Diziam os antigos que “(...) Deus escreve certo por linhas tortas. (...)”
Ainda que estejamos imersos em tamanha dúvida se a máxima possui algum traço de ‘verdadeiro’, há de se tirar alguma vantagem das contingências por mais amargas que sejam.
Chegar a certo ponto na vida sem filhos e ex-mulher(es) pode oferecer certa leveza na agenda: há mais flexibilidades do que constrangimentos.
Dormir na cozinha de um hotel em Londres esperando a desocupação de um quarto na alta temporada é uma dessas peripécias que só um ‘avulso’ pode ter: tipo de experiência que vale uma bela narrativa, mas um tremendo transtorno se a mulher e os filhos estiverem por perto.
Dormir na cozinha de um hotel administrado por paquistaneses em King’s Cross à espera de um quarto, tendo um ‘bell-boy’ ou recepcionista orando para Alá sem a menor cerimônia lá pelas tantas da noite, é uma vivência que só os ‘avulsos’ podem ter.
“(...) ... mulher! Tire as crianças daqui! (...)”. Já se é possível perceber que, acompanhado, nem pensar.
O ‘avulso’ tem a vantagem de dormir em qualquer banco de rua se a balada avançou madrugada adentro e o hotel está meio longe do local da esbórnia. A mulherândia ‘mutcho loka’ vestindo bustiê num tremendo outono londrino, correndo e gritando no meio da rua a plenos pulmões: carteira caindo da bolsa, os ‘mano’ só no vapor às cinco ‘de la mañana’ e irlandeses com a caveira cheinha (que novidade!) reclamando do frio.
Típico cenário que, na companhia de mais alguém,... ‘sem chance!’.
O que também valeria dizer que a Londres dos pacotes de viagens preferenciais do(a) querido(a) freguês(a) são um trocinho bem insosso: tão estéril quanto um bisturi após horas de autoclave.
Vida livre, mesmo, pensamos que só para aqueles que não casaram e não tiveram filhos. O resto é fumaça...
Entre outras vantagens dos ‘avulsos’ está vagar sem destino certo por qualquer cidade do mundo e parar na primeira birosca que estiver com a porta aberta. O ‘avulso’ entrega para Deus sem telefonemas ou mensagens de whatsapp a fim de dar o ar da graça.
Sem essa de saber o que as crianças estão fazendo... definitivamente largado no mundo.
É comemorar o aniversário de amigos cujos laços perduram há mais de 30 anos. Foi o caso do ‘níver’ do José Eugênio, 46 aninhos celebrados em famigerado bar de Enguaguaçu.
A Turma do Barão (do Rio Branco) é quase um ‘case’ de sucesso daquilo que em países anglófonos é chamado de “oldboys”: os egressos de uma determinada turma que, de tempos em tempos, se reúnem para o debate sobre os novíssimos desafios de um mundo cada vez mais perturbado.
Há vários desses “oldboys” espalhados pela cidade. De bate-pronto, temos notícias da turma do Olavo Bilac, do Primo Ferreira e do Liceu São Paulo também na mesma ‘vibe’. Costuma ser divertido, engraçado, principalmente porque tem sempre um ‘bas fond’ à espera.
Aniversário do Eugênio rolando, um ‘auê’ do ‘cazzo’: uma zoeira de músico tocando, gente cantando, ‘tiozões da sukita’ dando rasante e uma cerveja gourmet da família Conti simplesmente britânica... ‘da hora’! Sem contar com uns salientes bolando séria estratégia para abordar um belíssimo casal de lésbicas numa mesinha logo na entrada.
Homem é tudo palhaço...
Dos “oldboys” naquela noite, apenas os ‘quatro cavaleiros do apocalipse’ seguiam firmes ao lado da caixa de som: duas baronesas e dois barões. Lá pelas tantas, sem ninguém entender nada por causa da música alta, a Cláudia puxou do André um assunto deveras estranho, mas que, dadas as circunstâncias, tudo bem... ‘tava’ valendo! Um tal de “cará-do-meio”.
Estarrecidíssimos ficamos ao constatar a ampla prática do tal “cará-do-meio” em boa parte das panificadoras dessa combalida ilha. No fundo, não deveríamos nos surpreender tanto: afinal, em terra de farmácias e pet-shops, só pedir o “cará-do-meio” não se configuraria... assim... uma grande aberração.
O André explicou que nas padarias perto da casa dele, bem como em boa parte dos estabelecimentos similares nos bairros da orla, a freguesia pede os pães de cará que ficam no meio da bandeja da fornada. Aqueles que ficam nas extremidades de cada lateral são preteridos em critérios mais misteriosos que o triângulo das Bermudas.
A gargalhada despirocou! “Hããã?!”. “Ooooii?!”. Até o músico bem ao nosso lado que lutava bravamente com seu banquinho, violão e voz se sentiu incomodado com tamanha risadaria.
- É... o(a) lazarento(a) chega cedo na padaria para ser o(a) primeiro(a) a comprar a porra do “cará-do-meio”!
Mais gargalhadas. Todos ali na casa dos 46 já tinham presenciado em vida o mais amplo espectro de taras possíveis e imagináveis. Mas... “cará-do-meio”?! Aquilo era novidade...
Ao longo das semanas, fizemos a pesquisa e a ‘tradição’ de se buscar intrepidamente o “cará-do-meio” é mais popular do que se pensa. Calcula-se que mais de 65% dos habitantes, na hora de comprar o pão de cará, pedem o “cará-do-meio”.
‘Id est’, “... ser santista...” não é chamar VLT de “linha da máquina”, ou falar “tu”, entre tantas esquisitices totalmente sem açúcar e sal. “... ser santista...” é, ‘über alles’, entregar a própria vida por uma farmácia, por uma ‘pet-shop’ e pelo “cará-do-meio”.
- E aí, Andre?! Quem chega depois...
- ... ah, quem chega depois compra os carás da ponta.
André, um orgulho de amizade por mais de três décadas: por motivos de magnânima sinceridade no ‘grand finale’.
- ‘Tá’! Mas se tu fosse o dono da padaria, ia dizer o quê para quem reclamou que não tem mais “cará-do-meio”?!
- Eu ia chegar e dizer: “Compra essa porra aí, que é o que tem! Porque um outro filho-da-puta igual a você chegou antes e comprou todo o “cará-do-meio” que tinha!”.
Nem é preciso dizer que, no Barão do Rio Branco, a safra de 1985 é a melhor que existe.
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
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