CAPÍTULO
2
Não,
não iria mexer naquilo outra vez. Sabia até onde estavam os originais de Sobre
Aquilo Tudo. Estavam salvos num CD guardado em alguma gaveta ou prateleira do
velho guarda roupa no quarto adaptado como escritório. E havia até mesmo alguma
coisa esparsa publicada no blog, cerca de ano e meio atrás. Mas não queria mais
mexer naquilo. Era assunto encerrado e devia permanecer assim.
No
entanto, sabia que ali havia muitas das coisas que gostaria de repetir para
ela. Às vezes, ele achava que ela havia se esquecido daquele tempo e de tudo o
que tinham passado durante aquele período. Mas talvez fosse tudo bobagem. De
qualquer forma, não mexeria mais naquilo.
Contudo,
a lembrança daquele material, escrito há cerca de oito anos e organizado na
forma do que poderia ter sido um livro – caso fosse editado e impresso -, era
sintomática. Sentia que estava andando para trás e isso lhe dava medo, medo de
onde isso poderia levá-lo, nos próximos dias, nas próximas semanas.
A
cada dia que passava, a sensação de que estava em perigo tornava-se mais forte.
E sabia que a origem desse
sentimento vinha de dentro dele, da sua
familiar incapacidade de lidar com situações que, para a maioria das pessoas, eram normais, mas que, para ele, se transformavam em verdadeiras
batalhas entre a vida e a morte.
Na
verdade, não queria passar por tudo aquilo de novo. Primeiro, o medo da perda;
depois, a perda; depois, o desespero do
vazio, e depois….sabe-se lá mais o quê. Já havia acontecido várias vezes
e não existia antídoto para aquilo. A não ser…
A
não ser…se transformar num nômade.
Sabia,
porém, que isso não ia ser nada fácil. Às vezes se sentia um gato velho e
gordo. Estava destreinado, desatento, descuidado. É o que invariavelmente
acontece quando as pessoas abaixam a guarda e acham que já está tudo resolvido.
É sempre um erro, sob qualquer aspecto. Então, num dia qualquer, o céu, de
repente, começa a ficar escuro, cada vez mais escuro. A chuva cai pesada e
quase nos afoga. Só então percebemos que havíamos esquecido como nadar. Pior
ainda, descobrimos que nunca aprendemos a nadar, estávamos apenas nos agarrando
a um pedaço de madeira que passou boiando ao nosso lado, quando da última
tempestade.
Mas,
definitivamente, não iria mais mexer naquilo.
CAPÍTULO
3
Defeito
de fabricação. Cristalino como a água pura que desce da nascente na montanha.
Andava para lá, andava para cá e acabava sempre no mesmo ponto. Não havia outra
explicação possível. O mais engraçado – ou trágico, dependendo do ponto de
vista – é que já sabia disso faz tempo. Fez, inclusive, várias tentativas,
tanto para reparar os danos quanto para reduzi-los. E, àquela altura da vida,
era obrigado a admitir que os resultados haviam sido ridículos. Seus pinos
continuavam batendo como um carro a ponto de explodir na pista.
Só
que, ao contrário das máquinas, creditava seus defeitos de fabricação não a
peças mal moldadas ou erros de projeto. Suas disfunções eram resultado de um
acúmulo de acidentes de percurso, caminhos equivocados e mal entendidos. E, quando
se chegava àquele ponto da estrada, era difícil fazer qualquer coisa
significativa a respeito. Até mesmo conformar-se com a situação parecia uma
atitude estúpida.
Gostaria
que, como no filme que vira com ela há alguns dias, existissem realmente anjos
observando os humanos do alto dos edifícios das cidades. Não tanto pelo fato de
que talvez eles pudessem ajudar ou proteger, mas sim porque a sua existência
abriria novas perspectivas a respeito da vidinha que a imensa maioria dos
humanos vivia aqui embaixo, no nível do chão, mesmo quando estão empoleirados
nas janelas dos grandes edifícios que parecem chegar até as nuvens. A
existência de anjos, porém, era improvável. Assim, ele teria que procurar
qualquer outro atalho, se quisesse continuar trafegando naquela estrada que, a
cada curva, ficava mais estranha e sem sentido.
