A
visita ao bairro de Camden Town estava perto do fim. Tínhamos passado a tarde
por lá, um bairro de artistas e gente alternativa que se tornara mais conhecido
porque fora a última residência da cantora Amy Winehouse.
As
casas com esculturas nas fachadas e grafites estilizados davam um ar de arte
contemporânea, somado às lojas de discos, histórias em quadrinhos e outros
produtos culturais que se misturavam com o comércio de souvenirs para turistas.
Era um bairro de Londres onde, nitidamente, as pessoas desrespeitam a lei que
proíbe o consumo de bebidas alcoólicas nas ruas. Apenas um saco de supermercado
finge encobrir o prazer da garrafa. A desobediência civil integra o pacote de
estilo de vida fora do padrão. Uma contradição que flutua entre o atendimento
ao turista e estar alheio a ele.
Eu
e Bel entramos numa das lojas para ver o preço de uma camiseta estampada com um
pote de Nutella. Seria um presente para Mariana, minha filha, e doida pelo
creme de avelã. Tati e Rodrigo, amigos que fiz em Londres, ficaram do lado de
fora. Fizemos aquela tradicional negociação com o vendedor, que chamou o chefe
dele, que empurrou a mercadoria, que não quis saber de nossas dúvidas e que
baixou o preço em 40% do valor inicial desde que não abríssemos a camiseta
dentro da loja. O voto de confiança e a compra realizada.
Quando
saímos da loja, havia cerca de 20 pessoas em torno de três grandes caixas de
papelão, encostadas num poste. Rodrigo observava o movimento enquanto sonhava
com uma faixa do Chelsea, seu time de coração. O vendedor não havia sido
condescendente. Tinha sido, de fato, inflexível: 15 libras, é pegar ou largar e
ponto final.
Tati
e Bel saíram para o lado direito da loja. Eu fui para o lado oposto, curioso
para ver o que atraía tanta gente, por que se debatiam para fuçar o conteúdo
das caixas. Uma senhora estava bem perto de nós e fez o alerta em inglês, que
tivéssemos cuidado com os pickpockets, batedores de carteiras que apareciam na
hora do descarte das mercadorias. Para ela, as bolsas de Tati e Bel corriam
riscos.
Chegando
mais perto, vi que as pessoas saíam contentes com xícaras de café, canetas, pen
drives, camisetas, canecas, uma diversidade de quinquilharias, todas em
perfeito estado. Mercadorias descartadas na rua pela loja ao lado. Descobri
depois que eram produtos chineses, comprados a preço de banana e que eram
jogados fora porque entupiam os estoques das lojas. Era uma prática usual se
livrar de produtos que não sensibilizavam mais os turistas. Nada de caridade,
apenas reciclagem de mercadorias.
Resolvi
dar a volta, sair da calçada e, pela rua, me aproximar do tumulto. Com meu
tamanho, poderia chegar perto das caixas. Dane-se! Se era de graça, valia
resgatar algum presente de ocasião.
Antes
de alcançar uma das caixas, uma senhora esbarrou em mim e desculpou-se enquanto
carregava uma xícara e uma camiseta. Encostei atrás de um rapaz de chinelos,
pés sujos e roupas de uns três dias. O odor dava o toque final. Parei do lado
dele, me agachei e coloquei a mão direita na caixa. O que viesse era loteria,
pois os corpos à frente não me deixavam ver o interior dela.
Dali,
saiu um gorro vermelho. De graça, seria um presente para alguém, até porque não
suporto usar algo na cabeça, seja boné, chapéu, boina, capuz. Fiz o caminho de
volta - feliz da vida como criança - por ter conquistado algo naquela pequena
batalha de consumo, naquela micro experiência turística.
Ao
voltar para a calçada, notei que Tati e Bel conversavam. Rodrigo estava junto
com elas, revezando-se entre o testemunho da guerra pelas caixas e o desejo de
levar uma lembrança do Chelsea para o Brasil. 15 libras. 15 libras seriam 90
reais. A frustração era digerida pela conversão das moedas.
Percebi
que havia escolhido o lado errado da trincheira. Bel estava com seis gorros nas
mãos. Tati, com outro. Eu, um único filhote. Soube que o dono da loja ofereceu
às duas os gorros. Ele se divertia com a briga para retirar a mercadoria na
calçada. Bel havia perguntado diante do braço estendido: "Free?"
"Free" foi a resposta dele.
Decidimos
nos afastar do tumulto. Conferimos e confirmamos que a camiseta da Mariana
estava sem defeitos. Juntamos os gorros numa sacola e seguimos o passeio por
Camden Town.
No
Brasil, deixamos que Mariana e Vinicius, além dos presentes que ganharam,
escolhessem os gorros que quisessem. Mariana adorou um gorro azul, mas - ao ver
que estava escrito o nome do grupo One Direction - fez a doação para o irmão
caçula.
Bel
também ficou com um deles, um gorro branco. Só no Brasil é que ela notou que
estava escrito Cocaine. O gorro descansa na gaveta até hoje, desejando que a
coragem apareça. E Fernando, meu cunhado, ganhou outro de presente.
As
crianças conhecem a história. Meu cunhado? Até hoje não sei se ele sabe a
origem do mimo. Só sei que, por uns dias, andou com o gorro para cima e para
baixo, sem lavá-lo.
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