Para conhecer melhor a obra poética de Narciso de Andrade, é preciso primeiro saber um pouco de sua vida. Embora seus versos raras vezes tenham conseguido ultrapassar as fronteiras da província, o poeta sempre esteve ligado ao que acontecia no mundo em termos de poesia. Sempre foi moderno, ainda que, como disse Octavio Paz, o moderno seja também uma tradição. Essa modernidade foi o que sempre fez de Narciso um poeta avesso a todos os sectarismos, mesmo numa época em que parecia que a sorte dos deserdados da terra seria mudada pelos ventos que vinham da Europa Oriental.
Narciso de Andrade Neto, filho de Agenor Andrade e Celina Penteado, nasceu em São Paulo no dia 20 de julho de 1925, um ano e cinco meses depois de seu grande amigo Roldão Mendes Rosa (1924-1989), opoetirmão, como se definiam. Da São Paulo da década de 20, que ainda vivia os derradeiros anos da belle époque, apesar de toda agitação promovida por Mário de Andrade e seus modernistas, ele nada carrega na lembrança porque, pouco depois de nascido, foi levado para Santos pela família, que tinha algumas posses e muito renome na praça. Mas viveu uma vida solta de moleque pelas ruas do bairro operário do Macuco.
Da infância, Narciso recorda de uma manhã, a bordo do bonde 5, quando o poeta parnasiano Martins Fontes (1884-1937) o pegou no colo, tirando-o das mãos de sua tia Carola e dizendo que o menino precisava ir para a Capital da República. “Ele tem de conhecer o Rio de Janeiro à hora do crepúsculo”, disse o poeta, com gestos largos e voz de trovão. Narciso recorda que Martins Fontes já era à época um poeta fora de moda, que nunca mais se recuperara desde que Mário de Andrade ridicularizara o seu fazer poético na revista Klaxon.
“Mas, quando começava a falar, ele era fascinante”, afirma Narciso. “Logo se formava uma roda”. De José Martins Fontes, o Zezinho, médico famoso, homem extravagante que fazia soltar pássaros apenas pelo prazer de vê-los se perder no horizonte, antigo sócio de Olavo Bilac numa agência de propaganda de produtos brasileiros em Paris, Narciso lembra de seu enterro, um cortejo que parou as ruas de Santos até a entrada do cemitério do Paquetá. “Nossas famílias eram próximas”, justifica. “E eu gostava muito dele”.
Em Santos, Narciso fez os estudos primários. O ginásio ele seguiu no tradicional Colégio Santista, dos irmãos maristas. Foi lá que conheceu Roldão Mendes Rosa, com quem cruzava nos pátios e corredores, já admirando aquele colega que, apenas um ano mais adiantado, publicava seus textos no principal jornal da cidade, A Tribuna. A essa época, Narciso chegou a voltar para São Paulo com o objetivo de concluir os estudos secundários no Colégio São Bento, que oferecia o ensino mais avançado do País.
Mas não guarda boas recordações. “Os frades beneditinos faziam questão de uma disciplina terrível”, recorda. Sorte foi que logo sua família decidiu que deveria voltar para Santos. Passou, então, a estudar no Colégio Canadá, mantido pelo governo do Estado, num tempo em que o ensino público, antes da massificação, era o que havia de melhor porque destinado aos filhos das elites. “Até hoje tenho saudade”.
O avô de Narciso de Andrade foi um potentado político na segunda metade do século XIX. Tanto que virou nome de uma praça no tradicional bairro da Vila Mathias, em Santos, e de outra em Itanhaém, onde fica a Igreja Matriz de Sant´Anna, de 1761, jóia rara da arquitetura colonial. Em Santos, era dono de um vetusto casarão nas imediações da atual Avenida Conselheiro Nébias, a caminho da Praia do Boqueirão, onde, durante algum tempo, por concessão do proprietário, manteve seu ateliê o pintor Benedicto Calixto.
Vivia cercado de luxo e conforto, como todo pró-homem do Oitocentos. Era senhor de alguns escravos. Um deles, já liberto, o jovem Narciso conheceu bem idoso: “Fiquei com uma vergonha danada de saber que aquele homem havia sido escravo de meu avô”, contou-me, ao início dos anos 90, quando nos encontrávamos com uma freqüência lorquiana às cinco da tarde en punto no Café Paulista, ali no antigo Largo do Rosário que alguns estouvados mudaram para Praça Rui Barbosa.