Estava
delirando sobre todas essas coisas, deitado no sofá, com os olhos fixos no vaso
de flores em cima da mesa, quando foi tomado por uma daquelas incontroláveis e
inexplicáveis sensações de pânico. Quando isso acontecia, só havia uma saída,
deslizar rapidamente para a rua.
Estava
lá, pichado na parede do velho armazém de café abandonado: “Eu te amo, Ana
Marlow”.
Quem
seria Ana Marlow, e quem estaria apaixonado por ela?
Será
que Ana Marlow ainda estava viva? E quem pichou aquela frase na parede do
armazém abandonado, ainda estaria vivo? Ou será que Ana Marlow era apenas uma
musa imaginária de algum vagabundo louco que vivia por aquelas ruas?
Impossível
saber quem era Ana Marlow ou mesmo se ela existia.
No
entanto, era um nome bonito. “Ana Marlow, a rainha do gueto!”
Ele
pensava essas bobagens quando resolveu fazer uma coisa que não fazia há muitos
anos: sentar numa praça. E aquela era a principal praça da área central da
cidade. Como era hora do almoço, havia bastante gente circulando pela praça, a
maioria, com certeza, pessoas que trabalhavam por ali. Então ele começou a
refletir sobre a função das praças nas cidades.
Concluiu
que as praças eram lugares onde a gente sentava para não fazer absolutamente
nada, ou apenas para ver as pessoas passarem, ou somente para pensar, como ele
estava fazendo naquele momento. Mas as praças também eram locais onde a gente
ia para encontrar outras pessoas.
E
em outros tempos, ele lembrou, as praças também serviam para as pessoas
realizarem manifestações, a favor ou contra determinadas coisas.
Percebeu,
então, que as praças, principalmente nas cidades maiores, estavam perdendo sua
função, já que poucas pessoas as utilizavam para sentar e não fazer
absolutamente nada, nem para ver as pessoas passarem, nem para pensar, nem para
encontrar as outras pessoas, nem para se manifestarem a favor ou contra seja lá
do que for.
As
praças estavam se transformando em simples locais de passagem ou em lugares
onde se dava um tempo até a hora de voltar para o emprego, como acontecia
naquela praça, onde ele agora estava sentado.
Mas
que diabo queria dizer aquilo?
“Compreenda
a influência do humano em tudo”.
A
frase estava estampada na camiseta de um rapaz que passava pela praça
acompanhado de uma garota. Nunca tinha visto nenhuma camiseta com aquilo
escrito. Aliás, nunca tinha visto aquilo escrito em nenhum lugar.
“Compreenda
a influência do humano em tudo”.
Se
fosse a influência do divino, seria fácil de entender. A camiseta estaria. quem
sabe, divulgando algum movimento religioso ou coisa parecida. Mas a influência
do humano?
Quem
estaria exaltando – ou criticando, o que também era possível – a influência do
humano em tudo?
Saber
essa resposta não era, com certeza, a preocupação do funkeiro que passava logo
a seguir por ali, ouvindo um “proibidão” no seu celular. Então, o cara deu uma
sentada num dos bancos, esperou o “proibidão” terminar, fechou o celular e saiu
andando.
Doido
por doido, ele se identificava mais com o sujeito que arrastava um saco de lixo
de plástico preto de um lado pra outro da praça, reclamando em voz alta não se
sabia do que nem pra quem.
Reparou,
então, que apenas os doidos – e sempre havia vários deles nesses locais – ainda
davam a devida importância às praças
das cidades, já que, em geral, faziam delas seus territórios de resistência e
sobrevivência.
Se
continuasse a elaborar teorias como aquela – e principalmente se começasse a
acreditar nelas -, em breve acabaria transformando uma das praças da cidade no
seu território de resistência e sobrevivência. Afinal, virar mais um vagabundo
doido de rua era algo que sempre freqüentara seus delírios, quando pensava em
opções para o futuro. Sendo assim, achou que era melhor levantar-se e continuar
caminhando.
Já
tinha refletido bastante sobre praças, vagabundos e loucos.
