E
lá fui eu enfrentar minhas 11 horas de viagem. Era a primeira internacional de
toda minha vida. Estava muito empolgada, até me dar conta, lá no alto, de que
eu estava cruzando um oceano. E se algo desse errado? Não, eu não tive medo de
descobrir que muitas vezes o inglês nativo era incompreensível para mim, ou que
o frio poderia ser congelante, ou ainda que é difícil ficar sem arroz e feijão
por 30 dias. Meu único medo era sobrevoar o oceano.
Tentei
assistir a alguns filmes de comédia, mas nenhum deles conseguiu me tirar do
terror de imaginar a todo instante a possibilidade de o avião ter que pousar
antes de haver terra por perto. E então, zapeando quase sem esperanças, o nome
de um filme me chamou a atenção: Perdido em Marte. O que poderia ser pior do
que se perder, cair, nadar sem rumo no meio do Oceano Atlântico? Se perder em
Marte, claro!
A
desgraça do outro atiça nossa curiosidade, porque faz a nossa própria parecer
menos importante. É triste, mas é real. O Matt Damon era o personagem
principal, um astronauta. Por muito tempo, na infância, eu sonhei ser
astronauta. Legal. Play.
Coitado
do Matt Damon. Foi deixado para trás, dado como morto, comeu batata até umas
horas, plantou mais, explodiu tudo, um calor do inferno de dia e um frio do cão
à noite, e passou por tudo isso sozinho, sem nenhum Mr. Wilson para se
apegar... Tá bom, povo aí de cima, entendi. Poderia ser pior. Aliviada por não
ser astronauta, consegui dormir por algumas horas.
Ao
pousarmos, vi um ritual muito interessante. A primeira coisa que todos os passageiros
fizeram quando se levantaram foi colocar um casaco. Ou um supercasaco. Captei a
mensagem, mas achei que talvez fosse um pouco de prudência em excesso daquelas
pessoas. Sou calorenta, iria adorar o friozinho europeu. Saí /fugi do verão de
35 graus no Brasil, para ficar com frescura aqui? Imagina! Tirei meu casaco da
mala de mão, só para desencargo de consciência, amarrei na cintura (acho um
saco ter que carregar casaco) e lá fui eu... congelar. Depois de 5 minutos
batendo queixo, dei o braço a torcer. Meu casaco era meu melhor amigo, agora.
Após
achar a esteira onde estava minha mala (me perdi um pouco, claro, já que a
‘caipira-caiçara’ estava no maior aeroporto de Londres, o Heathrow), minha
primeira tarefa era comprar um chip de celular. Uma máquina substituía
funcionários de lojas de pré-pagos. Chip ok. Bora para o metrô. Mas para
embarcar, eu teria que comprar um cartão de transporte chamado Oyster.
Começou,
aí, meu segundo momento de pânico. Perguntei para várias pessoas, com meu
inglês tímido, se elas sabiam onde eu poderia encontrar o bendito (agora já
maldito) cartão. Para meu azar, todas as pessoas que eu parei para perguntar
eram tão estrangeiras quanto eu. Algumas não entendiam o que eu perguntava.
Outras balançavam as mãos antes mesmo de eu abrir a boca, revelando que não
saberiam (e nem queriam) me dar qualquer informação. Olhei no relógio. Eu tinha
horário para estar na estação de metrô de Wimbledom. Rafael, o rapaz que faria
minha recepção na casa de estudantes, me receberia no último horário disponível
para check in naquela sexta-feira.
Se
eu não estivesse lá, conforme combinado, só na segunda. Isso significava três
noites em um hostel e muitas libras indo pelo ralo. A ansiedade bateu. Tentei
respirar fundo, mas agora eu era uma criança sem amigos, no meio do pátio
lotado, no primeiro dia de aula.
Pensei,
durante um flash de segundo, em como a minha forma de ver Deus mudou, desde que
eu era criança. Agora, Ele já não era um velhinho europeizado, distante e
autoritário. Era algo menos humanoide, mas mais próximo e acessível, uma
manifestação de todos nós, humanos ou não. Eu estava ali, procurando um rosto
amigo naquele oceano, agora de gente, segurando bravamente a vontade de chorar,
quando senti alguém tocar meu ombro:
-
Hi, lady! (Oi, senhora!)