Como se vê, a arte e a cultura sempre tiveram livre acesso entre os Andrades. Um irmão de Narciso, Nelson Penteado de Andrade, foi um dos maiores pintores da história de Santos, lídimo seguidor de Benedicto Calixto, ainda que com outro e mais moderno estilo. Seus quadros retratam quase sempre as ruas e os casarões antigos de Santos, imagens que ele mesmo via de seu ateliê na Rua João Pessoa, a antiga Rua do Rosário. Morreu cedo, antes de chegar aos 40 anos, provavelmente intoxicado pelo acre cheiro das tintas, apaixonado e envolvido por sua arte. Hoje, Nelson Penteado dá nome à galeria de arte da Prodesan, empresa de economia mista ligada à Prefeitura.
Ao tornar-se moço à época em que o mundo saía da Segunda Guerra Mundial e o Brasil livrava-se da ditadura do Estado Novo e seus arroubos fascistóides, Narciso de Andrade, entusiasmado pelas letras, em 1948, iniciou carreira de repórter no antigo O Diário, de Santos, órgão dos Diários Associados, cadeia de comunicação do então “rei” do Brasil, Assis Chateaubriand. “Briguei no emprego que tinha e Miroel Silveira e Cassiano Nunes me levaram para trabalhar em O Diário”, lembra.
Quem recebeu o jovem Narciso em O Diário, na Rua do Comércio, ali a poucos passos do Café Paulista, foi o chefe de redação Francisco Azevedo, o Azevedinho, um tipo esquisitão, que nem tirava os olhos do papel para se dirigir ao interlocutor, mas apaixonado por poesia, correspondente de Rui Ribeiro Couto desde que o poeta largara Santos para seguir uma vida errante de diplomata na Europa.
Entre as façanhas de sua vida tumultuada, Azevedinho gostava de lembrar a Narciso o dia 11 de outubro de 1933 em que o navio Conte Grande aportara em Santos, a caminho de Buenos Aires. A bordo, vinha o poeta espanhol Federico García Lorca e, assim, Azevedinho pôde acompanhá-lo por todo um dia em sua visita à cidade.
Azevedinho cuidava diretamente da seção Vida Marítima, que fornecia aos leitores os nomes dos vapores que entravam e saíam no porto, além de uma ou outra reportagem sobre o que ocorria no cais, entre muitos anúncios de agências marítimas e fornecedores de navios. Foi nessa seção que Narciso encontrou lugar: logo começou a sair cedo da redação, ao lado do fotógrafo José Dias Herrera, o Zezinho, para acompanhar a movimentação no maior porto da América Latina. “Se não havia assunto, a gente ia para o cais porque sempre aparecia alguma coisa”, recorda.
E não se imagine que iam de carro de praça. Seguiam mesmo de bonde. Narciso gostava daquela vida. “Quando eu era menino, o bonde me levava para o colégio”, lembra. “Depois, adulto, para o trabalho”, diz, recordando que o bonde o conduzia, na hora propícia, para os mais belos passeios. “Percorrer toda a orla, da Ponta da Praia até São Vicente, era conhecer a mais bela paisagem do mundo”, diz, acrescentando logo para que não o tomem por bairrista: “Palavra de poeta: ouvi isso de muitos estrangeiros, quando repórter marítimo”.
Amassava lama à porta dos armazéns, ia a bordo, conversava com os comandantes, ouvia os doqueiros, os estivadores, os carregadores que, em fila indiana, suportavam nos ombros sacos de 60 quilos de café, a subir e descer dos vapores. Não havia dia em que não chegasse à redação com uma boa reportagem.”Como falava inglês e francês, não tinha dificuldade para conversar com o pessoal dos navios estrangeiros”, conta. “Naquela época, as grandes personalidades sempre passavam por aqui a bordo de navios de passageiros”.
Por esse tempo, Santos destacava-se pelo movimento de seu porto, especialmente por causa das exportações de café. Os corretores atropelavam-se na Rua XV de Novembro com os canudos em que levavam as latas de amostras para a Bolsa de Café, onde em meio a telas de Benedicto Calixto acompanhavam o pregão e as cotações diárias.
