Tive o primeiro
contato com uma produção do David Simon em Treme, a série que iniciou em
2010 e retratava a tentativa de volta à normalidade dos habitantes de Nova
Orleans depois da passagem do furacão Katrina, em 2005. Logo depois assisti à
excelente mini serie baseada
num caso real Show Me A Hero, de 2015. Nas duas produções é nítida a
preocupação em retratar ao máximo a realidade com toda a sua complexidade de
forma quase documental, cobrindo a realidade de uma grande variedade de personagens
sempre com foco seus respectivos ambientes. Com isso, além da esfera pessoal,
são retratados em detalhes ambientes como a policia, os políticos, os músicos,
os empreiteiros e vários outros, que vão formando um mosaico cada vez mais
interligado e complexo. O que eu não sabia é que a sua obra prima tinha sido
lançada em 2002 e durou até 2008 -- a série The Wire, que usa os mesmos
elementos com maestria.
Ano passado,
Simon se voltou ao ambiente da prostituição na Nova York dos anos 70 com a
serie The Deuce, que encerrou agora a sua segunda temporada, mantendo-se
fiel ao seu estilo. A serie recria a podridão que era a cidade na época, se
concentra especialmente na região do The Deuce, que dá nome à serie. O
foco da primeira temporada é na prostituição e nos cafetões, mas, fiel ao seu
estilo, Simon envolve a Polícia, a Máfia, a Especulação Imobiliária (que deseja
valorizar a área degradada), os políticos, a vida noturna, a cena gay e --
particularmente na segunda temporada -- uma indústria pornô que passa por um
boom. Parece complexo -- e é --, mas uma série e com várias temporadas
possibilita isso.
Normalmente, as
séries de Simon não contam com atores famosos. Alguns acabam famosos depois de
passar por elas, como Idris Elba e Dominic West em The Wire. Outros
passam de uma série para outra, como Wendell Pierce e Chis Bauer. Sempre há a
preferência por tipos comuns, confirmando assim o maior foco possível na
realidade. Mas dessa vez ele despertou o interesse de Maggie Gyllenhaal e James
Franco, que também assinam como produtores. Os personagens dos dois, no
entanto, não tem nenhum glamour. Maggie está excelente -– ganhou o Globo de
Ouro -– no papel da prostituta de rua que começa a se interessar por filmes
pornô até chegar à direção. E Franco não compromete interpretando dois irmãos gêmeos
que se envolvem com as atividades controladas pela Máfia.
Tudo é muito
verossímil, os sonhos e ambições das meninas -- a maioria recém-chegada à
cidade grande --, a relação de amor-ódio das prostitutas com os cafetões, os
clientes -- a maioria perdedores e fracassados, alguns violentos --, a Polícia (quase
sempre) corrupta e os bastidores da Indústria Pornô, desde as cabines onde os
filmes eram exibidos até os cinemas especializados. O boom doméstico do
lançamento do VHS ficou para terceira e última temporada da série.
Como é focada em
vários personagens e ambientes, a série começa devagar, apresentando os
personagens com calma e deixando o espectador se envolver no contexto e na
conexão entre as atividades. Com o tempo, tudo fica interligado, sem
simplificações. Todos os personagens, por mais repugnantes que possam parecer,
são humanos e tem que conviver com as suas escolhas e suas culpas. Aliás, como
todos nós. Não há mocinhos e bandidos, e isso é, entre muitos trunfos, um
grande diferencial da série.
The Deuce tem muita nudez
e sexo, como pede o tema. Mas tudo é cru, nada é romantizado, e nada é gratuito.
Serve de antídoto a esse neo-puritanismo que está tomando conta das pessoas nos
dias de hoje.
Se você é
daqueles que não aderiram à onda neo-puritana, eu recomendo The Deuce fortemente,
assim como Treme, Show Me A Hero, The Wire e qualquer outro
projeto que venha a receber a assinatura de David Simon.
Fábio Campos convive com filmes e música
desde que nasceu, 52 anos atrás.
Seus textos sobre cinema passam ao largo
do vício da objetividade que norteia
a imensa maioria dos resenhistas.
Fábio é colaborador contumaz
de LEVA UM CASAQUINHO.
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