Wednesday, July 20, 2016

O HOMEM DA RUA (por Marcelo Rayel Correggiari)





(...) Faça você mesmo! Seja seu próprio freguês! Faça você mesmo, ignore todo mundo, me ignore, ignore o Peter, ignore todos! Faça você mesmo e... é tudo baseado numa filosofia. E a filosofia por trás de todas essas capas, não somente a música, é baseada em algo que Sid Vicious disse, que não dá para dizer nesse programa, ele disse: “(...) Quando você faz sua música, você pensa no homem da rua. Hoje em dia, encontro o homem da rua e ele é um... ! (...) * ” Pense nisso. (...)
(Tony Wilson, em entrevista com Peter Saville, para Jools Holland, no programa “Later with Jools Holland”, em torno de maio de 2006)



Anthony Howard Wilson (20 de fevereiro de 1950, Pendleton, Lancashire, Reino Unido - 10 de agosto de 2007, Withington, Manchester, Reino Unido) era apresentador em uma emissora de televisão regional de Manchester chamada TV Granada. Seus programas eram uma mistura de ‘Maurício Kubrusly’ com ‘Canal Off’ dentro daquilo que chamamos de ‘padrão jornalístico da BBC’, algo que, nos anos 1970, era inusitado. Se estivesse vivo hoje, passaria fome: principalmente nos denominados ‘canais fechados’, o que ele costumava fazer virou ‘arroz-de-festa’.


Entre um programa e outro, também apresentava um show musical que era uma espécie de ‘Globo de Ouro’ com talentos locais. Uma febre aos sábados à tarde para uma juventude que morava numa cidade mais feia do que bater na mãe. Num lugar sem grandes coisas para se fazer, a audiência era considerável.


O segundo show dos Sex Pistols no Lesser Free Trade Hall, em Manchester, em 4 de junho de 1976, é considerado um ‘divisor de águas’ na história da música pop inglesa. Primeiro porque os Sex Pistols faziam turnê sendo proibidos de tocar em boa parte das cidades do país (uma espécie de “... não queremos vocês quatro por perto!”, quase sempre com polícia na porta). Segundo, porque os principais nomes, desconhecidos até então do que chamaríamos de pós-punk e/ou rock britânico dos anos 1980, estavam na plateia.

Além do próprio Tony Wilson, reza a lenda que a assistência contava com Mick Huckanal (futuro vocalista do Simply Red), o maluco e genial Martin Hannet (o engenheiro de som que deu ao Joy Division seu DNA acústico), Alan Erasmus, Johnny Marr (depois guitarrista do The Smiths), Ian Curtis, Bernard Summer e Peter Hook (que após recrutarem Stephen Morris, fundaram o Joy Division).

O próprio Peter Hook, emocional ao seu modo, gostou tanto daquela massa de ruído e fúria que cogitou: “Gostei! Isso é tão ruim que eu mesmo posso fazer...”.


Foi Tony Wilson que levou os garotos do Joy Division para a primeira aparição na TV, executando o clássico “Shadowplay” (e, convenhamos, com a performance e jeito de cantar estranhos do pacato Ian Curtis, não havia outro resultado que não fosse o status de herois locais ombro a ombro com o Buzzcocks).

Tony Wilson aproveitou o potencial da cena em Manchester e fundou a lendária Factory Records, uma gravadora que deteve bem próximo de 50% dos melhores e principais nomes do rock inglês nos anos 1980. Segundo testemunhas, Tony Wilson assinava o contrato com as bandas substituindo a tinta da caneta com o próprio sangue (literalmente!).


Por trás da imagem de ‘tresloucado’, Tony Wilson era um sujeito de opinião, personalidade e visão ‘da coisa’, de negócio. Era deliciosamente ‘porra-louca’, mas com uma capacidade de leitura bem próxima da ‘genial’!

Imperfeito, como qualquer um. Magoou gente à beça por alguns gestos (mais privados do que públicos) inconsequentes. Porém, tinha uma capacidade de análise rápida, de bater o olho e ‘ler a cena’, que era de dar inveja. Não era uma ‘casca vazia’: muito da filosofia que norteou seu trabalho produz frutos até hoje, nove anos depois de seu desaparecimento.

Essa não tão brilhante Mercearia, em sua modesta ‘modestice’ de apenas abordar o que já foi, quem sabe, ambiciona olhar o que ainda será.

E utilizando o ‘Tony Wilson mode’ de tentar antever alguma coisa, por pouco não jogou a bola-de-cristal na parede. É de se ouvir a voz de Tony em algum lugar escondido do cérebro: “Great artist?! Great person?! Ah... bollocks!!!”.


O que Sid Vicious disse em sua lendária frase, amplificada por Tony Wilson, é o que hoje chamaríamos de “essência”: “(...) Faça você mesmo! Seja seu (próprio) freguês! (...)” nada mais é do que fazer aquilo que tem a sua cara, e não aquilo que eventualmente faça sucesso.

Não há mal algum em qualquer arte, especialmente a literatura (e seus postos avançados, o teatro e o cinema), ter em mente alguém quando se materializa a obra. É possível escrever qualquer coisa considerando um ente específico (base da tríade comunicativa “emissor-mensagem-receptor”). Contudo, nem sempre é de bom juízo ter apenas em mente a agradabilidade do receptor quando o emissor materializa sua mensagem.

