Wednesday, July 5, 2017

FRANK, O MAIOR ESPETÁCULO DA TERRA - PARTE 1 (por Márcio Calafiori)



— Sinatra salvou a minha vida. Cinco sujeitos estavam me batendo e eu ouvi ele dizer: “Chega!”

Na época, essa piada do humorista Shecky Greene ficou famosa. Só que não era piada. Em 1967, ele levou mesmo uma surra encomendada por Frank Sinatra. A diferença é que o cantor não estava presente para dizer: “Chega!”. Greene tinha a compleição de um jogador de futebol americano, era alto, compacto, forte. Sinatra media 1,70. Durante boa parte da vida foi extremamente magro — na idade adulta chegou a pesar 55 quilos, um nanico magricela com cara de pizza, segundo os gozadores. Diante dessa desproporção, Frank não teve peito de encarar o humorista. Então ordenou a surra. Shecky Greene foi parar no hospital.

Não precisava muito para que Sinatra recorresse à violência. No caso de Greene, a encrenca foi porque o comediante lhe fez um desaforo. E se havia uma coisa que Frank não levava pra casa era isso. Poucos tinham coragem de enfrentá-lo. O maior cantor do século só andava em turma, sempre protegido por algum puxa-saco que tomava as suas dores ou agia a seu comando. Hospedado no Fontainebleau, em Miami, onde costumava se apresentar, certa vez Frank determinou que o amigo fortão que o acompanhava desse uma lição no padeiro do hotel. O motivo: o pãozinho que ele gostava de comer não estava pronto às quatro ou cinco da manhã. O padeiro levou um pontapé tão arrasador que teve o tornozelo quebrado.

Na noite de 30 de junho de 1960, o xerife assistente Richard Anderson foi ao hotel-cassino Cal-Neva, em Nevada, pegar a mulher, Toni, que trabalhava ali como garçonete. Atraente e bonita, Toni já tivera um caso com Sinatra, que era sócio do empreendimento com o mafioso Sam Giancana. Ao entrar na cozinha do hotel, Frank deparou Anderson conversando com os lavadores de pratos e mandou que ele saísse. O xerife se recusou a obedecê-lo. Eles discutiram e Sinatra levou um soco na cara que o deixou dois dias de cama. Duas semanas mais tarde, o carro em que Richard Anderson e a mulher viajavam foi abalroado numa estrada e bateu violentamente contra uma árvore. Ele morreu na hora. Jogada para fora do veiculo, ela sofreu uma série de fraturas. Claro, ninguém ao redor de Frank foi louco de insinuar o que quer que fosse a respeito do acidente.

Essas histórias típicas de gângsteres estão reunidas numa das maiores biografias já escritas: Frank, A Voz; e Sinatra, O Chefão, ambos os volumes de autoria do jornalista James Kaplan, publicados aqui pela Companhia das Letras em 2013 e 2015. O autor investiu mais de dez anos na confecção da obra. Considerando os dois tomos, a biografia soma 1.959 páginas, a guerra e paz de Francis Albert Sinatra. Marcam presença nesse trabalho monumental de investigação — eu contei — 2.371 personagens e referências a nomes que erigiram a cultura do século 20. A fim de obter o retrato mais fidedigno possível, além das pesquisas em diversos tipos de fontes, Kaplan entrevistou 160 homens e mulheres, a maioria artistas, que tiveram envolvimento direto com Sinatra. Assim, o texto é repleto de detalhes que às vezes até cansam, mas certamente resultam no compêndio mais abrangente a respeito de um ídolo pop.

Kaplan conta que decidiu escrever sobre o cantor em setembro de 2004, depois de participar de um jantar no restaurante Guido´s, em Santa Monica. Na mesa em que ele estava todos eram músicos que já haviam trabalhado com Sinatra. O que despertou o seu interesse foi que num determinado momento, quando alguém tocou no assunto, os presentes, sem exceção, falaram do cantor com admiração e respeito, ressaltando o seu profissionalismo e o seu conhecimento de música, a tonalidade transcendental de sua voz, o modo como ele inovou as letras das canções, o seu coleguismo e as suas fraquezas como ser humano. Diz James Kaplan: “Não consegui esquecer aquela noite. Ali estava uma visão de Frank Sinatra como homem e artista, sem as armadilhas e os ouropéis da celebridade, sem um traço do comportamento pelo qual ficou tão famoso e que tantas vezes parecia ser o principal, senão o único, tema de conversa.”

