Thursday, June 28, 2018

JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 15ª de 17 partes)



CAPÍTULO XXVI


Na verdade

Perder contato é fácil

Astronautas sabem disso

Também os controladores nas torres

Devia haver um avião bem aqui

Mas ele não está aqui, nem ali

Ou em lugar algum

Na verdade

Perder contato é fácil

Antes nos víamos quase todos os dias

Agora trocamos e-mails de vez em quando

Escrever cartas nem pensar

Seria muito íntimo

E, afinal, somos adultos

Na verdade

Perder contato é fácil

Antes havia algum sentido

Acordar de manhã

Escovar os dentes e dar um beijo em você

Levar o lixo lá fora

Sair de casa

Voltar

Deitar ao seu lado

Dormir e acordar

Na verdade

Perder contato é fácil

Basta a gente se distrair


Não sabia por que, mas tinha resolvido começar a ler A Porta dos Fundos do Paraíso pelas páginas com poesias, localizadas mais ou menos lá pela metade do livro.  Nunca gostara de poesia, na verdade achava poesia um tremendo pé no saco. Além disso, nunca soubera que João fazia poesia. Aliás, eles dois faziam questão de declarar, pra quem quisesse ouvir – e principalmente quando havia por perto alguém metido a poeta – que odiavam poesia, que poesia era coisa de babaca, escroto e assim por diante.

No entanto, aquelas poesias, jogadas lá no meio do livro, estavam, por estranho que parecesse, lhe dizendo alguma coisa, em especial aquela, que falava da perda de contato. Ele compreendia exatamente o que aquelas palavras queriam dizer, porque ele se sentia exatamente assim, olhando para os navios ancorados na barra, aguardando a hora de entrar no canal para atracar no porto, um pouco mais além.

Talvez comentasse sobre isso no próximo e-mail que mandaria para o João.


No momento, porém, a prioridade era arranjar um lugar para passar a noite.

 

CAPÍTULO XXVII


“Nós só queremos que Deus nos mostre a sua face”.

Foi o que ele disse, lá sentado naquele sofá

Em frente às câmeras de TV

Ele não teria dito nada

Mas então o sujeito lhe perguntou:

“O que vocês pretendem?”

Então ele disse:

“Nós só queremos que Deus nos mostre a sua face”.

E o apresentador ficou calado

E os homens atrás das câmeras ficaram calados

E todas aquelas pessoas sentadas na plateia também ficaram caladas

Então ele se levantou, disse boa noite e foi embora


Outra boa poesia, sem dúvida, mas o que ele queria mesmo era que o shopping abrisse logo. Precisava, urgentemente, usar o banheiro. Estava há três dias vivendo nas ruas e seu dinheiro o obrigava a fazer, todas as noites, uma escolha crucial: ou pagava por um lugar para dormir ou comia no dia seguinte. Como comer sempre lhe pareceu mais importante, ele descobriu que dormir nos bancos dos jardins da praia não era tão ruim assim, ainda mais durante a primavera, que naquela cidade era quase tão quente quanto o verão.  Mas sua principal preocupação naquele momento não tinha nada a ver com comida ou cama, mas com o fato de que, logo, também não teria mais dinheiro para usar os computadores das lan-houses.  Sendo assim, teria que interromper a narração da sua história até que as coisas melhorassem. A ironia daquilo tudo é que havia gasto um dinheiro precioso, na situação em que se encontrava, comprando a porra do livro de João. Era incrível como João ainda continuava complicando a sua vida, mesmo distante e sem que tivessem qualquer contato há anos.

É claro que ele poderia muito bem procurar Marisa e lhe pedir algum dinheiro emprestado. Contudo, não lhe parecia uma boa ideia pedir ajuda à irmã, depois de ter destruído o carro de seu cunhado, alguns anos antes, quando capotou na avenida da praia, sem qualquer motivo, a não ser estar completamente bêbado e chapado. João estava com ele e o mais impressionante foi que, ainda dentro do carro, virado de cabeça para baixo, ficaram olhando um para a cara do outro, até começarem a sentir um forte cheiro de gasolina e perceberem que o tanque estava vazando e que aquela porra podia explodir a qualquer momento. O carro não explodiu e eles sofreram apenas alguns arranhões, mas seu cunhado nunca mais falou com ele, nem com João.

Outra razão para não procurar nem a irmã, nem mais ninguém naquela cidade era que queria permanecer anônimo o máximo de tempo possível. Sempre sonhara em fazer isso um dia e agora ali estava a oportunidade. Tivera uma intuição de que, se ninguém soubesse que ele estava na cidade, poderia contar melhor a história que queria contar.

No entanto, embora não gostasse da ideia, a única alternativa, naquela situação, era procurar Júlio e tentar vender as coisas que deixara guardadas com ele, antes de ser obrigado a dar o fora. Mas isso envolvia dois problemas: primeiro, encontrar Júlio depois daqueles anos todos; segundo, será que Júlio ainda estava com as coisas que ele havia lhe pedido para guardar?

Era bem improvável que Júlio ainda morasse no mesmo lugar, um minúsculo e velho apartamento, no último andar de um prédio caindo aos pedaços, localizado numa avenida que levava ao atracadouro das balsas que faziam a travessia para a cidade que ficava na ilha vizinha.

