Thursday, August 24, 2017

NASCIDO HÁ 105 ANOS, JOHN CHEEVER PERMANECE VIVO E ATUAL COMO NUNCA

por Chico Marques


Tive meu primeiro contato com os contos magníficos do grande escritor americano John Cheever -- que este ano completaria 105 anos de nascimento -- na segunda metade dos Anos 70 por indicação de Sérgio Augusto, que sempre fez questão de apresentá-lo ao público brasileiro saudando-o como um dos maiores escritores do Século XX. Quando a então recém-fundada Companhia das Letras editou a antologia "O Mundo das Maçãs" em 1987, reunindo 13 de suas melhores histórias curtas e quebrando em definitivo com o ineditismo do contista Cheever por aqui, foi por insistência de Sérgio mais uma vez. Estranhamente, os brasileiros, que já conheciam os romances escritos por Cheever, ainda não haviam sido apresentados ao melhor de sua produção literária: as narrativas curtas.

Graças às indicações preciosas de Sérgio Augusto, eu, que estudava Literatura Inglesa e Norte-Americana na Universidade de Brasília, devorei impiedosamente todos os volumes de contos de John Cheever que que encontrei nas estantes gloriosas da extensa Biblioteca da UnB. E quando os editores de Cheever propuseram que ele reunisse o melhor de sua produção em 1977 no gigantesco volume "The Stories Of John Cheever", não hesitei em encomendar para mim um exemplar, edição hardcover, pesadíssima, caríssima, na saudosa Casa do Livro que funcionava no CONIC -- e que era, na época, a maior e mais qualificada livraria da cidade.



Os 62 contos reunidos neste volume são a nata da produção de Cheever entre os Anos 30 e os Anos 70, títulos que brilharam nas páginas de publicações prestigiadas -- em particular The New Yorker, cujo editor de literatura (e grande amigo) William Maxwell sempre fez questão de mantê-lo -- e a John Updike também -- como colaborador constante, independente do custo.

Nas palavras sábias de Maxwell, "John Cheever retira das próprias vísceras a sua temática essencial, a sua obsessão, na qual também repousa uma das questões norte-americanas: o aspecto financeiro como régua última do ser humano, e o álcool como a melhor forma de anestesiar essa constatação, com quase todos os seus personagens transitando entre o gin e o uísque. E faz isso utilizando a mesma dicção tradicionalista, intensamente descritiva e profusa em palavras, típica dos escritores do século 19. É um escritor absolutamente singular."


Dono de um estilo interessantíssimo, que combinava o decadentismo apaixonado de Henry James com o vigor e a impetuosidade de F. Scott Fitzgerald, Cheever criou uma galeria de personagens com uma intensidade existencial a toda prova. Em seu universo temático pobres esperançosos, invejosos de classe média, ricos falidos, novos-ricos patéticos e novos-pobres amargurados tentam desesperadamente se acomodar embaixo do desconfortável manto do Sonho Americano.

"The Stories Of John Cheever" é, sem sombra de dúvidas e sem o menor exagero, a melhor e mais vital coleção de contos de um autor americano desde "The Selected Stories Of Ernest Hemingway", com seus 40 maiores textos curtos. E só encontra um rival contemporâneo mais ou menos da mesma estatura literária nos textos do igualmente magnífico Raymond Carver em suas "Collected Stories".

Desnecessário dizer que Cheever, Hemingway e Carver são escritores de naturezas completamente diferentes, e não possuem nenhuma afinidade literária, apenas grandezas artísticas semelhantes. Até porque enquanto Cheever e Hemingway não medem palavras ao flertar com a falência do sonho americano, Carver mergulha de cabeça no desespero cotidiano americano fazendo uso de uma abordagem minimalista extremamente original.  .


Aqui no Brasil, infelizmente, os editores que publicaram livros de John Cheever não foram aventurescos o suficiente para peitar o mercado com essa coleção magnífica de 62 histórias completa. Temos hoje nas livrarias uma nova antologia intitulada "28 Contos de John Cheever" -- que faz parte de uma simpática coleção de contistas com belas capas padronizadas -- que é até boa o suficiente o suficiente para estabelecer um primeiro contato com o autor, mas pára por aí. O caso é que Cheever merece muito mais do que isso, daí a insistência na publicação dos 62 que ele próprio escolheu entre os mais de 300 que produziu. Além do mais, duvido que, a essa altura do campeonato, Cheever não tenha leitores no Brasil em número suficiente para comportar uma edição desta magnitude.