O dinheiro escorria pelas ruas do centro antigo e fortunas eram construídas no dia-a-dia da cidade portuária. Seu comércio era intenso: a loja Ao Camiseiro, ao lado da redação de O Diário e quase em frente ao Café Paulista, vestia com gabardine, tropical inglês e outros tecidos finos os corretores de café, os despachantes aduaneiros e seus ajudantes, os fiscais da Alfândega, toda uma classe que ascendia socialmente com os negócios que se faziam em torno das mercadorias que entravam e saíam do porto.
Ali, na Rua XV de Novembro, ao final da tarde, depois do texto posto sobre a mesa de Azevedinho, Narciso tratava de se dirigir ao Bazar Paris, onde invariavelmente encontrava o amigo Roldão, que, à época, já era repórter de A Tribuna e poeta muito comentado nos salões da cidade por seus versos inovadores.
O Bazar Paris era uma livraria que trazia todas as novidades da França e de Portugal: em suas prateleiras era possível encontrar as edições mais recentes e seus atendentes destacavam-se pela polidez e pela seriedade das informações que passavam aos clientes. Atraía escritores e homens de letras de todo o País: o letrado que visitasse a cidade não deixava de procurar a famosa livraria. Ali, algumas vezes, Narciso, acompanhado por Roldão, manteve longas conversas com Washington Luís, o elegante e discreto ex-presidente da República que vivia como uma sombra depois de seu regresso do exílio.
Enquanto trabalhava como repórter, Narciso começou a publicar seus poemas em O Diário, especificamente no suplemento Hoje é Domingo, que era editado por Miroel Silveira. E manteve uma colaboração semanal até 1951. Por esse tempo, a cidade respirava cultura, continuando uma tradição que vinha desde o século anterior e tornarase marcante no começo do século XX pela presença de intelectuais como Galeão Coutinho, Afonso Schmidt, Alberto Leal e Ranulpho Prata, além de Martins Fontes, Rui Ribeiro Couto, Paulo Gonçalves e Albertino Moreira, em épocas sucessivas.
No final da década de 40, havia o grupo dos pesquisistas em que se destacavam Miroel Silveira, Cassiano Nunes, o contista Francisco De Marchi, Nei Guimarães, Nair Lacerda, Leonardo Arroyo e Roldão Mendes Rosa. Todos se reuniam em torno de Cid Silveira, irmão de Miroel, intelectual e filho de uma família tradicional da cidade.
“Fui um dos últimos a aderir ao pesquisismo, até porque era um dos mais novos”, conta Narciso, lembrando que o movimento manteve-se até o final dos anos 50. “Era um grupo de escritores e intelectuais que se reuniam todos os domingos para estudar e debater o fenômeno literário”, recorda, explicando que o objetivo de seus integrantes era renovar as atitudes em relação à literatura, tornando-a mais atual e próxima da época. “Pesquisava-se o que se publicava no Brasil e até no exterior”, diz, observando que o nome do movimento vinha dessa postura intelectual. “Discutíamos aquilo que escrevíamos”.
Para Narciso, a razão dessa efervescência pode ser resumida numa “palavrinha”: liberdade. Ele conta que havia, sobretudo, um exercício constante de liberdade, elemento primordial para a realização de qualquer atividade cultural: “Este clima de liberdade e a presença de gente de real valor na cidade possibilitaram um ambiente de intensa atividade cultural”, diz.
A esse grupo já havia aderido Roldão Mendes Rosa, que como poeta a essa época alcançara projeção, especialmente porque publicava de maneira constante em A Tribuna. Atraído por Roldão, Narciso passou a participar das discussões entre os pesquisistas a um tempo em que o movimento já havia concluído o seu ciclo mais agudo. “Eles me acolheram, me estimularam e, com seu exemplo e sua fidelidade, ajudaram a fomentar em mim ainda mais a paixão pelo livro, pela literatura, pela poesia”.
Em 1949, Narciso casou-se com Amélia. E a necessidade de ganhar a vida de maneira mais objetiva o fez largar a carreira jornalística um ano depois. “O repórter não era valorizado e a remuneração muito baixa”, diz, lembrando que logo teria família para sustentar, com o nascimento de seus cinco filhos – três homens e duas mulheres. “Troquei as reportagens pelas colunas literárias, passando a escrever crônicas, a fazer traduções e a publicar poemas”, relembra, fazendo questão de dizer que O Diário pagava pouco, “mas pagava”.
Foi, então, trabalhar na Companhia Docas de Santos, onde permaneceu por um ano, até que se transferiu para a Companhia City, empresa canadense que era responsável pelo fornecimento de energia elétrica e pelo serviço de bondes.
