Éramos
dois virgens. Dois profissionais que passavam por aquela experiência pela
primeira vez. Isso explicava porque andávamos de um lado para o outro em frente
à livraria. Tentávamos amenizar a expectativa e o atraso do visitante com
piadas, sorrisos, conversas com outros clientes e papos de boteco – mesmo sem
cerveja – sobre futebol.
Eu
era um jornalista com meia dúzia de anos de carreira. José Luiz Tahan era o
dono da livraria Iporanga e, portanto, o sujeito que havia me contratado. A
livraria ficava no Gonzaga, bairro nobre de Santos, no litoral de São Paulo.
José
Luiz também organizava um evento com escritores pela primeira vez e sonhava com
voos mais elevados no mercado editorial. De funcionário da Iporanga, passou a
sócio. Naquele momento, em 2000, ele já aspirava atrair escritores para um dia
transformar seu estabelecimento também em editora.
José
Luiz, amigo desde a adolescência por conta das peladas nas praias de Santos,
havia feito parceria com uma sala de cinema, também chamada Iporanga, que
ficava acima da livraria. Eram três salas, sobreviventes do antigo modelo de
cinema de bairro, extinto neste século por conta das salas modernas de
shopping.
A
proposta era convencional: o escritor seria entrevistado por mim durante uma
hora. Depois, perguntas do público. No último capítulo da noite, os autógrafos
do autor e a venda de alguns (ou muitos) exemplares.
A
ideia, para mim, era perfeita. Além de conhecer escritores, trabalharia no meu
cinema preferido. O Iporanga 3 era o menor dos irmãos, com feições de sala de
casa, e tinha lugar cativo na minha memória afetiva cinematográfica. Foi lá
que, aos 10 anos, vi um filme sozinho pela primeira vez. Assisti ao Superman 3,
num domingo pela manhã. Minha avó Norvina, que morava do outro lado da avenida
Ana Costa, onde ficava o cinema, acompanhou até a compra do ingresso pela
janela do 501.
O
meu pagamento para conversar com escritores era uma permuta coerente com a
ocasião. Eu ganhava livros, o que era excelente, pois me poupava o trabalho de
gastar a maior parte do dinheiro no mesmo lugar ou na concorrência. Além disso,
recebia de presente o livro do autor a ser entrevistado para que me preparasse.
Em tese.
O
escritor Ferréz. Foto: site do autor
A
chuva apertava e deixava a sexta-feira mais friorenta. O autor estava atrasado
meia hora. José Luiz falava do tráfego, tentava reduzir a ansiedade com
conversas entrecortadas com diversos clientes; muito deles estavam ali para
conhecer Ferréz, autor de Capão Pecado. O visitante era um escritor de primeira
viagem, festejado no mercado, representante da periferia de São Paulo, com
texto impregnado de crítica social de qualidade. Como ainda não era um ícone
literário, personalizava o convidado perfeito para começar o projeto.
Após
quase uma hora, José Luiz pediu que as pessoas se acomodassem na sala de
cinema. Pouco mais de 15 pessoas subiram o único lance de escadas e ocuparam
lugares próximos ao palco. Estava com jeito de pocket show literário.
Mais
meia hora e aparece um sujeito magro, na casa dos 35, 40 anos, de camisa e
calça social e barba feita. Não parecia com o Ferréz da foto da orelha do livro
ou das imagens divulgadas pela imprensa. Na verdade, era oposto. Ele se
aproximou de nós, logo na entrada da livraria. Estendeu a mão direita e se
identificou como editor. Peço desculpas por não me lembrar do nome dele. Talvez
seja o trauma literário.
O
rosto do José Luiz deu sinais de alívio. Na sequência, a pergunta óbvia:
—
Cadê o Ferréz?
—
Não vem.
—
Como não vêm?, perguntamos quase juntos, com olhos arregalados.
—
Não vem. Teve um problema em São Paulo.
Eu e
Zeca nos olhamos. Ele respirou fundo e fez outra pergunta, procurando alguma
coisa nas mãos do editor.
— E
os livros? Onde estão?
—
Não trouxe. Não conseguimos exemplares extras para trazer para cá.
—
Porra, e agora? O povo tá lá em cima!, disse Zeca, em tom que me pareceu mais
de resignação do que de fúria.
Todos
se olharam e não sei quem tomou a decisão. Provavelmente o José Luiz.
—
Vamos entrevistar o editor.
Subimos
os três, entramos na sala de cinema e José Luiz deu as explicações de praxe
para o público.
Não
sei se a noite fria e chuvosa provocou receio nas 15 testemunhas ou se todos
estavam encaixados nas cadeiras estofadas e confortáveis do Iporanga 3. Ninguém
arredou pé e a entrevista com o editor seguiu por uma hora. O assunto, claro,
foi o autor que não estava lá e o livro Capão Pecado, que também era uma
abstração naquela sexta-feira, em Santos.
Infelizmente,
não tenho como dar mais detalhes da conversa. Não a gravei. Não houve
reportagem sobre o encontro. Não tinha cabimento escrever sobre alguém que
falava sobre outra pessoa, diante daquelas circunstâncias particulares. Não me
lembro do que aconteceu depois, como o editor foi embora ou da despedida. Na
embriaguez saudosista, só consigo me recordar do antes.
O
projeto da extinta Iporanga durou mais uns dois anos. Pude entrevistar, por
exemplo, Fernando Moraes pela primeira vez, que lançava Corações Sujos. O
projeto cresceu e hoje é um festival literário, com cinco anos de vida.
José
Luiz fechou a livraria Iporanga, abriu outra, a Realejo, e virou editor. Os
cinemas foram fechados e o prédio, demolido, deu lugar a um shopping center de
mesmo nome voltado para as classes A e B, além de um flat e quatro salas de
cinema com filmes não tão comerciais.
Eu
continuo a entrevistar escritores, inclusive no festival literário que
mencionei, e tento me tornar um deles. O livro Capão Pecado, que ganhei duas
semanas depois da estreia, segue ali, na terceira prateleira de uma das minhas
estantes, entre José Roberto Torero e João Gilberto Noll.
Nunca
encontrei Ferréz. Até hoje, desconheço o porquê.
Obs.: Texto publicado na revista Super Pedido, n.51, edição novembro-dezembro/2014, p. 42-43. A revista é destinada aos donos e funcionários de livrarias.
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros),
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015,
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.
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