Claro, o traço do comportamento a que o escritor se refere é tudo aquilo que sempre ouvimos falar de Frank Sinatra e às vezes, por causa da admiração pelo artista, nos recusamos a acreditar. A vida desse ítalo-americano nascido em 12 de dezembro de 1915 em Hoboken, Nova Jérsei, daria um daqueles filmes cruéis e realistas dirigidos por Martin Scorsese, que, aliás, chegou a esboçar o projeto. O diretor não conseguiu ir em frente porque os herdeiros de Sinatra impuseram uma lista imensa de exigências, tentando impedir que a personalidade complexa do cantor fosse exposta na tela sem retoques, como o cinema de Scorsese exige.

Mas como observou Kaplan, provocar aversão era apenas parte do talento de Frank Sinatra, que era um artista de verdade, considerado gênio por boa parte da crítica. Pertencia a uma época em que era preciso provar que se tinha talento, pois a indústria cultural não fabricava isso. De temperamento reservado, durante as turnês com Harry James ele preferia se isolar dos colegas. Ficava num canto lendo, tentando captar o sentido das músicas que integravam o repertório da orquestra. Dito assim parece razoável, mas o fato é que muitos crooners não se davam a esse trabalho. Simplesmente decoravam as canções, sem acrescentar sentimento a elas. Sinatra, não. Ele passou a interpretá-las como se falasse com cada garota da plateia, como se acreditasse em tudo o que as letras das músicas diziam. Imediatamente, o jeito de cantar daquele rapaz de olhos azuis profundos se transformou em algo jamais visto, absolutamente pessoal. Anos depois alguém disse que a sua voz era uma instituição da América.



Em 31 de agosto de 1939, quando gravou a novíssima “All or Nothing at All”, de Arthur Altman e Jack Lawrence, acompanhado da orquestra de Harry James, o jovem e ambicioso Frank Sinatra soube exatamente o que fazer. Realizada nos estúdios Brunswick, em Manhattan, “All or Nothing at All” foi o seu primeiro grande sucesso pela Victor. Músicos profissionais que ouviam a faixa ficavam impressionados com a voz e o controle da respiração de Sinatra, embora ele ainda estivesse longe do que viria a ser. Um pouco mais tarde, agora já contratado pela orquestra do lendário Tommy Dorsey, Frank aprofundou a técnica da respiração observando detidamente os truques que o próprio Dorsey elaborava no trombone, que tocava como se não precisasse tomar fôlego.

Sinatra descobriu que Dorsey conseguia doses extras de ar ao respirar por um buraquinho discreto que ele fazia com o canto da boca e que ele escondia habilidosamente com a mão esquerda ao executar o instrumento. O cantor começou a treinar aquilo e logo aprendeu a tomar fôlego no meio de uma frase, coisa que a maioria dos crooners não conseguia fazer. A convivência com as grandes orquestras de jazz-swing também lhe proporcionou um timing que no decorrer dos 60 anos de carreira ele elevou à condição de arte. Nos anos 1950, Sinatra tinha atingido o auge com o domínio absoluto das possibilidades da voz. Mas não só da voz. Embora tenha trabalhado com grandes arranjadores — Alex Stordhal, Nelson Riddle, Gordon Jenkins, Billy May, Quincy Jones —, ele dava as linhas gerais do que queria em termos de sonoridade. Às vezes, no estúdio, até mesmo atuava como maestro. Era exigente ao extremo. Nelson Riddle, por exemplo, jamais conseguiu se sentir à vontade diante dele.

No início dos 1940 Sinatra estava inebriado com a fama. Cantava agora com a orquestra de Dorsey e ganhava 75 dólares por semana. Competitivo, ele trabalhara duro para alcançar essa condição de destaque, tendo como modelo o seu ídolo máximo, Bing Crosby. Em 1935, com quase 20 anos de idade, só fora aceito no Hoboken Four porque tinha um Chrysler conversível usado, presente da mãe, para dar carona aos colegas. Como Frank estava rapidamente se tornando a principal atração do grupo, de vez em quando levava uma boa sova dos companheiros para aprender o seu lugar. Enquanto a glória parecia inatingível, ele chegou a se apresentar de graça ou então em troca de cigarros e sanduíches. Num restaurante obscuro de beira de estrada foi garçom e cantor ao mesmo tempo.

