Wednesday, June 8, 2016

EMBARQUE NA "LINHA M", A NOVA VIAGEM SENTIMENTAL E LITERÁRIA DE PATTI SMITH

por Chico Marques


Convivo com Patti Smith na minha vida há 40 anos. Comprei seu disco Horses na ocasião em que foi lançado, e o ouvi sem parar ao longo de 1976 e 1977. Na época, Patti soava como um estranho cruzamento entre Jim Morrison, Van Morrison, Bob Dylan e Lou Reed, e fazia uma espécie de rock de elevação, onde quase sempre acertava as contas com seus demônios e saia em flerte aberto com os anjos. Ninguém fazia nada remotamente semelhante na cena musical naqueles tempos.

As letras das canções de Patti, absolutamente pós-modernas, mesclavam o alumbramento de Verlaine, o existencialismo de Simone de Beauvoir, a rebeldia poética de Jean Genet e a esperança do Papa João Paulo I, entre vários outros elementos. Sua poesia era intensa e verborrágica. Num universo pouco letrado como o do rock and roll, Patti era "avis rara". Curioso ela ter demorado tanto tempo para deixar a poesia um pouco de lado e abraçar a literatura.


Patti estreou na prosa já vencendo logo de cara o National Book Award por seu livro de memórias Só Garotos, lançado em 2010 e focado basicamente em sua vida em Nova York nos Anos 60 e 70 ao lado do fotógrafo Robert Mapplethorpe, com quem teve um longo romance.

Sempre num tom franco, irreverente, mas também doce e poético, Patti revela no livro como ela e Robert Mapplethorpe tentavam desesperadamente ser artistas a ponto de transformar seus impulsos destrutivos em trabalhos criativos. Aqui, ume trecho do livro particularmente revelador:

“Tem gente que nasce rebelde. Lendo a história de Zelda Fitzgerald, identifiquei-me com seu espírito insubordinado. Lembro de passear com minha mãe olhando vitrines e perguntar por que as pessoas não chutavam e quebravam aquilo.”

Depois do sucesso internacional de Só Garotos, Patti partiu para uma empreitada mais ousada e saiu seguindo os labirintos de sua memória e abrindo o baú de suas lembranças e amores literários.

Mas abriu com muito cuidado, pois não queria simplesmente dar sequência a Só Garotos, contando numa nova empreitada memorialista o que foi feito de sua vida depois de Robert Mapplethorpe.

Queria, na verdade, embarcar numa aventura onde o factual e o literário convergissem o tempo todo de forma inusitada.  


Daí nasceu Linha M, que acaba de chegar às livrarias brasileiras pela Cia. das Letras. Aqui, suas memórias afetivas literárias trilham o caminho de volta até seus escritores e artistas amados. Qualquer ideia surgida de um lampejo inconsciente vira motivo para uma exploração imaginária e real pelos lugares onde esses escritores viveram ou passaram. E todas essas suas viagens são provocadas por sonhos, intuições, leituras inspiradoras, qualquer coisa que sirva de estopim para desencadear sua 'sentimental journey".

Desnecessário dizer que ao embarcar nesse trem de suas recordações, todos os sonhos de Patti passam a ser possíveis. Ela visita o jardim da casa azul da artista Frida Kahlo no México, e dorme em sua cama. Visita o jardim de Schiller. Conversa com Goethe. Encontra com o espírito de Yukio Mishima e com Haruki Murakami. Curiosamente, nenhum desses encontros vem carregado de um tom nostálgico, pois eles se contrapoem a aventuras cotidianas pelos cafes novaiorquinos em que ela trafega ao longo do livro. 


Na costura que faz de suas memórias, Patti monta um panorama não-aleatório desde sua infância em Michigan até a morte do seu marido, Fred Sonic Smith, do grupo MC5, certamente o grande amor de sua vida, pai de seus filhos.

Para surpresa geral, Patti saiu da cena e parou de gravar discos e excursionar em 1978, optando por viver reclusa ao lado dele ele num subúrbio em Chicago por quase dez anos, até sua morte.

Diz ela no livro: “Meu desejo por ele permeava todas as coisas – meus poemas, minhas músicas, meu coração”


Linha M fala muito do passado, mas é essencialmente um livro sobre o presente.

A maneira peculiar com que Patti, aos quase 70 anos de idade, dá vida a seus fantasmas em suas narrativas acaba se transformando em literatura de primeira grandeza. Seu delicioso encontro com Laurie Anderson, viúva de seu amigo Lou Reed, acaba virando pretexto para uma divagação extremamente inusitada e bem humorada sobre a natureza da viuvez e a alegria que a solidão muitas vezes esconde.

Patti tem uma maneira muito delicada de nos conduzir para dentro de seu mundo imenso e para um tempo que não segue ponteiros de relógio. Diante de sua xícara de café em sua mesa preferida do seu café preferido, ela exprime sua realidade solitária de uma maneira clara e simples, como anotações que se faz em guardanapos.

De natureza reclusa e solitária, Patti Smith nos entrega um texto divertido, cheio de franqueza e vulnerabilidade, e cria com o leitor uma conexão que demora a se desfazer ao final da leitura.

Suas memórias, suas polaroides e suas paixões literárias e artísticas permanecem vagando no ar, como música.

Uma música que já conhecemos bem, e que não cansa de nos encantar.


UM TRECHO DE LINHA M

"Fecho meu caderno e fico sentada no café pensando sobre o tempo real. Será que o tempo é ininterrupto? Só abrange o presente? Será que nossos pensamentos são apenas trens passageiros, sem paradas, destituídos de dimensão, zunindo com grandes cartazes de imagens repetidas? Captando um fragmento de um assento na janela, com um idêntico fragmento no próximo quadro? Se eu escrever no presente, com digressões, ainda será em tempo real? O tempo real, raciocinei, não pode ser dividido em seções, como números no mostrador de um relógio. Se eu escrever sobre o passado enquanto lido simultaneamente com o presente, ainda estou em tempo real? Talvez não exista passado nem futuro, somente um perpétuo presente contendo essa trindade da memória. Olhei para a rua e notei a luz mudando. Talvez o sol tenha se escondido atrás de uma nuvem. Talvez o tempo tenha escapado."


LINHA M
(M Train)
Patti Smith
Companhia das Letras
Tradução: Claudio Carina
216 páginas
R$ 39,90 (livro)
R$ 27,90 (e-book)

 

Chico Marques devora livros
desde que se conhece por gente.
Estudou Literatura Inglesa
na Universidade de Brasília
e leu com muito prazer
uma quantidade considerável
de volumes da espetacular
Biblioteca da UnB.
Vive em Santos SP, onde,
entre outros afazeres,
edita a revista cultural
LEVA UM CASAQUINHO



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