O mais novo filme do diretor Roberto Berliner, Nise: O Coração da Loucura, traça um panorama das atividades da psiquiatra Nise da Silveira depois de seu cumprimento de pena (em 1936, por 18 meses, por “possuir livros marxistas”) e um período de oito anos de afastamento da vida pública. O filme começa em 1944, quando ela é reintegrada ao serviço público e passa a trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro.
Como era (?) típico da sociedade de então, ser mulher, questionar e tentar fazer valer suas opiniões, não tornou nem um pouco fácil a tarefa dela no exercício de sua profissão. Pelo contrário. Numa época em que os pacientes “furiosos” (entenda-se esquizofrênicos) eram tratados com choques elétricos e/ou lobotomias, a discordância dos métodos podia banir o incauto para o limbo da STO – Seção de Terapêutica Ocupacional -, ou seja, lugar nenhum. E foi exatamente o que aconteceu com Nise.
Deslocada para um galpão praticamente abandonado, assessorada por dois enfermeiros no piloto automático – e que não nutriam nenhuma simpatia pelos pacientes (ou “clientes”, como Nise preferia chamá-los) -, Nise passa, muito paulatinamente, a observar padrões de comportamento nos internos, e instigá-los, da melhor maneira possível, a se expressarem pela arte, fosse ela qual fosse. E, é óbvio, que mudanças começam a acontecer, e verdadeiros talentos são revelados entre aqueles que haviam sido tirados de circulação pela sociedade, como uma maneira de esquecê-los.
O grande problema do filme talvez seja justamente o período de “observação” dos pacientes, na medida em que toda história de superação exige um engajamento do público com o objeto de estudo. Mas se a dinâmica do filme demora a desenvolver estas mudanças, surge o risco do interesse se esvair, ou a cumplicidade não ser tão absoluta quanto a desejada.
Somem-se a isso soluções fáceis adotadas para alguns personagens – como o enfermeiro que muda de atitude radical e rapidamente demais -, certa displicência na caracterização do período histórico, e a interpretação apenas correta da protagonista, Glória Pires – lembrando demais sua caracterização como Lota de Macedo Soares, em Flores Raras (2013) –, e o resultado é um filme que poderia ter sido muito mais empolgante e influente do que é. A favor de Glória, fica a cena do grito de revolta/impotência disparado pela personagem. Mas é pouco, face todo o filme.
De qualquer forma, Nise: O Coração da Loucura é um filme brasileiro corretamente produzido, ao qual falta certa audácia. Talvez uma maior observação no objeto retratado – Nise (que aparece em imagens reais, no final do filme) – e o resultado pudesse ser mais empolgante. Experimente.
para OBSERVATÓRIO DO CINEMA
Uma tendência na cinematografia brasileira que aos poucos cresce é a das cinebiografias. Filmes como Tim Maia, de 2014, e Gonzaga: De Pai para Filho, de 2013, são exemplos dessa vertente do cinema nacional. O mais novo exemplo é Nise: O Coração da Loucura. O longa conta a história da psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999) que revolucionou o tratamento de pessoas com problemas mentais, principalmente, os com esquizofrenia.
Uma tendência na cinematografia brasileira que aos poucos cresce é a das cinebiografias. Filmes como Tim Maia, de 2014, e Gonzaga: De Pai para Filho, de 2013, são exemplos dessa vertente do cinema nacional. O mais novo exemplo é Nise: O Coração da Loucura. O longa conta a história da psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999) que revolucionou o tratamento de pessoas com problemas mentais, principalmente, os com esquizofrenia.
A história do longa inicia-se em 1944, quando a Doutora Nise (Gloria Pires) retorna ao trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Dom Pedro II, em Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Ela tinha sido presa durante o Estado Novo – a ditadura de Getúlio Vargas – ao ser denunciada por uma enfermeira por ter livros marxistas. Como Nise não aceitou os “métodos” utilizados para o “tratamento” dos pacientes utilizados pelos seus colegas de instituição, o diretor do Centro, Dr. João (Zécarlos Machado), designou-a para o Setor de Terapia Ocupacional.
Ao assumi-lo, a Doutora Nise, literalmente, arregaça as mangas e ajeita o espaço designado para o STO, com ajuda de apenas de dois enfermeiros: Ivone (Roberta Rodrigues) e Lima (Augusto Madeira). Este, contrariado com as novidades trazidas pela doutora.
Com o espaço arrumado, a psiquiatra começa a convidar os pacientes do Centro a entrarem. Desta forma, Fernando (Fabricio Boliveira). Raphael (Bernardo Marinho), Adelina (Simone Mazzer), Lucio (Roney Villela) e mais alguns começam a ser tratados de uma maneira muito diferente da que vinham sendo até então. Aos poucos, algumas pessoas percebem o que Doutora Nise estava tentando fazer e começam a ajuda-la, como o médico Almir (Felipe Rocha). Ele é aficionado por artes plásticas e propõe a doutora que os pacientes poderiam pintar. Após começar esse trabalho com eles, Almir acaba convidando para trabalhar no setor a estudante de artes plásticas, Marta (Georgiana Góes).