Se a ficção de Saul Bellow flerta abertamente com a grandeza literária de Dostoievski e Gogol, a de Cheever flerta mesmo é com Chekhov. Seu grande tema é o momento na vida em que esperanças se exaurem e os sonhos vão embora de uma vez por todas, restando apenas a mediocridade existencial absoluta, impávida, perfeita. Ninguém soube esboçar melhor do que Cheever o retrato de uma nação movida a álcool, calmantes e estimulantes que tornem suportáveis os sentimentos de vazio, fracasso e desidentificação na corrida capitalista, onde o sucesso financeiro decorrente de perspicácia, tenacidade ou sorte empresarial se une a uma conformidade com a ideia do dinheiro como consequência natural da herança filosófica do luteranismo e do calvinismo.




O dado mais curioso na literatura de Cheever é que existe sempre um determinado momento lírico onde toda a fragilidade do mundo ao redor de seus personagens fica completamente exposta, e a natureza entra em cena dominando a situação e mostrando que é ela quem dá as cartas no jogo da vida. E então, as belezas naturais se contrapõem à torpeza dos sentimentos humanos e todos os sentimentos de tristeza, solidão e amargor acabam potencializados numa catarse redentora capaz de deixar o leitor mais experiente completamente desnorteado.

Os contos de John Cheever debruçam-se muito mais sobre demônios do que sobre momentos poéticos ou gloriosos da condição humana, até porque escritores da grandeza de Cheever sabem que a obsessão é a raiz da literatura. Daí, seus contos de certa forma se auto-alimentam de uma maneira recorrente, repetitiva, incômoda, servindo como matéria-prima para novos contos. E de tão bons, pouco importa se forem, de certa forma, uma mesma história contada de diversas formas diferentes.


Antes de encerrar essa quase louvação ao "Chekhov dos Subúrbios" -- apelido carinhoso que ganhou dos amigos do escritório de The New Yorker --, gostaria de deixar claro que poucas vezes consegui encontrar no John Cheever romancista um autor tão vital quanto o que brilha intensamente nos seus contos. Seus dois primeiros romances, "A Crônica dos Whapshot" e a 'O Escândalo dos Whapshot" sempre me pareceram absolutamente convencionais, sem contar que envelheceram mal ao longo desses 60 anos que nos separam do momento em que foram escritos. "Bullet Park" (1969), sua terceira incursão no romance, é uma obra mais densa e intensa, e já conseguiu resistir melhor ao teste do tempo. Mas foi nas suas duas "novellas" -- textos longos demais para ser clasificados como contos, e curtos demais para serem chamados de romances -- que Cheever realmente obteve resultados artísticos mais satisfatórios. "Falconer" (1977) é de uma contundência arrebatadora. E "Até Parece O Paraíso" (1982) é seu "magnum opus", sem dúvida alguma um dos textos americanos mais notáveis do Século 20.

Se você ler inglês, recomendo adquirir os dois volumes com os contos e os romances de John Cheever reunidos, numa bela edição hardcover. É um investimento precioso e extremamente útil, pois os contos de Cheever não foram feitos para ser lidos uma única vez. Vai ser, fatalmente, um daqueles livros que passam mais tempo pousados no criado-mudo ao lado da cama do que no seu cantinho na estante da sala.

Já se você não ler inglês, aceite com resignação a dieta imposta por "O Mundo das Maçãs" e por "28 Contos de John Cheever", mas sem jamais esquecer que de onde vieram esses contos espetaculares tem muito, muito mais.

