Wednesday, July 25, 2018

OS INVERTIDOS (um contículo cult de Flávio Viegas Amoreira)



Théo olhava o fim de tarde lembrando o verão passado nas ruas de San Lorenzo em Roma. Uma espécie peninsular da Vila Madalena onde conhecera Andrea por quem ainda suspirava de saudade do seu corpo, das tertúlias particulares sobre filmes noir e o desencanto amoroso na andropausa.  Homens maduros são tão desiludidos sobre romance quanto solteironas desistentes.... Passara a noite lendo um ensaio sobre Max Jacob: por quê afinal todos louvam Picasso, Apollinaire e Jean Cocteau esquecidos daquele burlesco poeta tão a cara de MontMartre que foi Max Jacob?  Refletia quanto o vintage literário é gay e quanto o culto a divas como Kiki de Montparnasse e Arlety eram fenômenos de ´entendidos´.

- Onde minha coleção de filmes soviéticos? -  pergunta a Jerusa, sua faxineira fissurada por LPS de trilhas sonoras dos anos 70.

- Tá aí do lado desse retrato de Rita Hayworth em “Gilda”!

- A tarde quero café fraco, me passa essa cópia de Klimt, olha se chegou correspondência na portaria Je antes de ir embora,

- O Sr. conseguiu aquela cópia de “Senhorita Julia”? Quero levar para minha sobrinha que faz teatro .... prometo devolver em quinze dias...

- Por quê sempre lembro de “Lady Chaterlley” quando releio essa peça de Strindberg? – pensou em silêncio

A hora do Ângelus sempre melancólica, - suspira o langoroso dandy num roupão encardido de vinho...

- Não soa clichê essa sensação,- pergunta Jerusa com ar sarcástico sabendo o patrão policiar milimetricamente seus lugares comuns....

- Pode parecer “Darling”, mas alguns clichês são inevitáveis em minha idade... Essa hora Andrea deve estar sorvendo um chiantti com seu volume de poemas de Umberto Saba, pensa... Escolhia um CD qualquer de Philip Glass enquanto ela limpava o canto de sua poltrona na outra ponta da sala.

- Saio as oito, precisa de alguma coisa na padaria?
- Talvez amendoim japonês ou um aperitivo nessa linha para tomar com cerveja.

- Fecha a janela de trás, vento encanado,  volto logo e trago correspondência da portaria.

Em meia hora com artigos prosaicos e um pacote lacrado: Jerusa deposita tudo ao lado da mesa de trabalho de Théo que verifica a encomenda: um  DVD remasterizado com acréscimos ao clássico “Sunset Boulevard”.  A noite avança, Jerusa se organiza para ir embora com um cigarro básico e uma bicada no café na pia de velho mármore. O celibatário se concentra em alguns takes com Gloria Swanson e Eric Von Stroheim.   Sabendo-se só no “lost weekend”,  sem a sanha alcoólica de Ray Milland, se contenta com duas garrafas de tinto e pede que a mulher abra-lhe para um cálice juntos .  Uma melancolia difusa o invade,  nem Andrea, nem Philip Glass,  o que precisa é de algo imediato, um afago brando mas instantâneo. Procura hits dos anos 80 sua primeira juventude com primeiros embalos: Men at Work, “Hello” de Lionel Ritchie”, “Her Town Too” de James Taylor, belíssimo mas isso não vem ao caso agora ou algo descaradamente brega: “No more bolero” talvez....  Toma Jerusa já vestida com decote para um night and day na Augusta e pede agora um beijo cálido.... Tinha sido 25 anos atrás sua primeira e única amante mulher....

- Boa noite, Darling...

- Até a semana Théo!


Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).

2 comments:

  1. Identidade total com o autor, em algum momento senti como um texto bom para o teatro, diálogo cheio de imagens e sonoridades, de passados presentificados em Sampa, e Sampa é isso, a possibilidade de brincar com fragmentos a construir uma bricolagem polifônica, este o retrato de um Eu-cidade, a utilização do que aparente inverossímil como instrumento a serviço da ficção, esta intemporal. Enfim tem uma assinatura muito pessoal do Flávio V. Amoreira..

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