Maravilhoso. O nome é feliz. E a razão é simples: de todos
os salões de sinuca que já fizeram a alegria dos aficionados pelo pano verde na cidade de São Paulo, o Maravilhoso foi o melhor.
Sem exagero. Era um templo para todos aqueles que jogavam sinuca nos anos 60 e 70. Para aquela confraria, composta por anônimos do cotidiano, onde se destacavam malandros de jogo, leões-de-venda, desocupados, estudantes, aposentados, bicheiros e outros tipos, o Maravilhoso era solo sagrado. A começar pela sua localização, junto a um dos pontos míticos da cidade: a esquina das avenidas Ipiranga
e São João.
Ali ficava ele, do lado esquerdo de quem subia a primeira avenida em direção à segunda, no número 878, pouco depois do terminal do Expresso Luxo e pouco antes do Bar
e Restaurante Avenida.
Na entrada, rente à calçada, uma comissão de frente recebia os freqüentadores. Eram duas fileiras longas de pesadas cadeiras de engraxates, uma de frente para a outra.
Na batucada da vida, essas figuras humanas exibiam seu jogo de cintura como alegorias de mão. Sentados aos pés dos fregueses, naquela posição forçada de ter que encarar
o mundo de baixo para cima, esses apóstolos da malandragem não passavam despercebidos. E seus nomes, até hoje, permanecem firmes na memória de quem atendeu ao bordão:
“Vai graxa, doutor?”
Chamavam-se Carioca, Mané Rufino, Pelé, Pelé Cara-Torta, Alexandre, Bolinha, Jacaré e outros que a nossa memória afetiva insiste em ocultar. Deram lustro, sorrindo,
nos pisantes de mais de uma geração de bravos e românticos habitués daquela “prainha” dos músicos, quando iam à sinuca.
De César “Maluco”, atacante do Palmeiras, a Azeitona
e Chu Viana, antológicos músicos da noite. De Mingo, Akira, Ramón, Cobra, Zezé, Carlinhos Metralha, Hiroshi, Álvaro, Nagib e Dirceu, ao palhaço Carlito e seus colegas de circo, os anões Goiabinha e Sansão. De Paulinho da Viola ao jornalista Arley Pereira, além de outros tipos humanos que só a noite é capaz de prover, todo mundo, pelo menos uma vez, botou os pés no Maravilhoso.
O suficiente para constatar que seus engraxates eram um espetáculo à parte. Uma tropa de elite que, com seus batuques, cacoetes e mumunhas, meio que já preparava o espírito de quem chegava para o que iria encontrar do lado de dentro das portas de saloon.
Lá, logo após a barbearia, onde Castro, Zé Bandido
e Vanilda faziam barba, cabelo e bigode dos fregueses, e da Loteria Esportiva, ficava o salão de sinuca: Maravilhoso.
Com vinte e tantas mesas, tacos e jogos de bolas impecáveis, o Maravilha (no jargão da corriola) não perdoava. Quem jogasse mal naquele salão não tinha desculpas. Afinal, ali tudo conspirava para que cada um apresentasse o seu melhor jogo. Quem tremesse era fraco. Um “pangaré”. Ponto.
Comandado, desde o balcão, por Seu Osório e seu filho Oswaldinho, os donos, com Rivelino e Preá sempre a postos na copa, e Bigode atendendo no salão, o Maravilhoso foi palco de encontros memoráveis do pano verde. Combates em que
a galera chegava a se beliscar para ter certeza de que aquilo não era sonho.
Carne-Frita, Praça, Joaquinzinho, Gaguinho, Fantoche, Jesus, Boca Murcha, Mané Português, Calói, Robertão, Garoto, Adílson Carioca, Detefon, Poeta, Caipira, Gabiais, Ceará, Rui Mogi (que mais tarde ficaria famoso como Rui Chapéu), Leão, Tigrão, Jesus Cristo e outros bichos eram as feras da casa.
Um bando de fazer qualquer zoológico, hospício ou delegacia morrer de inveja. E de deixar qualquer trabalhador incauto sem um tostão furado no bolso. Porque no Maravilhoso o jogo era jogado a dinheiro. E este corria mais rápido do que uma bola sete no fundo.