Isso sem contar que o receptor pode ser um(a) meeiro(a), o que complica consideravelmente a forma como essa mensagem encontra seu público (quando encontra!). Que todos podem ser meeiros, não há segredo algum nisso. Mas nem todos são Tony Wilson.


Edição, curadoria, entre outras bossas, exigem uma abrangência de leitura que, se não for bem feita ou devidamente clara em sua efetivação, pode jogar tudo num lugar comum. Clap-clap: Tony Wilson colocou a inexpressiva cidade de Manchester no Mapa-Mundi. É possível se colocar qualquer cidade no mapa, finalmente?! Isso é impossível? Quem o faria?

O que Wilson tenta transmitir na epifânica frase de Sid Vicious é que não dá para fazer nada em termos artísticos sem algum tipo de conceito por trás. Os grandes fracassos de Tony são oriundos dessa experiência: a de não se conectar com a própria essência na hora de se formar um conceito. Só porra-louquice não funciona.


Um dos grandes fracassos de Tony Wilson foi o igualmente lendário Hacienda: uma casa que foi o útero das ‘raves’ nos anos 1980-1990, que resgatou toda a cultura ‘club’ e de música eletrônica desenvolvida nos dias de hoje, mas que era infestada por gangues, tráfico e até tiroteios na porta. Anos mais tarde, quando o Tony conversava com o antigo sócio, o vocalista do New Order, Bernard Summer, disse: “(...) Pelo amor de Deus, Bernard... Se houvesse um botão para ser apertado, o Hacienda jamais teria existido. (...)”. Só que Summer, na época em que se engendrava a confecção da mítica casa noturna, disse: “Me mostra o botão”.


Não se discute aqui o sentido da coisa. O que é relevante seria o conceito. O homem da rua jamais daria o sentido da coisa porque ele não sabe o sentido da coisa. Agora, quem faz, ou quem é meeiro(a), necessariamente precisa se debruçar sobre a elaboração de algum conceito, mesmo que seja um bem raso e insípido.

Erguer uma casa noturna, uma galeria de arte, uma casa de espetáculos, um teatro, um bar, um festival, um restaurante, sei lá... o que for, dentro de uma área deteriorada da cidade, é amar o ‘fôlego curto’ das coisas. É tralha: em breve, o empreendimento vira uma tranqueira, e se transforma em tranqueira porque não tem conceito. Sentido zero, para o bom e velho: “Tá! Mas... e aí?!”.

É uma confecção de algo sem devir. Dicas Dollynho: “Fazer algo com algum desdobramento, pode ‘çim’, amiguinho!”. Qual o arcabouço deixado para os mais novos, aqueles que nos sucederão? Isso aqui é exibição ou tem algum propósito?


O Hacienda se transformou numa horrenda dor-de-cabeça porque um monte de espíritos-sem-luz baixavam lá. Tony questionava qual o sentido, ou conceito, para mantê-lo aberto, e seu sócio, Summers, só queria apertar o botão. Hoje, o local onde funcionava a casa noturna é um prédio residencial. Apenas uma placa na entrada do condomínio avisa ao turista que ali funcionou, nos anos 1980, o famoso clube.

A adesão pretendida pelo(a) artista não está na Arte em si, mas na indústria do entretenimento. Talvez a indústria necessite da adesão, uma vez que visa lucro. A Arte, não. Arte é Arte, não é emprego (apesar da trabalheira que dá), nem garante transformar qualquer pessoa numa lenda quando não mais estivermos aqui.

Arte, na essência, não dá lucro, não garante rendimentos, nem salário, muito menos tira alguém do anonimato. Ela é somente Arte, nada mais do que isso.

A Arte é usada como uma das várias ferramentas da indústria do entretenimento, essa, sim, sequestrada pela eterna necessidade de adesão. E essa adesão vem do homem da rua que frequentemente desconhece o sentido das coisas.

Afastar-se da própria essência, visando adesão simplesmente, prejudica a leitura. A Arte se faz pelo peso da essência que cada um possui. Fazê-la tendo em mente o homem da rua é temerário: afinal, seria Arte ou indústria do entretenimento?


Se nos anos 1970, o homem da rua já não era muito confiável, nos dias atuais e
le se tornou uma gigantesca incógnita, mas somente importante para a indústria do entretenimento, não para a Arte. Quando a Arte tem em seu conceito a essência que cada um possui, ela se estabelece, sem vistas a sucesso, repercussão, fama ou lucro.

O homem da rua não conhece o sentido das coisas. É incapaz de centrar um artista na elaboração de um conceito. O homem da rua é bem sucedido em nos entregar sinais inequívocos para, lá na frente, afirmar que “... não é bem por aí”, e agir opostamente a todos os indícios deixados ao longo de certo período.

O homem da rua pode atentar contra nossa essência, no sentido de erguer uma cortina de fumaça que prejudica consideravelmente uma leitura calibrada daquilo que nos cerca. O homem da rua pode ser um poço sem fundo de destruição e tristeza.




*A lendária frase referida por Tony Wilson ao final da entrevista para Jools Holland é de Sid Vicious (nome artístico de John Simon Ritchie-Beverly, Londres, 10 de Maio de 1957 — Nova Iorque, 2 de Fevereiro de 1979), baixista da também lendária banda de rock punk Sex Pistols (Londres, entre 1975 e 1978). Diz a frase:
(...) Quando você faz sua música, você pensa no homem da rua. Hoje em dia, encontro o homem da rua e ele é um tremendo pau-no-cu! (...)



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


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