O que era para ser apenas o registro de uma insólita situação, acabou se tornando uma divertida análise de um fenômeno popular, em pleno século 21: a idolatria de jovens brasileiros pela diva do pop, Beyoncé. Tudo começou quando os diretores (e também produtores, câmeras, etc, etc) Paulo Cesar Toledo e Abigail Spindel perceberam que, meses antes de um concerto que a cantora apresentaria em São Paulo, fãs de várias regiões do país começaram a acampar nas cercanias do Estádio do Morumbi, a fim de garantir bons lugares no dia da apresentação. Note: meses antes.
Munidos de equipamento básico rumaram ao local, tentando registrar de quem se tratavam aquelas pessoas e porque se prestavam a este desconforto por um bom local para assistir ao show. E o que era um simples registro acabou se tornando um premiado documentário, agora em cartaz nos cinemas.
A primeira coisa que se nota – logo nas primeiras sequências – é a origem humilde da maioria daqueles que ali se instalaram. Outra percepção rápida: uma espécie de “negação de realidade” destes fãs. A grande maioria assume nomes e apelidos de origem anglo-saxã, proliferando alcunhas como Rick, Richard, McLean, Electra e Brunet, entre outros. E, é claro, a diversidade sexual que compõem o grupo.
Instalados em barracas, acampam se revezando na manutenção dos primeiros lugares da fila, numa república extremamente organizada e disputada. E entre ensaios de coreografias e personificações (as mais diversas) da cantora americana, relacionam-se sem espontaneidade, a princípio, mas com bastante familiaridade depois que as câmeras deixam de ser alvo de atenção e passam a fazer parte da rotina do grupo. Interessante também é o fato de que eles somente parecem à vontade enquanto pertencentes àquele grupo. As poucas cenas gravadas nas respectivas casas destes protagonistas revelam ambientes difíceis, repressores, quase insalubres para eles. Parentes que não convivem facilmente com suas respectivas opções de vida dificultam bastante este relacionamento.
Outro ponto de tensão que o documentário apresenta – mas que surpreende pelo desfecho – é um quase confronto entre o grupo de fãs e a torcida do São Paulo Futebol Clube, que em determinado ponto chega ao estádio para uma partida de seu time. Um estranho reconhecimento mútuo (cada grupo com sua específica paixão) pacifica a situação.
Esclarecedor e pertinente, mostra um divertido registro de pessoas – que incluem de cabeleireiros a caxeiros de lojas, além de imitadores profissionais da cantora – que querem apenas se divertir e se dar a conhecer, de preferência ao seu objeto de adoração. Não perca!
WAITING FOR B
(Waiting for B - 2015 – 71 minutos)
Direção
Paulo Cesar Toledo
Abigail Spindel
Depoimentos de:
Charles Angels
Bruno Brunet
Rick Caled
Richard Carter
Gabriela Electra
Diego Lima
Vitor Lopes
Junnior Martins
Melina McLean
Rogéio Sousa
Em toda a história norte-americana, talvez um dos períodos mais sombrios e violentos tenham sido os anos 1960, quando aconteceram os grandes embates das lutas pelos Direitos Civis e pela integração racial de escolas e ambientes públicos, incluídos sanitários, bebedouros e transportes. Aos negros, quando disponíveis, eram dispensados lugares e equipamentos de segunda categoria, em condições sub-humanas.
E o documentário “Eu Não Sou Seu Negro” (I Am Not Your Negro, 2016), do diretor haitiano Raoul Peck (de Abril Sangrento, 2005), trata justamente deste período, partindo de material precioso, porém escasso. O roteiro é baseado em textos preparados pelo escritor James Baldwin (1924 - 1987), de 1979 a 1987 (ano de sua morte), para o que seria seu próximo projeto editorial, o livro "Remember This House". No livro, Baldwin iria tratar da vida e da obra de três de seus amigos pessoais que foram figuras fundamentais em toda a luta pelos Direitos Civis, e pereceram justamente por sua militância. Foram eles Medgar Evers (1925 - 1963), Malcolm X (1925 - 1965) e Martin Luther King Jr (1929 - 1968), três ativistas de linhas de pensamento diversas, mas de objetivos convergentes, todos brutalmente assassinados ainda jovens (com 37, 39 e 39 anos de idade, respectivamente), e todos por ativistas radicais cegados por suas doutrinas.
O que é mais impressionante no documentário é o fato de que apenas 30 páginas de material escrito (o legado original inacabado de Baldwin), cenas filmadas de arquivo do autor e de seus objetos de estudo, e abundante material cinematográfico do período – com ênfase em filmes protagonizados por Sidney Poitier e Harry Belafonte, dois dos maiores atores negros do cinema americano – foram capazes de forjar um contundente retrato do período, além de traçar preocupantes paralelos com a atual situação social norte-americana, que deve certamente se agravar frente à política – interna e externa – da nova cúpula governamental do país.
Com narração surpreendentemente contida de Samuel L. Jackson, dando voz a James Baldwin, “Eu Não Sou Seu Negro” traz à tona, com clareza e simplicidade, o complexo caldeirão étnico que compõe a sociedade norte-americana, onde a “supremacia branca” já perde espaço há décadas para a soma das chamadas “minorias”, negros e latinos incluídos. Pertinente e imperdível!
EU NÃO SOU SEU NEGRO
(I Am Not Your Negro – 2016 – 95 minutos)
Direção
Raoul Peck
Roteiro
James Baldwin
Narração
Samuel L. Jackson
Os dois filmes acima
estão em cartaz no
Cinespaço Miramar Shopping
Carlos Cirne é Crítico de Cinema
e há 15 anos produz diariamente
com o crítico teatral Marcelo Pestana
a newsletter COLUNAS E NOTAS,
de onde os textos acima foram colhidos
No comments:
Post a Comment