O tempo em que a profissão de jornalista o fizera viver junto ao cais despertara precocemente em Narciso a sua vocação irreprimível para a poesia. Em 1951, começou a colocar seus versos também na página literária de A Tribuna, que era editava por Rubens de Ulhoa Cintra, o Torito. “Não havia rivalidade entre os pesquisistas e publicávamos indistintamente num e noutro jornal”.
Segundo Narciso, o pesquisismo queria “limpar” a poesia das enxúndias parnasianas. “Não éramos contra o parnasianismo em si, mas contra o uso exagerado de suas formas”, explica, lembrando que os pesquisistas conviviam bem com aqueles que ainda estavam apegados a esquemas poéticos superados e que faziam poesia como se participassem de jogos florais. Esses poetas de pouco talento dominavam a cena e exercitavam uma poesia recitada com “boquinha de cereja”, preocupada apenas com a rima, mas sem qualquer conteúdo social. “Mesmo assim, nunca fomos inimigos”, diz.
Narciso não sabe se foi de tanto ouvir Azevedinho falar de García Lorca que tratou de conhecer a poesia do poeta andaluz. Reconhece que a sua principal influência veio dele. Depois, vieram Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa. Houve uma época, mais tarde, em que travou conhecimento com o trabalho de alguns poetas portugueses, especialmente José Régio, o maior nome do Segundo Modernismo português, herdeiro espiritual de Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro.
Outro poeta luso que conheceu à distância foi Alexandre O´Neill. “Trocávamos idéias por correspondência”, conta Narciso, lembrando ainda que, em 1962, em companhia do escritor Geraldo Ferraz, então redator-chefe de A Tribuna, foi ao Rio de Janeiro conversar com Carlos Drummond de Andrade. “Ele não suportava a poesia dos portugueses”, recorda. “Gostava mesmo era dos concretistas”.
Em 1953, Narciso começou a estudar na Faculdade de Direito da Sociedade Visconde de São Leopoldo, atual Universidade Católica de Santos (UniSantos). Fez parte da primeira turma que se formou em 1957. De canudo na mão, ascendeu na Companhia City, chegando a ocupar o cargo de chefe do departamento jurídico, até que se aposentou em 1984, acompanhando a transição da empresa para Light e, depois, Eletropaulo.
Nunca abandonou a paixão pela poesia. Em 1957, começou a escrever para o Suplemento Literário de O Estado de S.Paulo, que era dirigido por Décio de Almeida Prado. “Para publicar o meu poema Cais, o jornal me pagou dois contos e quinhentos”, recorda. “Eu não ganhava isso por mês”, acrescenta, observando que essa, na verdade, foi a única ocasião em que ganhou dinheiro com poesia. Para Décio de Almeida Prado, os versos de abertura do poema “Cais” constituíam umas das mais belas passagens que a poesia brasileira produzira:
1.
Com tanto navio para partir
minha saudade não sabe onde embarcar…
2.
A água comove a pedra
que parece fremir levemente.
Na oscilação breve das marolas
Há homens malogrando olhares
vagos, indecisos, alongados.
3.
(Completa ausência de tempo.
O calendário se desfaz
nas sombras, na brisa e na anatomia recortada do estuário…).
Cambía todos os tons
esta angústia à flor da água.
4.
Não há gaivotas nem quaisquer
outros pássaros oceânicos.
Todavia, aquela espuma brilhante
sugere o roçar logo de algum.
5.
Vem do passado a romântica
sugestão de velas pandas.
Itinerários de descobertas,
roteiros de constelações,
ilhas remotas habitadas
por estranhos povos inocentes
--- pele morena, olhos ariscos, porte severo, movimentos puros de corpos ao vento e ao sol.
6.
Sirene arrepiando
a epiderme do meio-dia.
7.
Silenciosamente pesados
firmam-se nas horas os navios,
fortuitos donos do porto,
transitórios proprietários
de metros de alvenaria
que fazem maior a tristeza
da imensa nostalgia portuária.
Ah! receber todos os adeuses,
todos os abraços, todos os olhares
de ida e volta e permanecer
ancorado na paisagem imutável.
Este poema da década de 60, já da fase madura, exprime a sua identificação com o mar e o porto, que é a chave que dá acesso à mundividência fundamental do poeta. Repórter marítimo na juventude, trabalhando depois no centro antigo de Santos, junto ao porto, Narciso construiu sua poesia usando sempre como metáfora a existência dos homens do cais, a vida junto ao mar, a paisagem e os sons que a cercam.
