa para as devidas assinaturas (ou, dependendo da parca resiliência de uma das partes, um ‘trem à revelia’). O fracasso desse casamento: um destrói reputações enquanto o outro corrompe a virtude. São naturezas diferentes para fins pouco nobres. O afastamento dos dois é que permite um garantir a segurança institucional para um bem-estar geral enquanto o outro fornece a liberdade para que cada um finalmente enfie a cabeça nas nuvens. Logo, não são farinha do mesmo saco. Um artista e um político sentados à mesma mesa por ofício, exceto nas situações de brevidades desinteressadas para discussões regadas por um bom cafezinho em torno de temas um pouco mais elevados, liguem o radar que não vem boa coisa por aí. Ainda não inventaram legitimação mais pertinente a qualquer petição que se avizinhe do que aproximar um discurso à linguagem literária. Por que ainda lemos e/ou produzimos Literatura no novo milênio? Porque é a Literatura que ainda guarda a possibilidade de que alguma ideia absurda possa ganhar força e adesão nos intestinos da população. O discurso literário, ou próximo da Literatura, permite ao homem de vida pública perpetrar as piores barbaridades e ainda hipnotizar a massa populacional no sentido de acreditar piamente que tal sandice é o melhor dos mundos. O homem de vida pública não curte Literatura, nem o discurso literário: ele ambiciona a mais profusa capacidade de obter adesão por intermédio de análises e técnicas que, talvez, a teoria literária é capaz de produzir. Não se trata de arte propriamente dita, mas de estratégia para a vaidade. Ou a estratégia para a vaidade como uma arte, ou a arte da vaidade como uma estratégia para fins meramente privados. O rodeio suíno do homem de vida pública: nem sempre o gesto do artista está ombro-a-ombro com o seu talento artístico, associados, lado-a-lado. Não são farinha do mesmo saco. Discurso e gesto são coisas tão distintas que receberam vocábulos próprios. Se fossem a mesma coisa, teriam o mesmo nome. Entre o nascimento do primeiro e a morte do segundo, a beleza vai para a sarjeta. O que resta é a desolação do imperfeito projeto humano em efetivar sistematicamente a sodomização de qualquer ‘virtue’ que se elevou de algum talento. Isola-se, desidrata-se, desconstrói-se até que nada mais vingue. Sem a menor garantia de que entre algo de valoroso em seu lugar. O terreno é tomado por incontáveis penduricalhos que erguem uma quantidade incontável de tralha sem a menor reflexão sobre a pertinência da plateia e seus anseios (ou, pelo menos, entender porque ela chegou a esse ponto). O Ministério da Mensagem Fria: joga-se o pó sobre um litro d’água, gira-se a colher umas três, quatro vezes, e a beberagem está pronta para agredir a garganta. E, assim, se vai a paciência da construção, da construção das interações e dos relacionamentos. As coisas jogadas, sem noção ou nexo, sem a cura do tempo. Lamenta-se que alguns artistas, bem como políticos, nessa era do açodamento, careça do que é feita a arte: apenas, e exclusivamente, para a materialização do fora pelo gesto, e não para a legitimação do discurso por intermédio da uma eventual proximidade com o literário. O gesto unicamente para a materialização da beleza, e não pelo sabor do empreendimento isoladamente. Esse som ao fundo não é polifônico como se quer, ou polissêmico, caso desejado. É somente um ruído estridente e histriônico, um barulho que tomou o lugar da mais bela elegia. Um barulho que nos acompanha nesse caminho tortuoso rumo ao nada.



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


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