CAPÍTULO XXVIII
Foi
muita estupidez imaginar que as bugigangas que haviam ficado com Júlio poderiam
render alguma grana decente.
A
moto tinha se transformado num monte de ferro-velho enferrujado, depois de
permanecer guardada durante todos aqueles anos num dos três ou quatro pequenos
armazéns clandestinos que o pai de Júlio mantinha na zona portuária. O jeito
foi aceitar a mixaria que a única pessoa que poderia se interessar por aquilo
ofereceu, ou seja, o dono de um ferro-velho.
Alguns
móveis, guardados no mesmo armazém, já tinham virado comida de cupim. E os
cupins não haviam deixado nem um bilhete, agradecendo pela refeição.
Era
óbvio que as duas TVs já não funcionavam mais, nem o aparelho de som ou os dois
amplificadores, tanto o maior quanto o menor.
Bem,
a guitarra estava em boas condições, mas isso só havia acontecido porque Júlio
a tinha “adotado” e ela, desde que Jeremias partira, tinha se transformado em
companheira fiel de Júlio, o que com certeza havia causado ciúmes doentios na
sua fiel Fender trazida dos EUA e desde então deixada em segundo plano,
abandonada num canto do quarto/sala de Júlio.
Jeremias,
a princípio, não queria aceitar, mas Júlio insistiu tanto que ele acabou
enfiando no bolso aquela “ajuda de custo” em troca da cessão definitiva do
instrumento.
Afinal,
Jeremias estava mesmo precisando desesperadamente de dinheiro e até aquela
grana ridícula oferecida por Júlio pela guitarra fazia diferença na situação em
que se encontrava. Ao mesmo tempo, àquela altura do campeonato, a última coisa
que Jeremias estava precisando era de uma guitarra velha, mesmo que ela agora
estive funcionando perfeitamente.
Trocando
em miúdos, a grana conseguida por Jeremias dava para ele arrumar um lugar para
dormir por alguns dias e continuar frequentando as lan-houses, para mandar seus
e-mails para João, seu principal e único projeto no momento.
Estava
de bom tamanho, pensou ele, enquanto se despedia da guarita falante e batia o
portão da rua do prédio de Júlio, após recusar sua oferta para que dormisse ali
por alguns dias.
CAPÍTULO XXIX
Já
estava a alguns quarteirões de casa quando concluiu que aquilo não fazia
sentido algum. Colocou as duas mochilas no chão e sentou-se na beirada do
canal. Sentiu-se envergonhado, pois
percebeu a infantilidade de toda aquela merda. Só mesmo uma criança ou alguém
seriamente perturbado poderia achar que fugir seria solução, solução para a
travação em relação a escrever um cada vez mais improvável segundo livro, a
solução para se livrar daquele beco sem saída em que se sentia aprisionado
desde que Jeremias havia começado a lhe enviar aqueles e-mails malucos, a
solução para aquele desespero profundo que tomava conta dele sempre que se
pegava sozinho em casa e não conseguia fazer mais nada além de passar horas
navegando na internet e buscando inutilmente algo para ver na TV a cabo,
evitando assim, de todas as formas possíveis, pegar o notebook e tentar dar
continuidade àquelas duas páginas que começavam com a frase “foi uma longa
jornada dentro da noite”, exatamente a mesma frase com que encerrara A Porta
dos Fundos do Paraíso.
O
mais absurdo, porém, era que tinha decidido fugir sem nem sequer imaginar para
onde ir. E qual seria a reação dela ao chegar em casa e perceber que ele havia
simplesmente sumido? Claro, não seria a primeira vez que algo assim acontecia,
só que tudo tem um limite e talvez o limite dela, justamente daquela vez, já
tivesse se esgotado. Então, por todos os motivos do mundo, ele, como sempre
fizera das outras vezes, deu meia volta e retornou para casa.
Enquanto
tirava as roupas da primeira mochila e retirava o notebook da segunda,
colocando-o sobre a mesa da sala, João entendeu que, de uma forma ou de outra,
estaria preso ali, até que terminasse o que havia começado. O problema é que
ele não sabia bem o que havia começado.
A
sensação de que precisava terminar o que havia começado se referia, afinal, ao
livro do qual só havia escrito duas páginas, à história que Jeremias vinha
contando através dos e-mails ou a alguma outra coisa que ele não estava
percebendo?
Essa
última hipótese parecia fazer algum sentido, isto é, talvez ele não tivesse que
terminar especificamente uma coisa, mas sim definir, de uma vez por todas, o
que queria fazer da porra da vida, já que andar em círculos e imaginar que
sabia para onde queria e devia ir, embora nunca saindo do lugar, havia se
transformado na sua principal e única atividade nos últimos tempos.
Lembrou-se
então de um filme francês que havia visto na TV, no qual um executivo abandona
sua vida profissional de sucesso em Paris e vai para o sul da França, onde
monta uma pousada com a mulher. Descobre, porém, que sua verdadeira vocação era
fabricar azeite com as azeitonas que nasciam numa propriedade rural próxima à
sua. A sua mulher, que não se adaptara à vida naquela pequena aldeia onde foram
morar, volta para a cidade, mas ele continua lá, tentando apreender a
distinguir, a partir dos seus pequenos ramos, a diferença entre os vários tipos
de oliveira e a relação disso com a espécie de azeite que podia ser produzido
com as azeitonas de cada árvore.
João
concluiu, porém, que todo aquele blá-blá-blá podia não passar de mais uma
grande e estúpida fantasia, daquelas que o levavam sempre ao mesmo lugar: a
parede bem em frente ao seu nariz. Por isso, saiu novamente de casa, desta vez
sem as mochilas. Ia apenas caminhar pelas ruas e ficar cansado o suficiente
para esquecer aquela confusão toda, pelo menos por algum tempo.
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