Poeta nada místico, descrente na existência de um Deus transcendental, que estivesse sempre disposto a punir e recompensar a humanidade, Narciso solidariza-se em sua poesia com o homem e a sua solidão no universo, o seu drama diante dos embates da vida. É a mesma solidão que marca a poesia de Fernando Pessoa, um dos poetas de sua predileção, como se pode notar no poema acima, verdadeiro intertexto de referências, alusões e reminiscências da produção pessoana, como o “cais saudade em pedra” ou as “velas pandas”.
Apesar das remissões pessoanas, Narciso é um poeta marcadamente santista, o que pode significar quase a mesma coisa, não fosse Santos uma das cidades mais portuguesas do Brasil, a que mais se assemelha a Lisboa e que se assemelhava ainda mais ao tempo da juventude de Narciso, nos anos 40 e 50, antes que a discutível sanha do progresso tivesse botado abaixo muito do casario que lembrava zonas lisboetas como Santos-oVelho, Alcântara, São Bento e Xabregas ou portuenses, como Campanhã.
Se de algumas imagens podemos tirar evocações pessoanas, já os efeitos sinestésicos de sua poesia fazem parte de uma paisagem da cidade de Santos, de outros tempos, é verdade, como a sirene que o jornal A Tribuna fazia disparar ao meio-dia para avisar à população que era a hora de parar o trabalho e almoçar – Sirene arrepiando/ a epiderme do meio-dia.
Poeta moderno como Carlos Drummond de Andrade, Narciso de Andrade, como esse mestre da poesia, também nunca deixou de render homenagem a Luís de Camões, permeando seus poemas com paráfrases e alusões à poesia do vate quinhentista, reapropriando-se de maneira criativa de seu discurso épico e lírico, como se pode comprovar em “Cais” em que reconstitui um breve roteiro das peripécias que marcaram as descobertas, remetendo-nos para “Os Lusíadas”.
Os anos de 60 foram de intensa agitação. Na companhia de Roldão Mendes Rosa, “que era comunista fichado”, Narciso começou a participar também da luta política. “Só não entrei para o Partido Comunista porque sempre fui muito rebelde”, conta. “Nunca gostei de excesso de disciplina”, acrescenta, ressaltando que, embora não fosse simpatizante da direita, jamais admirou a esquerda. Mesmo assim, por influência de Roldão, ia a comícios, acompanhando o fervor com que o amigo aderia às causas populares.
Entusiasmado, Roldão subia, muitas vezes, ao palanque para declamar poemas participativos, arriscando-se a sofrer a repressão que vinha na pata dos cavalos e nos sabres dos milicianos, ali na mesma Praça da República, onde, em 1931, Patrícia Galvão, a Pagu, num comício do Partido Comunista, levantara do chão, ensangüentada, a cabeça de um estivador, que morreria em seu colo. Narciso preferia assistir a tudo de longe.
Distante da política, a vida transcorria até altas horas no Bar Regina, que ficava no coração do Gonzaga, de onde partiam os bondes para qualquer ponto da cidade. Nas noites do Regina, Narciso conheceu toda espécie de artista, pintor, músico, poeta, escritor, a gente espalhafatosa do teatro e um jovem que se anunciava analfabeto num ambiente de intelectuais: Plínio Marcos, palhaço de circo, candidato a escritor, apesar da pouca intimidade com o idioma, um tipo que fora descoberto por Pagu, sempre ela.
Narciso foi um dos poucos, à época, que defenderam o talento de Plínio Marcos: “Sabia que ele não seria mais um escritor provinciano”, escreveu, certa vez. “Seu destino de dramaturgo já estava traçado”.
Por esse tempo, acompanhava Roldão em suas incursões pela sociedade intelectual. Iam às reuniões da loja Albor da Sociedade Teosófica, presidida por um grande amigo de ambos, o advogado Nildo Serpa Cruz. E participavam das discussões com os pesquisistas e das atividades do Centro de Estudos Fernando Pessoa, do Clube de Arte e do Clube de Cinema de Santos, do qual Roldão havia sido um dos fundadores.
À época do prefeito José Gomes, no começo da década de 60, integrantes do mundo das artes foram convocados para compor uma comissão municipal de cultura, inclusive Pagu, que morreria ao final de 1962. O chefe de gabinete do prefeito era o jornalista e escritor Juarez Bahia, que depois seria redator-chefe de A Tribuna e faria carreira no Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, e seria correspondente desse periódico em Lisboa.