-
Hi!!! (Mistura de “Oi” e suspiro de alívio)
-
Are you ok? (Você está bem?)
-
No! (O não saiu rápido e sincero)
-
Can I help you? (Posso te ajudar?)
-
Yes, pleeeeeeease! (Sim, por favoooor!)
Eu
acabava de conhecer meu primeiro anjo da guarda no Reino Unido: um homem muito
alto, negro, sorridente, com um olhar extremamente gentil e uma voz de trovão
que me fizeram prontamente não ter dúvidas de sua patente celestial. Ali,
estava disfarçado de guarda, funcionário do aeroporto. Ele permaneceu com a mão
no meu ombro (transfusão imediata de calma) enquanto me levava até o guichê
para compra do Oyster. Tudo certo! Mais um “sim” da vida. Olhei para trás para
agradecê-lo e adivinhe... ele já tinha sumido. Os anjos são sempre muito
ocupados.
Entrei
no metrô (o Heathrow é o ponto final de uma das dezenas de linhas de metrô de
Londres) e lá fui eu ver a cidade do chão, pela primeira vez. Eu olhava a tudo
com atenção: detalhes do metrô, das pessoas, sotaques, semblantes... Todos tão
diferentes. Ouvi vários idiomas logo no início do trajeto. Eu estava começando
a perceber que talvez eu sentisse muita falta de ouvir português nas ruas. Eu
adoro falar inglês e tenho muito interesse em aprender outros idiomas, mas é
pela língua portuguesa que sou fascinada. É nela que me sinto em casa.
Foi
quando ouvi a voz do meu segundo anjo da guarda. Ela começou a falar ao
telefone, ao meu lado no banco do metrô. Um sotaque carioca gostoso que só. Ela
falava em saudades, essa palavra tão nossa, e tinha os olhos cheios d’água. Eu
fiquei ali me deliciando com o sotaque dela, ouvindo sua voz suave, mansa, que
foi me acalmando e me dando a certeza de que eu estava constantemente
assessorada pelo povo lá de cima (ou aqui do lado).
Quando
ela desligou, eu disse oi. Vi que ela se surpreendeu com o português. Me
apresentei à Edilaine e disse o quanto eu estava feliz em ouvi-la. Ela sorriu e
me revelou o motivo das lágrimas: havia acabado de levar alguns familiares, que
tinham vindo visitá-la, ao aeroporto, para pegar o vôo de volta para o Brasil.
Apesar
de toda angústia e ansiedade que haviam intoxicado nossas mentes minutos antes,
poucos momentos depois já estávamos sorrindo, com ela me contando as vantagens
de viver em Londres, elencando inúmeras coisas que ela amava e que certamente
eu também iria me apaixonar no tempo que eu ficasse por lá.
Dez
minutos de conversa e o saldo foi: duas brasileiras felizes por terem se
encontrado ali, naquele momento, naquela cidade, naquele vagão de metrô,
falando português, matando um pouquinho da saudade da sua terra e vendo todo o
lado bom de tudo que estava acontecendo nas suas vidas. Trocamos contato, nos
abraçamos forte, demoradamente, e ela desceu. Senti dentro do meu coração,
agora aquecido, que aquele era mais um “sim”. Eu só conseguia agradecer.
“Next
station: Wimbledom”, falou a moça com voz de Google no alto-falante do metrô,
depois de algumas baldeações e três quartos de hora, como dizem os ingleses.
Assim que as portas do metrô abriram, avistei um café. Ainda faltavam alguns
minutos para o horário combinado com o Rafael. Meu primeiro café europeu. Fotos
para o Marcus. Alegria que não cabia em mim.
Agora
também com mãos e pés mais aquecidos, passei pelas catracas e fiquei com minhas
malas, encostada em uma das paredes, esperando pelo Rafael, um rapaz muito
educado e simpático, que eu não conhecia pessoalmente. Do outro lado, na parede
oposta, percebi que um menino, na casa dos vinte anos, repetia minha cena, como
num espelho. Reconheci nele o olhar assustado daqueles que se aventuram pela
primeira vez: um misto de medo, ansiedade e euforia. Deve ser assim que os
astronautas se sentem nos minutos que antecedem a partida do foguete. Eu sabia
exatamente o que ele estava sentindo. Ou, pelo menos, achava que sabia.
