As mulheres de papel despedem-se, com a sensação do dever cumprido
Chegou a hora de fechar as pernas, digo, fechar a redação e ouvir o novo clamor de sexo que pulsa no mercado editorial. Ninguém mais quer pagar R$ 19 para ver mulheres nuas nas revistas se elas estão licenciosamente grátis, uivando para a lua, de quatro no ato, a um clique digital. A banca brochou. O editor botou o IVC na mesa e garante. Não há Viagra que anime a circulação dessas meninas de papel. Definitivamente encalhadas.
Chegou a hora, revista masculina, de vestir a calcinha, deixar de ser lagartixa e descer da parede. Ouve, neste momento em que anunciam o seu fim, este canto de pesar de quem dormiu com a Cristina Mortágua, sonhou com a Fábia Tafarel, acordou com a Josi Campos, e a elas foi olho, mão e admiração. Eram lindas, mais ainda em papel couchê. Zero de estria, culote ou celulite. Peguei todas.
Durante anos o país se educou por esse mobral erótico e entronizou, nos seus altares mais secretos, santas como Malu Bailo, Karina Bacchi e Patrícia Lucchesi. Todos os leitores estavam dispostos naquele mês a passar tudo imediatamente para o nome delas, mas delas nunca mais se ouviu falar.
Por onde anda Claudia Egito? Em 1985, esparramada na areia de uma praia, ela aproveitou as lentes de Bob Wolfenson para trocar a estética da pirâmide invertida pela semiglabra do bigodinho de Hitler — e neste momento surgiram os contornos de uma nova civilização nacional.
Cadê Scheila Carvalho e Sheila Mello? Em 1999, elas embrenharam-se Amazônia adentro e se deixaram fotografar lambuzadas pelo visgo sugestivo das seringueiras sobre os peitos, esculturas siliconicamente exageradas que a partir daí redesenhariam a mulher brasileira.
Um país se faz com livros, dizia Monteiro Lobato, mas seria muito aborrecido se fosse apenas isso. É preciso que se junte a eles a chuteira com que Gerson mandava a bola no peito do Pelé, o lápis do Niemeyer, o violão do Noel e, por que não?, o Prestobarba com que Adriane Galisteu raspou os pudores encravados no bom gosto pátrio. Recolham-se ainda ao Museu das Glórias Nacionais o ursinho da Xuxa, o chicote da Tiazinha e a motocicleta que serviu de trono para Rose di Primo, no início dos anos 1970, exibir aos súditos a marquinha poderosa do biquíni asa-delta.
Descansa em paz, revista masculina, e, a propósito, o que não falta no seu almoxarifado é cama. Refestela suas carnes cansadas naquela de cabeceira dourada que serviu de palco para a Sonia Braga em 1985; arrefece seus desejos na cama de dossel escuro, a tela de gaze deixando entrever, protegida das picadas dos mosquitos, a pele divinamente alva da Dora Vergueiro. Dormi em todas. Estive também no sofá da Manuela do BBB e no colchão d’água da Nilza Monteiro, em 1995. Sim, foi bom para mim.
Acalanta em cafuné sossegado a cabeleira escura da Claudia Ohana, pacifica as sardas da Mylla Christie e abençoa a nudez familiar de Helô Pinheiro com a filha, Ticiane. Vista a roupa, meu bem, e vamos descansar. Foram muitos anos levantando os braços para desenhar melhor os seios, como fez a Josi Campos. Ou, sobre uma plataforma 8.5, esticando as pernas para que elas dessem a impressão da necessidade de muitos dias para serem escaladas até o cume, como sugeria a foto da Luiza Ambiel.
Essas garotas que hoje se exibem na webcam, diretamente de seu conforto doméstico, não sabem quantos pulos a Magda Cotrofe precisou dar numa praia deserta, ao sol do meio-dia, para ficar impressa na memória de muitas gerações como uma pomba sublime voando diretamente da libertação feminina para os braços do leitor.
A missão está cumprida, revista masculina, e depois de tantos anos é bom não precisar mais lubrificar as rotativas, nem revirar os olhinhos como a Thais Ventura ou fingir gemer gostoso como a Isadora Ribeiro diante da teleobjetiva do Luis Crispino. Chegou a hora, sem culpa, de alegar dor de cabeça e virar para o lado. Os meninos estão criados, agradecidos por folhear mulheres tão bem impressas no banheiro azulejado da imaginação de cada um. Tinham o mundo na mão. Os de agora vão ter na ponta dos dedos.
Os antigos agradecem pela companhia em momentos de absoluta solidão, no tempo em que as namoradas diziam “não” e eles, mais urgentes, precisavam ir ao encontro da felicidade. Era então que a Cida Costa aparecia, deitada de um jeito desconfortável em cima de uma mesa, mas nem aí para essas apoquentações, pois ela encarava a câmera com um sorriso de quem compreendia as aflições masculinas e estava ao alcance das mãos, “não fica triste, meu gato”, para aplacar as idiossincrasias e tudo o mais do querido leitor. O biquinho do peito avançava em riste, firme como o Pão de Açúcar, apontando para um futuro menos repressivo.
A sacanagem trocou de plataforma, e hoje, para o eterno combate do cinco contra um, ela se mexe ao vivo na tela do celular. A bagunça agora é com as ninjas midiáticas. As mulheres de papel despedem-se — obrigado, Joana “Feiticeira” Prado, Monica Carvalho, Nadia Lippi, as Ronaldinhas, Paula Melissa — com a sensação do dever cumprido. Eram bundas sempre risonhas iluminando as zonas escuras da sexualidade. Na década de 1970, no mesmo momento em que a censura obrigava os jornais a publicar diabinhos e poemas do Camões, elas também eram reconhecidas como um perigo à segurança nacional — e a ditadura militar só deixava que exibissem um mamilo, de preferência o da direita. O traço do rego, este subversivo que vinha pelas costas, também precisava ser apagado, talvez para não dar ao leitor a ideia de pegar em armas.
Agora grassa o grátis, e basta um clique para que todas as cachorras do mundo pulsem, facinhas, no vale-tudo dos êxtases digitais. O chicote da Tiazinha está com elas.
Joaquim Ferreira dos Santos
é um carioca exemplar,
um excelente cronista,
e escreve regularmente
no jornal O GLOBO
e em revistas de bom gosto
Joaquim Ferreira dos Santos
é um carioca exemplar,
um excelente cronista,
e escreve regularmente
no jornal O GLOBO
e em revistas de bom gosto
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