Muito chefe de família, descuidado, fez essa descoberta tarde demais, ao deixar o salário do mês nas mãos vorazes
de uma piranha da casa. Não tinha perdão. Quem desse moleza para o azar estava frito. Frito e servido em forma de aperitivo, para deleite da corriola. A lei do pedaço era implacável: quem puder mais, chora menos. Só.
Entretanto, esta verdadeira selva era regida por uma ética antiga, por incrível que pareça. A estia era uma boa prova disso. Pela “lei da estia”, ficava acordado que quem perdesse
o jogo receberia de volta 10% do valor do prejuízo. Tão certo como a manhã do dia seguinte. Ists era...Maravilhoso!
Outro exemplo da moral da casa era o hábito de “patroar”
o jogo. Taco forte naquele chão não precisava de dinheiro para jogar. Sempre haveria quem bancasse as suas partidas.
Mas por uma certa quantia, que ninguém ali estava com a vida ganha. Pelo contrário.
O movimento era grande, e ainda maior às sextas
e sábados. Aí a coisa pegava e uma mesa disponível era artigo de luxo. Coisa rara. Um elefante branco. Era nesses dias que
o velho salão fazia jus ao seu nome: Maravilhoso.
Passe as portas de vai-e-vem e pise firme no surrado Paviflex. Respire fundo e sinta o olor da fumaça de dezenas de cigarros sendo fumados ao mesmo tempo. Tabacaria perde longe. Aproveite. Tirando cheiro de mulher, isto é o mais próximo que um mortal pode chegar de um perfume divino. Maravilhoso.
Agora veja o salão de mesas verdes. Trata-se de uma floresta de madeira e feltro sob uma cortina de fumaça azulada. Ouça o som das bolas batendo umas nas outras.
E o burburinho de vozes se misturando às risadas, aos desafios, às bravatas ditas quase gritando, às sonoras cuspidas no chão.
O baratino está no ar. Acredite. E a picardia. E a encabulação. E o desacato. E a malandragem em seu estado de arte. Aqui, todo cuidado é pouco.
Juízo, companheiro!
Encoste no balcão e peça um cafezinho sem açúcar, que pra doce já basta a vida. Acenda um cigarro e relaxe. Isso, assim. Maravilhoso.
Você reparou quem está jogando na mesa um? Não? Pois saiba que aquele mulato desdentado, de preto da cabeça às Sandálias Franciscanas, não é outro senão o famoso Praça, atual campeão brasileiro.
É o Praxedes em carne e osso. Aliás, bem mais osso do que carne, pois, como se diz por aqui, sinuca não dá camisa
a ninguém. Sacou o recado?
Opa! Ele olhou pra cá. Ande logo. Faça um sinal de cabeça. Não tenha medo. Malandro de jogo adora ser reconhecido. Isso, assim. Maravilhoso.
Que bola 7 ele matou, hein, meu amigo? Você viu
o efeito? E a paradinha da batedeira? A branca ficou de palmo. Parece até mágica. É, companheiro, hoje não tem pra ninguém. O Praça está tinindo, jogando o fino, se sentindo bem até demais. Onde a bola pára, está boa. É o Cão chupando manga!
Mas seu parceiro ainda não se deu conta disso. Erro fatal. E, pior, prejuízo na certa.
Bem, a hora da visita acabou. Chega. Vamos saindo,
à francesa. Mas não se preocupe, porque o velho Centrão de São Paulo não vai nos escapar tão facilmente. Nada disso.
Aproveitando esta viagem, mais do que fantástica, atravessaremos a Av. São João para reverenciar a gula.
Com muita calma, vamos comer uns salsichões com
a mais saborosa maionese do mundo, no balcão do legendário Salada Paulista, “onde os bravos comem de pé”, nas palavras
do poeta e boêmio paulistano Tom Figueiredo.
Que tal? O chope escuro também está ótimo, não é? Aliás, ótimo não, maravilhoso!
Carlão Bittencourt – 24.05.2016
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