“Pela primeira vez, foi formada uma comissão integrada por pessoas consideradas rebeldes”, recorda Narciso, um dos convidados. O poeta chegou a presidir a comissão entre 1962 e 1963, passando depois o cargo para Roldão Mendes Rosa e, em seguida, para o jornalista e teatrólogo Evêncio da Quinta, o Zego. “Promovemos uma exposição de arte mexicana, um festival de teatro com Pagu à frente, um curso de Literatura Brasileira e uma exposição de arte religiosa, entre outras atividades”, recorda.
Mas vieram o golpe militar de 1964 e a longa noite dos generais. “Respondi a um inquérito policial militar e fui escoltado por dois soldados até à delegacia”, lembra, logo ele que nunca simpatizara com os ideais comunistas – o fantasma que os golpistas agitavam para defender quase sempre interesses subalternos e mesquinhos.
Nem assim Narciso mudou o rumo de sua poesia: “Cheguei a fazer alguns poemas mais engajados, mas, depois, voltei a compor poesia voltada apenas para o cotidiano”, diz, lembrando que Roldão, ao contrário, antes e depois de 1964, fez muita poesia com orientação partidária.
Mesmo quando Geraldo Ferraz deixou de ser editor-chefe de A Tribuna, Narciso continuou a colaborar na página literária do jornal, agora sob a direção de Juarez Bahia. Seus poemas continuaram a sair quase sempre ilustrados pelo artista plástico Lúcio Menezes, às vezes ocupavam quase toda a página. É dessa época “Instante”, o poema que segue:
Faz de conta que esta lua não existe
faz de conta que esta noite já é ontem
faz de conta que este instante já passou
pensa que não podemos perder tempo
que é tudo muito tarde
e as coisas que estão por acontecer
são passado e estão desfeitas.
Continuar andando nestas areias
recolhendo estilhaços de estrelas
enquanto o tempo vai marcando
o ritmo decadente de nossos passos
tudo é alegria quando pouco é possível
tudo é alegria quando nos encontramos
desesperadamente perdidos
sem contrastes a vida não tem sentido
monótona sucessão de fracassos
desencantos e desesperos
tudo é alegria quando nada mais é possível
faz de conta que estou dizendo a verdade
e que é mentira esta louca vontade de chorar
Esta lua não existe
esta noite já é ontem
este instante já passou.
Neste poema, com o “eu” desdobrado ambiguamente num “ele”, Narciso de Andrade se coloca num ponto de onde avista o passado e apreende a mutabilidade dos fenômenos do mundo, apontando para a precariedade da vida. Para ele, a vida é uma “monótona sucessão de fracassos, desencantos e desesperos”, que precisa ser ludibriada, enganada, para que seja possível continuar a sonhar, mantendo viva a chama, ainda que a morte seja o destino final.
Este poema, como um todo, é também um retrato da personalidade de Narciso, homem de caminhadas longas e solitárias à beira da praia de Santos. Por estes versos, perpassam o sentimento de perda, da dor de ter visto o tempo se escoar sem poder detêlo, sem mais saber situar-se no universo – esta noite já é ontem/ este instante já passou.
Por circunstâncias alheias, não pude reunir aqui outros poemas que pudessem formar um corpus passível de maiores análises, mas tenho certeza de que “Cais” e “Instante” representam muito bem a poesia de Narciso de Andrade. É bem provável que, como aconteceu com seu amigo Roldão Mendes Rosa, só depois de sua morte, Narciso, enfim, tenha seus versos recolhidos em livro.
Com tantos poemas publicados em jornais, o poeta, ele mesmo, nunca se preocupou em reunir a sua produção. “Sempre foi difícil encontrar editor disposto a investir em poesia”, justifica-se. E para um autor editar o seu próprio livro era um investimento pesado: “Nunca tive condições financeiras para isso”, reconhece. “Sempre havia contas mais importantes a saldar”. Uma rara exceção ocorreu em 1977, quando, a convite de João Christiano Maldonado, integrou uma Antologia da Poesia de Santos.