BIOGRAFIA LIGEIRA

John William Cheever nasceu em 1912 e faleceu em 1982. Seu pai era industrial de sapatos até perder tudo na Depressão de 1929. Seu primeiro conto, Expulso, foi publicado em 1930. Com a ajuda do irmão mais velho Frederick, Cheever foi para Nova York e morou em uma colônia de escritores, a Yaddo. Foi então que o escritor começou a trabalhar para a The New Yorker. Publicou cinco romances e oito antologias de contos ao lonfgo de sua carreira. "The Stories Of John Cheever", com seus contos reunidos, ganhou o Prêmio Pulitzer de Ficção e também o National Book Award. Seis meses antes de morrer, Cheever recebeu a Medalha Nacional de Literatura. Sua obra completa -- romances e contos -- está publicada em dois magníficos volumes pela Library Of America.

TRECHOS DE SUA CLÁSSICA ENTREVISTA
PARA O PARIS REVIEW EM 1969

"Não trabalho com enredos. Trabalho com intuição, apreensão, sonhos, conceitos. Personagens e acontecimentos me vêm simultâneamente. Enredo implica narrativa e um monte de porcarias. É um esforço calculado para prender o interesse do leitor às custas da convicção moral. Claro, ninguém que ser monótono... é preciso um elemento de suspense. Mas uma boa narrativa é uma estrutura rudimentar, mais ou menos como um rim."

"Quando se termina um livro, seja qual for a recepção que ele tenha, existe um certo deslocamento da imaginação. Não diria desiquilibrio. Mas terminar um romance, é invariavelmente algo como um choque psicológico... Para reduzir o choque, jogo dados, fico petulante, vou ao Egito, ceifo um campo, trepo. Mergulho numa piscina de água fria"

"A ficção tem que competir com reportagens de alto nível. Se você não consegue escrever uma história à altura do relato real de uma batalha de rua ou de um protesto, então não sabe escrever uma história. É melhor desistir. Em muitos casos, a ficção não foi bem sucedida na competição. Hoje em dia, o campo da ficção está coalhado de narrativas sobre as sensibilidades de uma criança que chega à maioridade numa granja de frangos, ou sobre uma prostituta que despe o glamour de sua profissão. O Times nunca esteve tão cheio de porcarias em seus anúncios recentes de livros. Ainda assim, o uso da palavra ‘morte’ ou ‘invalidez’ sobre a ficção diminui, como acontece com tudo o mais".

"Não tenho nenhum vocabulário crítico e tenho muito pouca sagacidade crítica, e é por esse motivo, acho, que sou sempre evasivo nas entrevistas. Minha compreensão crítica da literatura dá-se em grande parte do nível prático. Uso aquilo que amo, e que pode ser qalquer coisa. Cavalcanti, Dante, Frost, qualqer um. Minha bibioteca é uma tremenda desordem e desorganização; arranco aquilo que quero. Não acredito que um escritor tenha qualquer responsabilidade de encarar a literatura como um processo contínuo. Acho que muito pouco na literatura é imortal. Jávi muito livro ser maravilhosamente de seu tempo e depois perder a utilidade, talvez por um período breve"

"Os escritores de minha geração, e aqueles que foram criados com o cinema, conhecem muito bem esses meios, grandemente diversos, sabem o que é melhor para a câmera e o que é melhor para o escritor. Aprende- se a pular a cena de multidão, a porta majestosa, a ironia banal de dar um close nos pés-de-galinha da beldade. A diferença entre esses ofícios foi, penso eu, claramente compreendida, e em conseqüência disso não há um bom filme que tenha vindo da adaptação de um bom romance. Eu adoraria escrever um roteiro original se achasse um diretor compreensivo. Anos atrás, René Clair ia filmar alguns contos meus, mas assim que o escritório central ouviu falar do assunto, retirou todo o dinheiro".

 THE COLLECTED WORKS OF JOHN CHEEVER
John Cheever
Library Of America
R$ 319,80
(2 volumes capa dura + box papelão)

28 CONTOS DE JOHN CHEEVER
John Cheever
Cia. das Letras
AQUI (novo)
AQUI e AQUI (usado)




Chico Marques devora livros
desde que se conhece por gente.
Estudou Literatura Inglesa
na Universidade de Brasília
e leu com muito prazer
uma quantidade considerável
de volumes da espetacular
Biblioteca da UnB.
Vive em Santos SP, onde,
entre outros afazeres,
edita a revista musical
ALTOeCLARO
e a revista cultural
LEVA UM CASAQUINHO

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