Sunday, March 5, 2017

DESCALABRO! (uma bofetada do passado de Joaquim Ferreira dos Santos)

publicado originalmente em 16 de Março de 2015)

Foi-se o verão sem que ninguém ouvisse durante seus três meses uma única cigarra gritando o fim do dia. Da mesma maneira estão passando esses investigados do Petrolão, sem que ninguém lhes grite nos ouvidos as palavras certas, também desaparecidas como a voz das cigarras.

São uns energúmenos!

Chegou a hora, diante do despautério generalizado, de deixar de lado o bom gosto literário. As novas normas dos manuais de redação estabelecem limites para o palavrório jornalístico. Fazem muito bem. Mas diante dos últimos acontecimentos é preciso usar as palavras gordas de outrora, aquelas que nos vêm de imediato, na fluidez incontrolável do inconsciente coletivo, e, infelizmente, ninguém mais pronuncia.

Sem essa de corrupção e malfeitos! Isso que estamos vendo é um descalabro!

Não é um clube de empreiteiros! Trata-se de um valhacouto de bandidos!

Uma das ordens que envolvem o fazer da escrita é a necessidade de, antes de ela sair de casa, antes de se publicar a coisa, passar um pente fino. Pentear a cabeleira do vocabulário, da gramática, da ordem geral das concordâncias, para que tudo brilhe glostoramente arrumado e não assuste o leitor. Compreende-se. É da índole humana querer posar na moda, up to date, o topete cheio de metáforas e brylcreem sintático. Todos sorriem, abraçados às borboletas nos parágrafos, para a glória do selfie literário.

Há uma obsessão generalizada de parecer moderno e, assim como se faz com o corpo, desidratar as palavras, obrigá-las a uma dieta a que só sobreviverão as magricelas, as anoréxicas de no máximo três sílabas. São palavras-manequins. Ficam bem na foto, secas, joãocabralinas, mas na vida real ninguém quer comê-las, perdão, ninguém quer pronunciá-las, pois não dão prazer, digo, não expressam a verdade sobre o mundo que ora se nos apresenta.

Eu compreendo Danton Jobim, Prudente de Moraes Neto e Pompeu de Souza, bravos jornalistas que no final dos anos 1940 promoveram, diretamente da redação do Diário Carioca, um enxugamento disciplinatório das expressões. Precisavam dar um padrão comum ao texto, torná-lo menos adjetivoso, literoso e cabeludo. Ordenavam ao copidesque que ceifassem coisas como “ladrão contumaz!”.

Olhando em volta, porém, a sensação é que o dicionário em voga não verbaliza mais o pasmo civil diante do despundonor vigente. É preciso encher a boca de novo e trazer de volta essas palavras-desabafo, as mais gordurosas e descabeladas, inclusive, como pedia o poeta, os barbarismos universais. Dar-se-ia preferência às polissílabas proparoxítonas. Elas têm o volume sonoro de um paralelepípedo, pesam, machucam. Servem mais ao que se quer: atirá-las com raiva no quengo de quem merece.

Os acusados de desviar milhões de reais não são apenas formadores de quadrilha, como quer a acusação fria da justiça. Trata-se de uma súcia de ladravazes contumazes! – e é assim, botando-se os bofes dos vocábulos para fora, que a choldra pútrida de patifes merece ser nomeada.

Esses desabafos antigos tinham uma sonoridade aviltante. Ninguém precisava conhecer o seu significado exato para sentir que pocilga cheirava mal e que nela todos seus frequentadores, os porcos que agora se locupletam das riquezas nacionais, deviam chafurdar na lama de suas vilanias.

Essas palavras vinham com um ponto de exclamação embutido, prenhes de indignação e urgência contra o escárnio – mas lá se foi também a interjeição, coitada!, uma bengala que reforçava a repulsa a essa ignomínia atroz.

É uma pena, um verdadeiro acinte, que, assim como os cofres públicos, a língua nacional tenha sido roubada de expressões tão ferozes e necessárias. Além dos rigores da lei, deveriam ser impostas palavras definitivas, como salafrário e sicário, a todos esses desavergonhados do momento – e a sede nacional por justiça teria ainda o gosto dessas pesadas condenações do vocabulário. Isso é um achincalhe!

Bando de sacripantas!


Joaquim Ferreira dos Santos
nasceu no Rio de Janeiro.
Trabalhou como repórter,
crítico de música e show na revista Veja
durante mais de dez anos.
Foi editor das revistas Domingo e Programa,
do Jornal do Brasil.
Em 91, foi editor executivo de O Dia.
Atualmente, é cronista e colunista em O Globo.
É autor de Feliz 1958 - O Ano Que Não Devia Acabar
e O Que As Mulheres Procuram Na Bolsa,
e acaba de lançar a biografia de seu grande amigo
Zózimo Barroso do Amaral,
intitulada Enquanto Houver Champanhe, Há Esperança
(Editora Intrínseca)



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