Sobre algo tão denso quanto Bergman prefiro me
soltar num gozo do que lembro sem pretensão acadêmica ou intelectual. Minhas impressões mais tocantes são sobre “Morangos
Silvestres”, verdadeiro tratado existencial, um inventário sobre a percepção
das coisas vividas, o relevo algo que realmente conta. Da mesma forma sobre “O
Sétimo Selo”, um lance de dados ontológico, plataforma ampla, quase um painel
apurado acerca dos frutos da terra, a
crueldade da convivência e o terror diante do nada. O abismo da condição humana
e a inescapável teia de medo que nos cerca só superada pela resistência
imanente: os artistas são os sobreviventes pela perícia em driblar a paralisia
que nos envolve. Bergman não era ele mesmo um intelectualista, era
essencialmente um artista de teatro, um encenador, obviamente embebido de
filosofia na tradição de outros mestres como Strindberg e Knut Hamsun na
literatura. Bergman é aquele artista
siderado no envolvimento completo com sua construção: está para o cinema como
Shakespeare para a dramaturgia e Cervantes para as grandes novelas. Envolve-se com detalhes, elabora diálogos
pungentes e precisos, arrebanha equipes de virtuoses na interpretação e técnicos,
sabe que o importante é a encenação suprema, ela mesmo um universo em si. Tanto
nos grandes dramas como “Fanny e Alexander” ou no minimalismo psicológico de “Persona”
são notáveis seu timing e prospeção fundamentais da alma do que se conta e reflete.
Case “Monika e o Desejo” com “Sonata de Outono” e terá uma amostra imortal da
família, das instituições tradicionais, do sexo e do casamento. E quão
dilacerantes “A Fonte da Donzela” e “O Rosto”! Nunca canso repetir que vejo
Kierkegaard e Nietszche em cada tomada, cada perspectiva da filmografia em que
o mestre intercala ternura e crueldade, doçura e feroz denúncia de nossa
miséria moral na busca da redenção. Compaixão: essa também mesma busca em cada
instante é a matéria que aspiramos num dia de brisa redentora. Celebramos
Bergman nesse julho brasileiro! A ele tanto devemos mesmo nos trópicos não
menos complicados.
Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
No comments:
Post a Comment