Tuesday, May 3, 2016

SALMAN RUSHDIE SE REINVENTA MAIS UMA VEZ NUM ROMANCE ABSOLUTAMENTE FASCINANTE

por Chico Marques


Poucos escritores são capazes de se reinventar de uma maneira tão contundente e estranhamente leve quanto o indiano Salman Rushdie.

Chega a ser surpreendente que um autor perseguido pelos radicais islâmicos por sua obsessão em resgatar para o universo oriental predominantemente muçulmano dos dias de hoje o mesmo erotismo que pulsa forte nas obras clássicas renegadas por essa gente consiga manter um frescor tão intenso em sua produção literária depois de 11 romances, onde o antigo e o novo convivem e se complementam de forma magnífica.

É sempre bom lembrar que, apesar de ter nascido em Bombaim, na India, Rushdie estudou na prestigiada King's College da Universidade Cambridge, onde se formou com louvor. Sua visão de mundo promove uma ponte muito curiosa entre Oriente e Ocidente que, se por um lado bate de frente com os interesses políticos muçulmanos, por outro segue fascinando os leitores ocidentais fascinados com o Oriente. É uma alívio constatar que toda aquela perseguição implacável promovida pelo nada saudoso Ayatollah Khomeini -- que o sentenciou de morte após o sucesso internacional de Os Versos Satânicos -- de nada adiantou, pois Rushdie não só sobreviveu como segue explorando de várias formas diferentes suas obsessões literárias. Pior: com sucesso de público.


Nesse seu novo livro, Dois Anos, Oito Meses e Oito Noites, recém lançado aqui pela Companhia das Letras, Rushdie foge um pouco dos experimentos de seu último trabalho, o romance autobiográfico Joseph Anton - Memórias, onde entrelaçou autor e personagem de uma maneira muito complexa, atropelando muitos dos preceitos literários que havia praticado até então. Parece um romance menos ambicioso em termos estilísticos. E é. Mas é, ao mesmo tempo, uma aventura literária que ronda uma temática complexa e controvertida. Nas palavras do autor, a intenção nesse novo romance é antes de mais nada "estabelecer o futuro como cenário e a antiguidade como motivo."

A idéia por trás de Dois Anos, Oito Meses e Oito Noites não é nada simples: num futuro próximo, depois de Nova York ter sido assolada por uma tempestade, acontecimentos estranhos tomam conta do cotidiano dos habitantes da cidade. Um jardineiro descobre que os seus pés já não tocam no chão. Um bebê descobre ter o dom de identificar a corrupção com a sua mera presença. E por aí vai. Essas centenas de sobreviventes não sabem, mas são descendentes de seres fantásticos conhecidos como Jinn, que vieram de um mundo separado do nosso por uma espécie de véu. São descendentes de Dunia, uma princesa Jinn, que há séculos se apaixonou por um filósofo humano chamado Ibn Rushd, alter-ego do autor, identificável já pelo próprio nome. Juntos tiveram um número espantoso de filhos, que se espalharam ao longo de gerações pelo mundo humano, sem ter consciência dos poderes fantásticos que possuem. Quando a linha entre os mundos se quebrou, os filhos de Dunia embarcam numa guerra épica entre a luz e as trevas ao longo de mil e uma noites — ou seja, os dois anos, oito meses e vinte e oito noites do título do livro. É uma época de enorme perturbação, em que as crenças são postas em questão, as palavras funcionam como veneno, o silêncio é uma doença e um ruído pode conter maldições milenares.

 Apesar de Dois Anos, Oito Meses e Oito Noites ser um dos romances mais breves já escritos por Rushdie, foi o que levou mais tempo para ser concluído. Rushdie comentou em entrevistas que o reescreveu várias vezes, pois queria que sua narrativa fluísse de forma perene, quase clássica, sem os experimentalismos de seus projetos anteriores, num tom semelhante ao das Mil e Uma Noites. Apesar de ter menos erotismo do que seus romances habituais, não se trata de uma concessão aos seus detratores islâmicos, até porque as situações eróticas do livro são predominantemente femininas, numa espécie de ode à mulher, o que talvez irrite esses "muçulmanos diehard" ainda mais do que já irrita habitualmente.

Parte da ação do livro acontece no século XII, e a outra parte num futuro próximo aos dias de hoje, num contexto pós-apocalíptico onde não há muito espaço para o erotismo. Não é à toa que os capítulos ambientados no passado são mais cativantes que os capítulos situados no futuro. Mas, apesar disso, não é uma narrativa permeada pelo pessimismo. Até porque Salman Rushdie não é Michel Houellebecq. Apesar do cenário assustador, há espaço para a esperança num futuro melhor, felizmente.

O protagonista masculino -- o filósofo Ibn Rushd -- é um especialista em Aristóteles, além de ser um profundo conhecedor de Astronomia e Direito Canónico Muçulmano. O problema é que Rushd sempre considerou a existência do mundo desvinculada da figura de Deus e, consequentemente, nunca acreditou em providência divina e sempre aceitou diferenças de opinião sobre os textos sagrados. No entanto, devido a suas opiniões polêmicas, perde seu cargo na Corte em Córdova por dois anos, oito meses e vinte oito dias. É em meio a essa situação incerta que é seduzido pela Princesa Dunia e as histórias narradas por ele realmente se iniciam.

Mais uma vez, Salman Rushdie trafega pelos conflitos ancestrais que permanecem no mundo contemporâneo. Sempre com uma visão generosa, plural e encantada do Oriente que só um oriental com alma ocidental seria capaz de desenvolver, combinando História, Mitologia e uma Narrativa de Amor Intemporal num romance com jeitão atemporal, meio clássicas, mas intrinsecamente moderno.

