Wednesday, August 16, 2017

TRAGO SEU AMOR DE VOLTA EM 20 ANOS (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)


ilustração de Stefan Pelmus


Mercearia é um troço que dá um trabaaaaaaaaaaalho...

Às vezes, é divertido. Uma freguesa, num dia desses, confessou ter espancado Santo Antônio por mau comportamento: o estado civil da distinta deu aquela encalacrada. Não ata, nem desata.

Na última terça, dia 15, comemorou-se o Dia do Solteiro. Um desalinho: quem não casou, quer seu par. Quem casou, não vê a hora da “última forma”.

Entre tentativas e erros, um monte de trombadas no itinerário. Chega uma hora que quase vira o “Samba do Grande Amor”, do Chico Buarque. Um troço!

Quem já enfrentou as ‘agruras do amor’, encontra-se momentaneamente enfastiado(a) a tal ponto de não desejar lá grande coisa nesse campo. Porém, no fundo, no fundo, todo mundo deseja ter a tampa da sua panela.

Entre ‘as cordas e as caçambas’, os ‘chinelos velhos para pés cansados’, há muita desgraceira em nome do amor. Aí, o bicho pega! É uma traulitada atrás da outra de tal maneira que não entra nada no lugar que não sejam aqueles traumas caprichados.

Mais um monte de anos... períodos, ciclos... para que o(a) sujeito(a) se restabeleça.

A coisa vem piorando de uns tempos para cá nessa arte da solteirice. O desencontro é frequentemente garantido porque a quantidade de desejos em torno de um “estilo de vida” quase sempre cospe fora a famigerada ‘vida sentimental’.

Ou seja, tem espaço para tudo... menos para algum(a) candidato(a) a par.

Até que...



Faz-se, então, uma ginástica demoníaca de encaixar o(a) candidato(a) à cúmplice num cenário inédito que, lá pelas tantas, é combo: filhos, ex-maridos (e mulheres), empregos chatos, final-de-semana, sim, final-de-semana, não... lambeção de feridas... ‘cachórros’, gatos, papagaios...

Há alguns avanços, com a graça do bom Deus, como o famoso “go dutch” (expressão em língua inglesa para ‘rachar a conta’ mesmo no primeiro encontro). Aliás, esse lance de ficar impressionando o outro com indumentárias de marca ou restaurantes badalados também vem caindo em desuso. Nem tudo está perdido...

Isso se deve aos fatores financeiros nacionais (não está fácil para ninguém!) e ao processo de “conhecer a pessoa em questão”, algo bem mais relevante do que o cenário em si. De certa maneira, isso é de um avanço considerável.

Afinal de contas, as coisas mais doces da vida costumam ser de graça.

Bom... assim... se as pessoas estão brilhantemente fazendo a parte que lhes cabe, porque o trem não vira?! Por que ainda esse pobre merceeiro encontra uma quantidade enorme de gente muito boa que não consegue se acertar nessa área da interação humana?!

Resposta meio óbvia: essa área, como qualquer outra, entrou numa ‘ética de mercado’. Nesse caso, há certos vislumbres de que a coisa precisa ser ‘light’, pois, afinal, relacionamentos sérios engordam. Ou seja, dá uma trabalheira danada.

Com tantas trabalheiras ao longo da jornada, sobra para a parte ‘menos conhecida’ da coisa. Ninguém vai abrir mão do que tem (ou está sob sua responsabilidade) por um(a) ilustre desconhecido(a).

O que entra no lugar?! Muita lascívia, ‘cantadas de pedreiro’, conversas truncadas com excesso de malícia, justamente numa área que anda de mal a pior, a saber: o “amor genital” (alô, Freud... aquele abraço!) também entrou na seara da ‘semiologização de tudo’.

Aquilo que era o mais gostoso do negócio entrou numa sanha de representações, imagens ou sabe-se-lá-o-quê: parafraseando Deleuze, “... virou ladainha!”. Aí, caro(a) freguês(a), não sobra muita coisa, não. Percebam que a questão não está na vivência da sexualidade em si, mas na quantidade de ‘meeiros’ para o trânsito da coisa em si.

Sexualidade com muita mediação, mediação de tudo, de todos, faz qualquer um perder a sintonia com o(a) candidato(a) à ‘cara-metade’. Bastante simples: uma prática que supostamente seria ‘passo-a-passo’ e prazerosa para ambas as partes acaba virando um ‘tour-de-force’ “da moléstia”, tudo por conta de um desejo que só existe porque ‘alguém falou’, ‘alguém disse’, “... vi na televisão...”, “... li na revista...” ... nem vira, ‘né’?!

A quantidade de mediação por intermédio de uma ‘semiologização de tudo’ matou o prazer, ou o ‘joie-de-vivre’ de você ter encontrado, numa espécie de “feliz acidente”, uma pessoa legal de conviver. Aí, ferrou...! O resto vira expectativa, performance... disputa. Convívio que é bom, patavinas!

Ainda se os(as) meeiros fossem “da melhor qualidade”, ... mas não são! Uma quantidade de gente ‘sem eira, nem beira’ mediando vontades que deveriam ser apenas do par em questão. Perde-se a ‘sintonia fina’ que poderia surgir no casal e até o sexo, nesses casos, acaba indo “pras cucuias”.



O que move você, querido(a) freguês(a)?! O que você teria vontade de fazer, se possível fosse?! Por que você tem essa vontade?! Ou seja, você faz a pergunta e você mesmo responde... não os outros, ‘né’?!

Deixem a semiologia para os semiólogos. Não embandeirem a coisa! A continuar nessa batida, nem Santo Antônio dá jeito nessa coisa encalacrada...

Nós, dessa sobrevivente Mercearia, vendemos ‘secos-e-molhados’. Freguês(a) com a cabeça no lugar, sem mediações baratas, sempre faz bom negócio.

O mais triste em toda essa história é o fim dos convívios por conta de uma falação quase sempre inaplicável em boa parte das vezes. O convívio: justamente a parte crucial para um relacionamento a dois dar certo. E isso é ‘long-play’, caro(a) freguês(a)! Desconfie ‘com força’ de qualquer um que traz seu amor em três dias.


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO



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