Como
cheguei em Londres três semanas depois de Bel, tive que me hospedar em outro
endereço. Ela e um colega da república estudantil me arranjaram um quarto em
casa de família. Isso significava também a distância de um quilômetro e meio
entre as casas. Eu, em South Merton. Eles, em Wimbledon.
Para
encontrar Bel, tinha três opções de transporte: trem, ônibus ou metrô. Depois
da meia noite, sobrava apenas uma viagem de meia hora de ônibus, pontualmente
britânico. O problema era a temperatura, que caia a 5ºC com sensação térmica de
zero grau. Não dava para ficar parado em ponto.
Na
primeira noite, havíamos jantado juntos e colocado a conversa em dia. Conheci
os novos colegas da república e me despedi. Decidi ignorar as recomendações de
ônibus e fazer a caminhada de volta, à uma hora da manhã. Sabia o roteiro
porque havia feito o trajeto uma vez, durante o dia. Memória fotográfica.
Desci
a rua da república e entrei numa avenida. Silêncio, sem carros ou pessoas.
Avenida desértica. Duas quadras depois, virei à esquerda e tomei uma rua com
quatro quadras de extensão, basicamente formada por residências e uma escola de
educação infantil.
Nenhuma
alma que estivesse viva. Quase todas as casas não tinham portão e estavam
apagadas. Uma luz acesa a cada quatro, cinco casas, em média. A maioria eram do
hall de entrada.
A
decisão estava tomada. Seria besteira voltar para a avenida e esperar o ônibus,
congelando no frio, sem luvas ou gorro. A jaqueta dava conta, e a bolsa de
couro, modelo carteiro, ajudava a esquentar as costas. Segui a caminhada em
passos rápidos, como se fosse exercício, como andar na orla da minha cidade
natal.
O
final da rua se unia a uma passarela sobre a ferrovia, bem parecida com aquelas
que ninguém atravessa nem durante o dia no Brasil. Aquelas estruturas de
concreto que magnetizam assaltos, descartadas por pessoas que desafiam a
loteria do atropelamento ao pularem a mureta sem proteção. Uma passarela muito
parecida com as da Rodovia dos Imigrantes ou da Rodovia Padre Manoel da
Nóbrega, no litoral sul de São Paulo. Havia uma diferença, que não refrescava o
risco ou amenizava a cautela. Aqui, as muretas são de concreto; lá, grades de
metal.
Passei
pela passarela quase correndo. Passos acelerados o suficiente para ver que não
havia trens no horizonte, que os prédios de três andares e as casas do outro
lado estavam todas apagadas. Vivo, ninguém! Uma hora da manhã e a cidade morta,
adormecida pela baixa temperatura, pelo inverno que anoitecia Londres às quatro
e meia da tarde.
Ao
sair da passarela, nova rua com sete quadras de extensão até que pudesse cruzar
nova avenida e estar perto da casa que me hospedava. Na segunda ou terceira
quadra, ouvi um barulho, como se fossem passos com um tom mais arrastado.
Parei, olhei para os lados e para trás. Ninguém! Continuei a andar. Na quadra
seguinte, o barulho se repetia. Reduzi o ritmo, olhei em volta. Casas às
escuras. Ninguém na rua. Andava há quase 15 minutos e nenhuma pessoa naquela
madrugada de terra arrasada.
Cristalizei
a certeza de que ainda seguia contaminado pelo medo de andar tarde da noite no
Brasil. Medo da violência. Temor por assalto. Inúmeros relatos de amigos e
parentes. Enquanto andava, o som aparecia e sumia. Porra, estou ouvindo o que
não existe. Neurose latina, febre tropical, só pode ser.
Andei
mais duas quadras, estava quase na avenida e ouvi o arrasta-pé outra vez.
Resolvi raciocinar e tentar descobrir a origem do ruído. Isolei todos os sons.
Não foram mais do que seis passos e o diagnóstico: o barulho que me preocupava
era o resultado do atrito da bolsa-carteiro com a minha jaqueta. O som andava
comigo, caminhava de braços dados com a minha paranoia urbana. Ri sozinho do
turista patético.
Quando
virei na segunda avenida, a civilização renasceu. Duas pessoas conversavam
enquanto esperavam em um ponto de ônibus. Gente após mais de um quilômetro de
passos ritmados e cérebro em polvorosa. Um carro de luxo passou e trouxe outro
tipo de voz ao meu trajeto. Duas pessoas que mal me olharam quando passei pelo
ponto de ônibus.
Virei
à esquerda, passei pelo clube de criquete, por baixo de um viaduto e virei na
Springfield Street, onde estava hospedado. Eram mais uns cinco minutos andando,
onde encontrei mais duas pessoas do outro lado da calçada e a mesma repetição
de casas sem portão e luzes apagadas em quase todas elas. Quatro sujeitos na
mesma noite. Viva a vida noturna dos gatos pingados, pensei.
Cheguei
na casa do Michael, o senhor que morava sozinho e teria minha companhia por
cinco dias. Conversara com ele rapidamente durante a tarde, quando deixei minha
mochila e conheci o quarto onde ficaria. Só ali, mais de uma da manhã, é que me
lembrei do que havia dito. Estaria em casa por volta das dez da noite. Havia
quebrado a regra em mais de três horas, já fascinado pela vida londrina e
envolvido pelos novos amigos brasileiros. Nada mais irritante para um britânico
quanto o atraso.
A
saída era uma só: tocar a campainha e me desculpar. Por algum motivo qualquer,
resolvi colocar a mão na maçaneta. A porta estava aberta. Imaginei que, de
repente, Mr. Michael esquecera a porta destrancada e estava no andar térreo da
casa, vendo TV ou lendo um de seus livros de História e Política.
A
casa estava escura e silenciosa. Entrei em todos os cômodos e nada. Subi as
escadas e todos os quartos estavam fechados. Fiquei imediata e naturalmente
preocupado. Quebrei o protocolo e bati na porta do quarto dele. Mr. Michael me
atendeu como alguém que, de fato, é acordado no meio da madrugada. A falta de
noção da hora dispensou as minhas desculpas.
"Mr.
Michael, sorry, but the door is opened."
"Don´t
worry, Marcus, the door is always opened."
Perdi
a fala e ele também, dormindo novamente. Respirei um pouco, agradeci e fui para
meu quarto. Não era possível que alguém, numa cidade do tamanho de Londres,
dormisse em paz com a porta da rua aberta.
Mesmo
exausto, levei um tempo para conseguir dormir. A porta do meu quarto permaneceu
trancada. Minha carteira e meu passaporte repousaram embaixo do meu
travesseiro. Que levassem tudo, mas dinheiro e identificação eram essenciais!
No
dia seguinte, Mr. Michael me explicou sua rotina. Deixaria, quando estivesse
fora, uma cópia da chave dentro de uma caixa de papelão, ao lado da porta. Isso
nunca aconteceu, previsível para um homem de 70 anos.
O
que aconteceu é que, na noite seguinte, refiz o mesmo caminho, mais ou menos na
mesma hora. Sem promessas de chegar cedo e sem bolsa-carteiro, mas com luvas e
gorro; sem os medos brasileiros. Desta vez, encontrei cinco testemunhas na rua.
(publicado originalmente em
CONVERSAS E DISTRAÇÕES
em Maio de 2016)
Hello mate great blogg post
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