O diretor, Roberto Berliner, de documentários como A Pessoa É Para o Que Nasce (2003) e Herbert de Perto (2009), escreveu o roteiro de Nise: O Coração da Loucura. Mas ele dividiu o trabalho com outras seis pessoas. Mauricio Lissovski trabalhou anteriormente com Berliner em A Pessoa É Para o Que Nasce. Maria Camargo tem experiência em roteiros para televisão. Ela escrevia para a novela Lado a Lado (2012) que ganhou o prêmio de melhor série televisiva no International Emmy Award 2013. Leonardo Rocha e Chris Alcazar são os novatos dessa turma na arte da escrita para o cinema.
Esses sete roteiristas conseguiram transformar o inicio da carreira de Nise da Silveira em uma história inspiradora. Eles transpuseram para a tela grande a atenção, a sensibilidade e o respeito ao ser humano que Nise demonstrava ao clinicar. Poderia ter ficado bem confusa dada à quantidade de escritores e à quantidade de histórias dentro da história que poderiam ser mostradas como exemplos do trabalho fantástico realizado pela doutora. Porém, sem didatismo e sem ser piegas, Berliner e sua turma conseguiram produzir um roteiro coerente e que revela vários aspectos do trabalho da médica. Por exemplo, a linha de trabalho dela que era baseada no psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875–1961), com o qual Nise trocou correspondências sobre o trabalho que ela realizava no Rio de Janeiro.
Roberto Berliner, como diretor, sabe manejar as ferramentas que possui na mão, mas, principalmente, na caixola. Percebe-se que os atores estão à vontade, apesar do dificílimo trabalho em representar pessoas com problemas mentais. Um ótimo trabalho de atores foi realizado para que cada um represente um tipo de paciente com problema diferente. Muitas cenas são poesia pura. O quadro que Berliner pinta com a câmera é tão belo quanto os quadros pintados pelos pacientes da doutora Nise.
Voltando a falar dos atores, não tem como não destacar Gloria Pires. Seja fazendo uma comédia, seja fazendo um drama – que pouco fez no cinema – a atriz carioca se destaca pelo cuidado com que aparece em cena. Glória sabe passar o sentimento que sua personagem vive naquele determinado momento: cenas nas quais Nise se mostra frágil com o que tem que enfrentar no trabalho por causa dos colegas, cenas nas quais a personagem precisa ser o esteio do outros para que tudo não se perca e tantos outros momentos do filme deixam claro a versatilidade do trabalho dela.
Os atores que interpretam os pacientes – ou como gostava de chamar a Doutora Nise, clientes – estão todos de parabéns. Sem fazer média, todos eles conseguiram mergulhar fundo na questão do problema mental. Merecem destaque nesse grupo de talentosíssimos atores, Fabricio Boliveira, Simone Mazer, Emydio Jaborandy e Bernardo Marinho. Os quatro mostram diferentes tipos de pacientes e os caminhos percorridos por esses ao longo das atividades realizadas no Setor de Terapia Ocupacional. As transformações pelas quais suas personagens passam ficam claríssimas, sem serem caricatas ou inverossímil.
Outro destaque vai para o ator Augusto Madeira. Apesar de ser mais conhecido por seus papéis cômicos feitos na televisão, Augusto também sabe, como todo bom ator, interpretar um papel dramático. Sua personagem é outra que acaba se transformando por causa da doutora Nise.
Transformações essas muito bem mostradas pela fotografia de Andre Horta. Responsável pela linda tela na qual Berliner pinta a história de Nise, Horta faz uma fotografia com planos simples e uma luz que se altera, assim como os pacientes de Nise. Com pouco, ele sabe bem que imagem mostrar para contar bem a história.
Imagens que foram muito sequenciadas pelos editores Pedro Bronz e Leonardo Domingues. Ambos já tinham trabalhado com Berliner. Respectivamente, Herbert de Perto e A Pessoa É Para O Que Nasce. Eles encadearam as cenas corretamente, dando à produção o ritmo certo. A história precisava ser absorvida com delicadeza pelos espectadores. Foi isso que eles conseguiram fazer. Dando o tempo necessário para que os acontecimentos possam ser compreendidos e guardados por aqueles que assistem ao Nise: O Coração da Loucura.
As pinceladas finais nesse quadro que conta a história da psiquiatra Nise da Silveira são dadas pelo músico Jaques Morelenbaum. Morelembaum compôs uma trilha que consegue acompanhar perfeitamente a história. Sem cair no sentimentalismo barato ou ficar grandiloquente, as músicas sensibilizam o público e assim prendem atenção dele nas diferentes histórias dos clientes que estão descobrindo uma forma de se expressar e tentar achar uma maneira de viver, apesar do seu problema.
Expressar personalidades brasileiras que nos emocionaram ou que tenham feito trabalhos que pouquíssimas pessoas conheçam, mas que foram fundamentais para a nossa história e para a história da humanidade: esse pode ser um lindo caminho que o nosso cinema pode percorrer e para o qual nós temos pessoas com sensibilidade e determinação para isso, como o diretor Roberto Berliner, Fabrício Boliveira e Gloria Pires.
NISE: O CORAÇÃO DA LOUCURA
(2015, 106 minutos)
Direção
Roberto Berliner
Elenco
Glória Pires
Fernando Eiras
Julio Adrião
Flavio Bauraqui
Fabrício Boliveira
Luciana Fregolente
Georgiana Góes
Claudio Jaborandy
Zécarlos Machado
Augusto Madeira
Bernardo Marinho
Simone Mazzer
Felipe Rocha
Roberta Rodrigues
Roney Villela
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