Se não publicou nenhum livro em mais de meio século de atividade literária, escreveu a apresentação para Poemas do Não e da Noite, obra póstuma de Roldão Mendes Rosa publicada em 1992 pela Editora Hucitec, de São Paulo, com o apoio da Prefeitura de Santos. Nesse livro, há o poema “Ao poetirmão do vento e das maresias”, de 1981, dedicado a Narciso de Andrade, em que Roldão diz:
O poeta, Irmão, se despede do dia.
O corpo não sabe
(desaprende a cada signo que lê
a cor das horas).
O corpo ama, dorme, come, trabalha.
Não sabe
Que todo longe só é longe no exílio (…)
(…) O poeta irmão do vento se despede sem pássaros
do dia que se desprende
(O corpo é burro, nada sabe do poeta).
O poeta está preso
na rua que o fez e o deu livre à cidade.
Na mesma rua onde brincou de tempo e vento
o poeta está preso.
(E nada sabia naquele tempo a respeito da palavra exílio,
senão que um sabiá cantava na memória de alguém).
O poeta Narciso preferiu continuar a escrever para o dia-a-dia. Chegou a 49 anos de colaboração constante em A Tribuna, atividade que se intensificou no começo da década de 90, quando a jornalista Ivani Cardoso, assumindo a editoria do caderno de variedades AT Especial, convidou-o a escrever uma crônica semanal que seria sempre publicada aos domingos. O retorno a uma atividade jornalística mais intensa coincidiu com a época em que, já aposentado da Eletropaulo, cuidava de seu escritório de advocacia, no centro da cidade, ao lado da mulher Amélia, que se formara advogada em 1976.
Narciso só interrompeu a colaboração no caderno de variedades de A Tribuna em 2001, quando começou a sofrer problemas de saúde. Nas crônicas que preferia chamar de escritos, assinava-se como poeta e advogado. Escrevia sobre Santos e seus personagens. Datilografava em sua velha Remington bem próximo à janela de seu apartamento no edifício Copacabana, na Ponta da Praia, de onde se vê toda a orla da baía de Santos e seus crepúsculos modorrentos.
Como cronista, às vezes, deixou-se levar pelo crítico que também carrega dentro de si. Em um de seus escritos, defendeu a teoria de que existe um ciclo de romances sobre o porto de Santos que se iniciou com Navios Iluminados (São Paulo, Clube do Livro, 1946), de Ranulpho Prata, seguindo-se com Cais de Santos (Rio de Janeiro, Cooperativa Cultural Guanabara-Rio, 1939), de Alberto Leal, Querô (São Paulo, Símbolo, 1976), de Plínio Marcos, e o meu Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981). Não se deve questionar a ordem estabelecida por Narciso, com base nas datas de publicação dos livros, porque ele garante que Navios Iluminados teve uma edição anterior à do Clube do Livro, embora hoje seja difícil saber qual.
“Neste viés, podemos encontrar ainda o inédito Barcelona Brasileira, ousado e pungente, enfrentando sérios problemas de linguagem pela sempre difícil relação tempo históricotempo romance”, escreveu em crônica publicada a 19 de novembro de 1993 em A Tribuna, referindo-se a um romance que lhe dei para ler em manuscrito e que sairia à luz em 1999 pela editora Nova Arrancada, de Lisboa. Só ao final de 2002 Barcelona Brasileira saiu pela editora Publisher Brasil, de São Paulo.
Pois é assim Narciso, sempre generoso com os amigos. Ainda hoje, quando passo pelo Café Paulista, ao final de tarde, sempre olho lá para dentro, em busca da mesa que reunia Narciso, Roldão e Dario, que não era poeta, mas amigo de ambos. Só que, desde 2000, por causa da doença, Narciso não sai mais de casa. Numa crônica publicada em 19 de novembro de 2000 em A Tribuna, ele dizia que esperava se recuperar logo para voltar ao Paulista e ver o bonde que, agora, passa de novo em frente ao café. Mas não voltou até agora.
Lembro-me especialmente dos últimos tempos, quando eu já estava de volta a Santos e reencontrava apenas Narciso e Dario no Café Paulista. Dario, sempre que me via, repetia, em tom de brincadeira, uns versos de Camões:
Com vossos olhos gonçalves,
senhora, cativo tendes
este meu coração mendes.
Eu respondia com estes versos de Narciso:
Com tanto navio para partir
minha saudade não sabe onde embarcar…
E Narciso de Andrade sorria com olhos mansos.
texto publicado originalmente na Revista de Cultura AGULHA - Agosto de 2004
Meu avô 😭
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