Dois Anos, Oito Meses e Oito Noites é uma empreitada literária brilhante, que se lê com imenso prazer. Desde O Chão Em Que Ela Pisa, um romance de Salman Rushdie não arrebata seus leitores de forma tão intensa. É, desde já, uma dos grandes acontecimentos literários deste ano.




UM TRECHO DE DOIS ANOS,
OITO MESES E VINTE E OITO NOITES 

Pouquíssimo se sabe, embora muito se tenha escrito, sobre a verdadeira natureza dos djins, criaturas feitas de fogo sem fumaça. Discute-se acaloradamente se são bons ou maus, diabólicos ou benignos. Quanto a seus atributos, há um consenso geral: são caprichosos, inconstantes, maldosos, capazes de se mover em alta velocidade, alterar suas dimensões e sua forma e conceder muitos desejos de homens e mulheres mortais, se assim desejarem ou se a tanto forem obrigados mediante coerção; e sabe- -se também que têm uma percepção de tempo absolutamente diversa daquela dos seres humanos. Não devem ser confundidos com os anjos, embora algumas histórias antigas declarem de maneira incorreta que o Diabo em pessoa, o anjo decaído Lúcifer, o filho da manhã, foi o maior dos djins. Durante muito tempo, tampouco houve acordo em relação a suas moradas. Histórias antigas caluniosas afirmavam que os djins viviam entre nós aqui na terra, o chamado “mundo inferior”, em construções caindo aos pedaços e em muitos locais insalubres — lixões, cemitérios, fossas sépticas, esgotos e, sempre que possível, esterqueiras. De 14 acordo com essas versões maledicentes, faríamos bem nos banhando de cima a baixo depois de qualquer contato com um djim. São malcheirosos e transmitem doenças. No entanto, os mais eminentes comentaristas vêm sustentando há muito tempo o que hoje sabemos ser verdade: que os djins habitam seu pró- prio mundo, separado do nosso por um véu, e que esse mundo superior, às vezes chamado Peristão ou Mundo Encantado, é muito extenso, ainda que sua natureza nos seja oculta.

Dizer que os djins não são humanos pode parecer uma obviedade, mas o homem tem ao menos alguns atributos em comum com seus congêneres fantásticos. No que diz respeito à religião, por exemplo, entre os djins há seguidores de todos os credos existentes na terra, e existem djins descrentes, para os quais a ideia de deuses ou anjos é tão estranha quanto os pró- prios djins são estranhos aos homens. E conquanto muitos djins sejam amorais, pelo menos alguns desses seres portentosos conhecem a diferença entre o bem e o mal, entre a senda direita e a esquerda.

Alguns djins podem voar, enquanto outros rastejam pelo chão como cobras ou correm de um lado para outro, ladrando e arreganhando as presas como canzarrões. No mar, e às vezes também no céu, assumem o aspecto externo de dragões. Alguns djins mais subalternos são incapazes, quando em terra firme, de manter sua forma por longos períodos. Essas criaturas amorfas às vezes se introduzem no corpo de seres humanos, através do nariz, das orelhas ou dos olhos, ocupando-lhes os corpos por algum tempo e descartando-os ao se cansarem deles. Lamentavelmente, as pessoas ocupadas por djins não sobrevivem.

As djínias ou djiniri, djins do sexo feminino, são ainda mais misteriosas, ainda mais sutis e difíceis de entender, pois são mulheres-sombras feitas de fumaça sem fogo. Existem djiniri selvagens e djiniri do amor, porém também pode ser que essas duas 15 espécies distintas de djiniri na realidade sejam a mesma — que um espírito selvagem possa ser apaziguado pelo amor ou que uma criatura amorosa seja levada por abusos a uma selvageria que ultrapassa a compreensão dos mortais.

Esta é a história de uma djínia, uma ilustre princesa dos djins, dita Princesa dos Relâmpagos em virtude de seu domínio sobre os raios, que amou um mortal há muito tempo, no século xii, segundo nosso calendário, e de seus muitos descendentes; e como de seu retorno ao mundo, depois de uma longa ausência, quando se apaixonou de novo, ao menos por um momento, para logo ir à guerra. É também a história de muitos outros djins, masculinos e femininos, voadores e rastejantes, bondosos, ruins e desinteressados pela moral; e do tempo de crise, o tempo fora dos eixos, que chamamos de época das estranhezas, que durou dois anos, oito meses e vinte e oito noites — ou seja, mil noites e mais uma. E é verdade, vivemos outros mil anos desde aqueles dias, mas aquela época nos transformou para sempre. Mas, se mudamos para melhor ou para pior, cabe a nosso futuro decidir.



DOIS ANOS, OITO MESES E VINTE E OITO DIAS
um romance de Salman Rushdie
um lançamento Companhia das Letras

Título original
TWO YEARS EIGHT MONTHS AND TWENTY-EIGHT NIGHTS

Tradução
Donaldson M Garschagen

Capa
Victor Burton

336 Páginas
Brochura

Preço
R$54,90 (livro)
R$37,90 (ebook)


Chico Marques devora livros
desde que se conhece por gente.
Estudou Literatura Inglesa
na Universidade de Brasília
e leu com muito prazer
uma quantidade considerável
de volumes da espetacular
Biblioteca da UnB.
Vive em Santos SP, onde,
entre outros afazeres,
edita a revista cultural
LEVA UM CASAQUINHO

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