Wednesday, October 19, 2016

NOSSO CORRESPONDENTE NA "DESERT TRIP" COMENTA OS SHOWS DE DYLAN E DOS STONES



Meu primeiro show de Bob Dylan foi o Hollywood Rock de 1990 onde ele, coincidentemente, abriu para os Rolling Stones. Era um suposto fã de Dylan que não tinha idade suficiente para ter ouvido seus principais discos quando foram lançados e só conhecia suas musicas mais famosas. O publico era dividido entre gente como eu, gente que escutou os discos no lançamento e alguns fãs de verdade.

Lembro pouquíssimo do show, o que ficou muito forte foi a desilusão de ir a um show de um musico famoso e não reconhecer nenhuma musica. Como até hoje é costume, Dylan alterou os arranjos de todas as musicas, tornando até as mais conhecidas irreconhecíveis ao publico. Jurei que nunca mais assistiria a um show dele.

Dezoito anos depois Dylan viria tocar no Via Funchal, em São Paulo. Seria um show sentado, para poucas pessoas, com ingressos caríssimos. Não cogitei ir, mas um amigo mais jovem, que sentia mais ou menos a mesma coisa que eu me 1990 insistiu muito e resolvi fazer companhia a ele.

Eu havia mudado um pouco, mas o show de Dylan continuava o mesmo, musicas de discos mais recentes, poucas musicas clássicas e mesmo assim com arranjos trocados. No bis tivemos Like a Rolling Stone e All Along The Watchtower em versões irreconhecíveis.

Saí do show pensando se um artista que continua em atividade deveria se render ao publico, tocando as musicas mais famosas, apesar de ter publicado muitos outros trabalhos depois das faixas de sucesso. Os trabalhos mais recentes não deveriam ser mais relevantes pra ele? Esse questionamento fez com que eu tentasse compreender o show melhor e acabou produzindo uma mistura de sensações, que, se não tornou o show memorável, fez com que ele ficasse guardado juntamente com a indagação da relevância das musicas. Já o meu amigo, tal qual eu em 1990, odiou o show.

Encontrei uma declaração de Dylan que exemplifica muito bem isso, “um artista nunca deve ser refém do publico e sim o publico que deve enfrentar os desafios propostos pelo artista". Pois os shows de Dylan são exatamente isso.


Cheguei ao Desert Trip com grande expectativa por mais um show de Dylan, como ele se comportaria num show tão badalado e pra tantas pessoas? Como seria um show dele depois da recente vitória no prêmio Nobel de literatura? Como eu encararia um novo show depois de 2008?

Quando à primeira pergunta, Dylan parece não se importar nem um pouco com a quantidade de pessoas. Continua a não se dirigir ao publico, nem mesmo um obrigado. Mas talvez o Prêmio Nobel o tenha deixado um pouco menos melancólico. Achei o setlist um pouco mais acessível. Ele abriu o show com a divertida Rainy Day Women #12 & 35, emendou as reconhecíveis Don’t Think Twice, It’s All Right e Highway 61 Revisited, seguida por uma irreconhecível It’s All Over Now, Baby Blue. Pra mim essa sequencia parece ter sido um sinal de que o Nobel mudou o seu humor, não esperava algo assim, muito menos logo de cara. Mas, com certeza, pode ter sido autossugestão.

O telão apresentava imagens em preto e branco do palco, muitas vezes com uma câmera que enquadrava ele e a banda de costas, somente com uma iluminação amarelada no palco, quase sempre com ele em pé ao piano, criando uma atmosfera intimista e nostálgica.

Não sou um grande conhecedor de Dylan, portanto recorri ao set list para listar as próximas canções, High Water (for Charley Patton), Simple Twist of Fate -- que é conhecida, mas não reconheci na hora -- e Early Roman Kings, um blues num arranjo bem Hoochie Coochie Man.

Novamente o show cresce, com Tangled Up in Blue -- num arranjo incrível, meio Suspicious Minds -- Lonesome Days Blues e a belíssima To Make You Fell My Love, que propus ao Shazan identificar, e ele disse que não foi possível...

Para fechar o show tivemos Pay in Blood, Desolation Row (num arranjo poderosíssimo), a bonita Soon After Midnight e Ballad of a Thin Man (num outro arranjo poderoso).


O público, que se dispersou bastante, estava claramente a espera dos Rolling Stones, mas, obviamente, pediu bis, e foi atendido com uma versão de Like a Rolling Stone muito próxima da original e o cover Why Try to Change Me Now, de Cy Coleman, incluída no recente disco de musicas gravadas por Frank Sinatra, fechando o show de forma muito digna.

Depois de 26 anos e três shows consegui aproveitar bastante um show de Dylan. Ele teve que empurrar várias coisas goela abaixo, mas acho que, dessa vez, ele cedeu um pouquinho também.


Fiquei pensando no extremo que seria ver um show como o que eu acabei de ver e, em seguida, os Rolling Stones. Não poderia haver maior contraste. Um artista que nem agradece o publico e uma banda que se preocupa até em demasia com o publico.


Assisti aos Stones duas vezes nos últimos três anos antes desse show e o sentimento é que eles estão à procura do setlist perfeito, que mais agrade os fãs. As alterações entre os shows são mínimas, deixando as performances muito parecidas e repetitivas, pra quem assiste a mais de um show da mesma turnê. As surpresas são poucas.

Fiquei pensando sobre as contradições dos dois artistas, até que os Stones entraram no palco. A partir daí, esqueci tudo que tinha pensado, embarquei totalmente no show.

Não há muito que falar sobre o show, como eu disse, os shows dos Stones, ultimamente, são bastante parecidos, o formato, o número de musicas, as tradicionais duas músicas no meio para o Keith Richards, a intenção é tentar agradar ao máximo ao publico, sem ousar muito. Neste show a ousadia ficou por conta da ótima Sweet Virginia, que acredito eles não toquem há bastante tempo e a novidade ficou para Just Your Fool, um blues, cover de Buddy Johnson e Sua Orquestra, que sairá no novo disco dos Stones, só com covers de blues.

Apesar de tudo, é sempre estimulante e muito prazeroso ver os Stones, afinal, poucas bandas no na história da musica tem condições de apresentar um setlist desses.


Jumpin’ Jack Flash
Get Off My Cloud
It’s Only Rock ‘N’ Roll (But I Like It)
Tumbling Dice
Just Your Fool
Sweet Virginia
Angie
Live With Me
Paint It Black
Honky Tonk Women
You Got The Silver (Keith Richards)
Little T&A (Keith Richards)
Midnight Rambler
Miss You
Gimme Shelter
Start Me Up
Sympathy For The Devil
Brown Sugar
BIS
You Can’t Always Get What You Want
(I Can’t Get No) Satisfaction


No final saí com a impressão de que o contraste abrilhantou a experiência do Desert Trip, e acredito que essa seja a tônica dos três dias do festival. Todos os artistas têm uma história que se confunde com a história do rock, mas, justamente pela longevidade das carreiras, trilharam caminhos diferentes, muitas vezes como pioneiros, e acabaram se colocando em posições bem diferentes.



Fábio Campos convive com filmes e música
desde que nasceu, 50 anos atrás.
Seus textos sobre cinema passam ao largo
do vício da objetividade que norteia
a imensa maioria dos resenhistas.
Fábio é colaborador contumaz
de LEVA UM CASAQUINHO.


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