Rafael
logo chegou e me deu as boas-vindas. Fez o mesmo com o menino-da-parede-oposta.
Em seguida, nos apresentou: Beth, esse é o Rodrigo. Descobrimos, naquele
instante, que seríamos colegas de quarto. O que eu ainda não imaginava era que
eu acabava de conhecer meu terceiro anjo da guarda, que me salvou da tristeza
muitas e muitas vezes. Meu primeiro roomie e best friend em Londres.
Saímos
da estação e fomos recebidos pela garoa londrina. Na caminhada para a casa, que
durou cerca de dez minutos, Rafael foi nos mostrando os lugares que dali a
alguns dias seriam imprescindíveis para nossa sobrevivência: supermercados,
lanchonetes e pontos de ônibus (foi quando vi um ônibus de dois andares, ao
vivo, pela primeira vez!!!). Chamou nossa atenção para o lado invertido do
trânsito: “Gente, não esqueçam, o tráfego é sempre no sentido oposto ao que
estamos acostumados. No começo é difícil de lembrar, então eu recomendo: OLHEM
PARA OS DOIS LADOS DA RUA ANTES DE ATRAVESSAR!!! O índice de atropelamento em
Londres é bem alto, justo porque os turistas não prestam atenção nisso”. Dentro
de alguns dias, eu entenderia a preocupação do Rafael e saberia como ocorre, na
prática, a manutenção desse índice elevado...
Chegamos
a uma casa linda, numa rua arborizada e muito limpa, como todas que eu tinha
visto até então. Entramos e a temperatura logo nos acolheu. Havia poucos
estudantes na casa, que estariam indo embora em breve. Naquele momento, me dei
conta de um fato: era muito provável que eu fosse de longe a criatura mais
velha que já tinha pisado naquele chão. E se as crianças saíssem do controle?
Bem, cada coisa a seu tempo, pensei, na tentativa de conter a ansiedade.
Conhecemos
a sala, a cozinha superequipada (e com água quente na torneira, graças a Deus)
e a lavanderia. Mal sabíamos que aquelas paredes abrigariam tantas histórias
engraçadas, cheias de afeto e carinho compartilhados, que virariam lembranças
profundas para toda vida. Fui levada ao meu/nosso quarto e apresentada à minha
cama e ao meu guarda-roupas.
Achei
tudo excelente. Rodrigo estaria a alguns passos de mim. Fomos os primeiros a
chegar e ficamos com as camas que tinham um aquecedor ao lado, o que não
acontecia com as outras duas, ainda vazias. Achei que esta seria uma vantagem,
e foi, até que descobrimos um visitante indesejado que também adorava se sentir
quentinho nas noites de inverno... (já sabe, essa também é outra história...).
Cada
um dos seis quartos da casa recebia o nome de um personagem/artista inglês
muito querido por todo mundo. O nosso? “David Bowie”. Olhei para a imagem do
Camaleão do Rock, que estava tanto na porta do quarto quanto na cabeceira da
minha cama, e imediatamente ele começou a cantar para mim o tema do filme que
havia me salvado no avião, horas antes:
There's
a starman waiting in the sky (Há um homem das estrelas esperando no céu)
He'd
like to come and meet us (Ele gostaria de vir e nos encontrar)
But
he thinks he'd blow our minds (Mas ele acha que nos assustaria)
There's
a starman waiting in the sky (Há um homem das estrelas esperando no céu)
He's
told us not to blow it (Ele disse para não nos assustarmos)
Cause
he knows it's all worthwhile (Porque ele sabe que tudo vale a pena)
He
told me: (Ele me disse:)
Let
the children lose it (Deixe as crianças perderem o controle)
Let
the children use it (Deixe as crianças aproveitarem)
Let
ALL the children boogie (Deixe TODAS as crianças dançarem)
Beth Soares nasceu em Santos SP,
é jornalista e editora no Ateliê de Palavras
ao lado do maridão Marcus Vinícius Batista,
colabora para o website JORNALIRISMO,
colabora para o website JORNALIRISMO,
para o blog CONVERSAS & DISTRAÇÕES
e agora também para LEVA UM CASAQUINHO
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