Levantei-me às 6 horas, andei pela casa, mas já deixara de existir. Como um fantasma, abri a porta do quarto, minha fiel cachorra lá não estava. Abri a porta do quarto do meu filho, ela não se apresentou na habitual felicidade manifestada sempre quando alguém lhe abria uma porta. Fui à biblioteca, nada, à sala, nada. Intrigado, voltei ao quarto do meu filho e então a vi, deitada sob a bancada do computador. Chamei por ela, não se moveu, então a toquei, estava morta.
Somente aí comecei a constatar duramente que não ela, mas eu deixara de existir. Quando me via, sorria ao seu modo atabalhoado entre balançar o rabo e todo o corpo enquanto fixava os olhos brilhantes em mim e, por isso, lá dentro daquela consciência incógnita eu existia. Andei pela casa e comecei a constatar todos os gestos que fazia e se relacionavam com ela. Os gestos se repetiam, mas, com sua ausência, eu era o fantasma que gesticulava pela casa, por todos os meandros em que ela circulava.
Passei pelo corredor da lavanderia, automaticamente, evitando urina ou fezes que já não haviam mais. Como fantasma, em dado momento me dei conta que era hora de sair para uma caminhada pela quadra levando-a para passear. Mas como, se ela já não estava mais ali para me exigir isso?
Não estava também para ficar à minha volta, em todo lugar que fosse pela casa. Ou deitada perto dos meus pés, soltando gases para me avisar que passara da hora de passear, pois era na rua que gostava de fazer suas necessidades, por mais que eu achasse a coisa mais ridícula do mundo olhar um cachorro cagando e, pior, esperar e catar. E assim foi, será que pus a ração? A água? Troquei os jornais do chão? Assim, assim, numa repetição de gestos que, se ela não existia mais, transformavam-me no fantasma que eu era.
Como um bicho, segurando uma perna de frango com as mãos e a roendo, cadê ela que não está olhando para exigir sua parte? E agora, vou continuar andando pelas calçadas em dadas horas para um refresco mental, como antes, mas agora como um fantasma que só falta puxar uma correia e coleira vazias? Como espécie de última paga pelos serviços prestados a ela, ganhei um i-pad num sorteio de compra de ração, este que agora uso para reler a crônica, olho para a tela, por trás estará ela? Concorro a uma motocicleta por outra compra de ração, serei, como naquele filme, um Nicholas Cage, um Nicolau Gaiola, preso nessa ausência, o motoqueiro fantasma?
Para ela não existia família, existia matilha. Eu parecia estar na pedra mais alta naquela selva que se avizinhava por traz dos pelos, pois meu filho estava abaixo dela nessa escala. Por isso não aceitava nunca que ele a levasse para passear, se escondia, certamente porque ele é que tinha que ser levado na coleira e não ela, nessa escala animal que, por ser mais velha que ele, o considerava um eterno filhote. No meio, abaixo de mim, acima dela, minha mulher, que fazia os passeios mais generosos e demorados, que ela exigia que fosse com todos. Se um ficava em casa, ela ia lá buscar, chamava, latindo.
Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.
Suas crônicas, que saem semanalmente
no Diário do Norte do Paraná, de Maringá,
passam a ser publicadas todas as quintas
aqui em Leva Um Casaquinho
No comments:
Post a Comment