Era
hora de cuidar da vida e isso significava ir a uma farmácia comprar os
medicamentos que nos últimos tempos era obrigado a ingerir diariamente. Estava
fazendo seu pedido ao balconista da farmácia quando percebeu um vulto se
aproximando à direita.
O
homem insistia em que ele lhe desse um trocado. Ele disse que não tinha.
O
homem continuou insistindo.
Ele,
irritado com o assédio, repetiu em voz alta que não tinha trocado, “porra!”.
O
homem finalmente se afastou.
Ele
continuou pedindo os remédios, depois foi até o caixa e pagou.
Diabos,
por que não dera um trocado ao sujeito?
Ele
não tinha trocado mesmo, justificou-se. Mas ele sabia que não era isso.
Ele
sabia que não dera um trocado ao homem porque sempre se sentia acuado com
aquele tipo de situação e sempre reagia de forma agressiva.
Saiu
da farmácia e foi até a padaria da esquina tomar um café, ainda ruminando a sua
atitude diante do pedinte. Enquanto tomava o café, percebeu o mendigo que o
abordara na farmácia se aproximando do caixa e depois do balcão da padaria.
“Uma
pinga, já está paga”, disse ele ao copa, que rapidamente o serviu.
O
homem entornou rapidamente o álcool na garganta, virou as costas e saiu da
padaria. O homem finalmente havia arrumado um trocado.
Ele
acabou seu café e foi embora.
Em
geral, pensou ele, as pessoas ficariam satisfeitas de terem negado uma esmola
que se transformaria em cachaça no balcão mais próximo. Ele, porém, continuava
se culpando por não ter dado o trocado ao homem que o abordara na farmácia.
Ele
sabia que aquele homem precisava desesperadamente matar a sua sede.
Contudo
– e apesar de tudo -, ele tinha de continuar caminhando.
Então,
quando se dirigia a uma livraria, cruzou com um colega dos tempos de faculdade,
que fingiu não conhecê-lo.
Normalmente,
ele agradeceria por aquilo, já que ele próprio vivia evitando cumprimentar
pessoas nas ruas com as quais não ia muito com a cara. No entanto, sem saber
bem por que, naquele momento a atitude do ex-colega de faculdade o irritou,
fazendo-o murmurar baixinho entre os dentes para o sujeito que passava: “Babaca
de merda!”
Depois,
lembrando dos ensinamentos da sua mãe e das reflexões do seu terapeuta,
questionou-se se, por acaso, sua hostilidade contra o ex-colega de faculdade
não era motivada pelo fato do sujeito ter, aparentemente, se dado bem melhor na
vida do que ele, pelo menos no quesito dinheiro. Mas logo chegou à conclusão de
que não gostava de playboys, fossem eles ricos, pobres ou marcianos.
Aí
perguntou a si mesmo: “E o que diabo vem a ser um playboy?”.
“Ora,
você sabe muito bem do que estou falando”, respondeu, dando-se por satisfeito
com a própria resposta.
Entrou
na livraria e se tocou de que não fazia a mínima idéia do motivo que o levara
até ali. Ficou por um tempo observando os livros nas prateleiras e, de repente,
chegou à conclusão de que definitivamente não gostava de livrarias.
Então
se perguntou por que diabos vivia entrando em livrarias e por que insistia em
escrever livros. Afinal, onde ele imaginava que os livros que talvez um dia
escrevesse pudessem ser vistos e comprados a não ser em livrarias?
Dessa
vez não tinha nenhuma resposta satisfatória para as perguntas que vivia fazendo
a si mesmo enquanto caminhava.
Por
isso continuou andando, agora em direção à praia.
Sentou-se
num dos bancos próximos à areia, ajustou os fones do mp3 e ficou olhando o mar
no meio da tarde de sol.
Sentiu-se
um idiota ali, sentado naquela praia, naquele meio de tarde, com uma seqüência
de músicas antigas dos Rolling Stones entrando, uma após outra, pelos buracos
dos seus ouvidos.
Aos
poucos, porém, começou a se sentir bem, muito bem mesmo.
Estava
no local certo, na hora certa, fazendo a coisa certa.
Então,
se perguntou: “Onde andará Ana Marlow?”
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