Isso não é coisa que alguém faça. Estão todos sempre olhando para a tevê, para as vitrines, ou para alguém que passa. Não que eu seja diferente, porém certo dia me peguei olhando para o céu e o vi recoberto de nuvens brancas. Um imenso céu de algodão. E alguém em sã consciência conseguiria ficar olhando nuvem por muito tempo? Com os pés sempre na terra, rapidamente o céu se dissipou, mas eu não devia mesmo estar pra pagar contas e passei a ver nele a imagem invertida da floresta que um dia existiu onde agora pisamos.
Sempre me espanto quando olho uma foto do início da colonização, em que há um caminhão saindo de um túnel de árvores e chegando na esplanada aberta de mata derrubada. É aquela mata, em que se cavava um túnel, que me intriga. A experiência dela não existe mais.
É certo que restaram três pequenas reservas, cada vez menores diante do que a cidade cresce, a ponto de a designação de pulmões verdes já se tornar quase inadequada, quase designação de uma doença. Já tive a impressão de olhar para algumas dessas árvores e receber de volta a sensação de que em sua madeira elas estavam urdindo esquifes. Ah, isso é lá coisa que se pense? É claro que não vão gastar madeira com isso, na era do plástico e até de caixões rosa, como um exposto numa feira de agentes funerários no Guarujá. Esse logo foi contemplado pelas ironias de ser caixão de boneca, como se isso desse a todos a certeza de que nenhum de nós iria entrar numa coisa daquelas...
Eu não devia mesmo estar bem, olhar pra nuvem e ver fantasma, olhar pra árvore e ver caixão...
O certo, porém, é que a sensação já experimentada de entrar na mata intocada, integrando o corpo àquele emaranhado de cipós, respirando o oxigênio puríssimo e fresco que em nada se assemelha aos gases carbônicos e de queima de álcool a que estamos habituados, caminhar pelo chão incerto, encontrar animais inesperados de toda espécie, águas de nascentes límpidas e tons de cores vivas, isso nunca mais.
Essa é a tragédia do espaço habitado – ele vai se transformando, de uma tal maneira que mesmo aquela boca maldita com gorilas, chimpanzés, onças disfarçadas e toda a fauna despenteada que se encontra nesses lugares, onde se tem a desculpa de que se toma café, em poucos anos some com uma rapidez tremenda.
Nasci em Maringá e há década e meia moro em Santos, mas sempre volto. Por isso, outro fato que me impressiona é que a Viação Garcia continua ligando essas duas cidades há décadas – ah, isso não muda, aqueles ônibus que observo com olhar estranho e ainda vejo jardineiras indo e vindo.
Essa deve ser uma sensação de quem muda de lugares, de voltar a eles e se deparar com vazios ou com ocupações inimaginadas, fantasmas de árvores, odores que não existem mais, afinal o tempo passa. Chega-se sempre a um lugar novo, tal como aqueles pioneiros que aqui chegavam e, depois de mato e mato a que eram indiferentes porque não viam valor naquilo, mas na terra, eles também, chegavam e viam o vazio como algo novo, sempre o começo de algo, uma fantasia que estava em suas mentes, melhor do que a que deixaram pra trás, então substituída por novos céus de algodão.
[publicado originalmente em 03/04/2008]
Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
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