A literatura do Século 20 tem uma peculiaridade muito interessante: muitos de seus maiores expoentes são crias de redações de jornais. É compreensível: sempre foi muito mais aventuresco para qualquer um com talento literário ganhar a vida como escriba de aluguel para um periódico qualquer do que optar pela Academia e virar professor ou mofar em algum cargo público e morrer de tédio. Até por conta disso, redações de jornais sempre fizeram parte do imaginário de muitos escritores. Que o digam Evelyn Walgh, Anthony Burguess, Graham Greene, Gore Vidal e tantos outros que produziram grandes romances sobre a Imprensa.
Umberto Eco é quase uma excessão à regra. Semiólogo eruditíssimo, atuou no jornalismo em diversos momentos de sua longa carreira, mas nunca fez arte do ambiente esfumaçado e barulhento das redações. A afinidade maior de Eco sempre foi com a Academia, onde ele brilhou intensamente nos Anos 60 com seu ensaio clássico "A Obra Aberta" -- que foi, juntamente com 'Contra A Interpretação", de Susan Sontag, um marco renovatório nos estudos de teoria da literatura nas Universidades do mundo todo.
Mas isso foi 50 anos atrás. Hoje, Umberto Eco é o genial escritor best-seller que se reinventou como romancista a partir da década de 1980 e nos legou dois dos romances mais importantes do final do século passado: "O Nome da Rosa" e "O Pendulo de Foucault". Em seu sétimo romance, o recém-lançado "Número Zero" (Editora Record, 208 páginas, 35 reais), ele revela, para surpresa geral, que mesmo não tendo experimentado o cotidiano das redações de jornais, não conseguiu escapar do encanto delas. Pior: conseguiu dar vida a uma das redações mais escrotas de toda a história da literatura moderna.
"Número Zero" se passa em 1982, quando um poderoso Comendador cria um jornal que nunca deverá ver a luz do dia, e que, ironicamente, se chama Amanhã. A idéia do Comendador é lançar vários números zero -- edições criadas para circular apenas no mercado publicitário --com notícias redigidas sob medida para ser usadas como arma em um esquema de chantagem e tráfico de influência. Além do Comendador, uma segunda pessoa sabe da trama malévola: o editor e jornalista contratado para escrever uma espécie de livro-reportagem sobre a história de Amanhã. Pouco a pouco, uma conspiração envolvendo a maçonaria, a CIA, o assassinato do Papa João Paulo I e o golpe de Estado de Junio Valerio Borghese vai tomando forma e criando uma linha tênue entre o jornalismo e os interesses políticos.
Umberto Eco é um escritor extremamente criativo e habilidoso, e faz uso de todos os seus poderes para criar um romance breve e implacável, que segue uma linha bastante tênue entre a farsa e o realismo, compondo uma história interessante e perfeitamente crível. Por conta dessa brevidade, "Número Zero" pode desagradar o leitor habitual de Eco, acostumado ao virtuosismo operístico e ao eruditismo cerebral da maioria de seus romances. Mas, de qualquer maneira, é um romance em tom menor mordaz, cruel, e inegavelmente engraçado.
Em "Número Zero" podemos ver nitidamente como o ovo da serpente da Era Berlusconi foi chocado e a partir de que momento na história recente a Itália começou a flertar abertamente com a encruzilhada em que se encontra hoje. Daí, se você estiver procurando por um romance que seja intelectualmente estimulante e que sirva para entretê-lo neste próximo final de semana, considere a indicação do novo trabalho de Umberto Eco. Aos 83 anos de idade, ele permanece em sua melhor forma.
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