Agora as adolescentes gritavam o seu nome — Frankiee!!! —, algumas chegavam a desmaiar de emoção ao vê-lo cantar. Essas cenas aconteciam de verdade, não eram fabricadas. Tommy Dorsey só acreditou mesmo quando testemunhou pessoalmente o frenesi que Frank causava: “Como pode isso? Ele não passa de um garoto magricela de orelhas grandes”, comentou. As garotas fãs de Sinatra eram chamadas de bobby-socks (meias soquetes), pois usavam saias até a barriga da perna, sapatos de duas cores e meias que cobriam os tornozelos. Durante o mês de março de 1940, elas apareciam bem cedo em frente ao teatro Paramount, em Nova York, e formavam filas imensas antes do primeiro show, que começava às nove horas, e depois permaneciam no teatro por cinco apresentações seguidas. Frank aproveitou a onda e teve a brilhante ideia de mandar servir lanches às garotas, logo após a primeira apresentação do dia. Isso o tornou mais popular ainda, a tal ponto que precisava ser escoltado pela polícia uma quadra antes de chegar ao Paramount.

Esse assédio se transformou num fenômeno inédito, iniciado de forma espontânea, mas em 1943, quando Frank já cantava sozinho, passou a ser manipulado pelo seu assessor de imprensa, um cara genial chamado George Evans. George testava garotas a fim de verificar quão alto elas podiam gritar, pagava cinco dólares a cada uma e as espalhava por pontos estratégicos do Paramount. Elas tinham que gritar em determinadas partes das canções e só precisavam dizer: “Oh, Frankie!, Oh, Frankie!”. Nos momentos certos, previamente combinados, os gritos iam formando uma onda febril que tomava conta do auditório com cinco mil garotas, isso sem contar as que estavam do lado de fora esperando a vez do próximo show. Em meados dos anos 1960, algo semelhante aconteceu com os Beatles, as garotas desmaiavam e gritavam, mas não havia mais nem sombra da espontaneidade com a qual Frank Sinatra foi contemplado no início da carreira. Em sua obra, James Kaplan flagra o momento do nascimento da cultura de massa e do culto à celebridade.

Frank só conseguiu se livrar da orquestra de Tommy Dorsey, com a qual ele tinha contrato por pelo menos por mais dez meses, porque os seus amigos da máfia puseram um revólver na cabeça do pobre Dorsey? Essa história faz parte da fama de mau que acompanha Sinatra. É claro que Tommy Dorsey não gostou nem um pouco de ser informado pelo próprio Sinatra, em fevereiro de 1942, de que ele o deixaria. Àquela altura, o cantor já estava mais do que convencido de que poderia fazer carreira solo, sem estar vinculado a uma orquestra. Dez anos mais moço, Frank idolatrava Dorsey e até mesmo o imitava no jeito de se vestir e nos hábitos pessoais. Embora duro, este o tratava como filho. A separação foi traumática para ambos. Mas de acordo com Kaplan não envolveu armas e sim advogados e meses de negociação e dinheiro, até culminar na despedida, em 3 setembro de 1942, quando Sinatra passou o posto de cantor para Dick Haymes durante o seu último programa de rádio com a orquestra de Tommy Dorsey, no Circle Theater, em Indianápolis.

CONTINUA NA PRÓXIMA QUINTA
DIA 13 DE JULHO




FRANK, A VOZ
 James Kaplan
2013 Companhia das Letras
Tradução: Pedro Maia Soares
752 páginas
preço do livro na editora: R$ 82,90
preço do ebook na editora: R$ 48,50
disponível na Estante Virtual
com preços a partir de 40 reais
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SINATRA, O CHEFÃO

 James Kaplan
2015 Companhia das Letras
Tradução: Denise Bottmann, Claudia Carina, Paulo Geiger
1.216 páginas
preço do livro na editora: R$ 102,90
preço do ebook na editora: R$ 69,90
disponível na Estante Virtual
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Márcio Calafiori é jornalista.
Nasceu em 1957 e se formou
pela Facos em 1986.
Exerceu quase todos os cargos
em redações de jornais em Santos,
Santo André, Campinas e São Paulo.
Foi redator, repórter, revisor,
editor, secretário de redação,
chefe de reportagem e ombudsman.
Aposentou-se em 2012
como professor da Unisanta,
depois de 29 anos de dedicação
exclusiva ao Jornalismo Impresso.
Colabora eventualmente com
LEVA UM CASAQUINHO.


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