Localizar o prédio não foi difícil. Embora a fachada da construção tivesse passado por uma reforma total, o que lhe dava uma aparência bem diferente da imagem de decadência que o edifício apresentava antes, o prédio se destacava ao contrário, por ser o mais baixo naquele trecho da avenida, dominado por novas e altas edificações.

Então era subir até o último andar e checar se ainda havia notícias de Júlio por ali. Agora existia uma guarita junto ao portão, mas nenhum guarda dentro dela. Jeremias apertou várias vezes o que parecia ser uma campainha, mas ninguém apareceu. Já estava quase desistindo, quando uma velhinha, atrás dele, com uma chave em riste, pediu licença para abrir o portão que Jeremias estava inadvertidamente bloqueando. Ele se afastou, a velhinha abriu o portão e já ia fechando de novo, quando Jeremias arriscou perguntar: “O Júlio ainda mora nesse prédio?”. “Quem, aquele vagabundo?”, devolveu a velhinha. “Bom, é o sujeito que morava no último andar.” “É, aquele vagabundo. Infelizmente, ele ainda mora aqui sim, aquele vagabundo”, afirmou a velhinha, batendo o portão com força na cara de Jeremias.

Pelos primeiros indícios, Júlio não só continuava morando ali como também preservara, durante todos aqueles anos, a imagem que tinha na vizinhança, o que fez Jeremias especular sobre o que mais na vida de Júlio permanecia exatamente igual a antes.  Dependendo do grau de imutabilidade, Jeremias certamente teria de se cuidar.

“O que o senhor deseja?”. A voz forte veio de dentro da guarita, assustando Jeremias e arrancando-o de suas reflexões existenciais. “Estou procurando o Júlio”, respondeu, olhando para o vidro escuro da guarita que falava. “Qual o número do apartamento?”, perguntou a guarita fantasma. “O número eu esqueci, mas fica no último andar”. “E qual o seu nome?”, perguntou mais uma vez a guarita falante, após um breve intervalo. “Jeremias”.

Um ruído eletrônico destravou o portão e Jeremias avançou alguns passos para dentro, bem ao lado da janela lateral da guarita. Lá dentro, um homem negro disse: “Pode subir. O número do apartamento é 72.” No elevador, que também havia sido reformado, apresentando agora um aspecto limpo e espelhos nos dois lados, Jeremias riu, recordando que Júlio nunca se dera bem com os vizinhos, mas sempre mantivera boas relações com os empregados do prédio. Parece que isso também não mudara.

O corredor do sétimo andar também havia sido repaginado. Massa corrida nas paredes e uma nova pintura cobriam completamente as rachaduras, desenhos em spray e pichações. As portas, inclusive a do apartamento 72, estavam revestidas de uma cor bege bem suave e sóbria. Apertou a campanhia, mas não ouviu barulho algum. Resolveu bater na porta. Esperou um pouco e bateu de novo. A fechadura então fez barulho e lá estava ele, Júlio, cara inchada de quem havia acabado de acordar. Como já eram quase quatro horas da tarde, Jeremias concluiu que os hábitos de Júlio em relação ao sono também não haviam sofrido grandes transformações.

– E aí, cara?

– Puta que pariu! Assombração!

– Você achou que eu tinha morrido?

– Não… na verdade não tinha certeza, mas achava que não. Essas coisas a gente sempre acaba sabendo.

– Bom, mas e aí?

– Ah, então, entra aí cara, entra aí.

Jeremias fez um rápido resumo do que havia acontecido e do que havia mudado nos últimos tempos, enquanto Júlio fez um rápido resumo do que não havia acontecido e não havia mudado no mesmo período.  Recordaram a última vez em que tinham se visto: num domingo, também na casa de Júlio. Como em quase todas as tardes de domingo, eles se reuniam para ensaiar a banda que um dia se transformaria em sucesso nacional e, quem sabe, até internacional. Bastava, para isso, que as pessoas finalmente sacassem que as músicas deles eram infinitamente melhores do que tudo o que havia no mercado na época. Enquanto não eram descobertos, eles ensaiavam, ou pelo menos chamavam de ensaios aquelas reuniões dominicais no apartamento de Júlio, regadas a litros de álcool e a razoáveis quantidades de qualquer tipo de droga que eventualmente fosse disponibilizada a cada encontro. guitar-player

Aliás, Jeremias lembrava bem daquele último ensaio que fez com Júlio, anos atrás. Estavam só os dois passando algumas músicas, quando chegou um tal de Murilo, que Júlio havia conhecido alguns dias antes. O sujeito tocava guitarra, e tocava bem, como demonstrou quando começou a ensaiar com eles. Só que, de repente, ele parou, abriu um pacote de cocaína, separou uma parte e perguntou se tinha água destilada. Era lógico que não havia água destilada ali, na verdade não havia nem água filtrada, já que Júlio nunca se dera ao trabalho de instalar um filtro no buraco que chamava de cozinha.

– Destilada não tem, mas você pode ferver, tem panela aí, disse Júlio.

– Não precisa não, eu dou um jeito aqui mesmo, respondeu Murilo, que em fração de segundos estava tirando sangue da veia de seu braço esquerdo com uma seringa que pareceu ter surgido por mágica em suas mãos. Completada a operação, Murilo foi até a cozinha e trouxe uma colher, onde depositou o sangue retirado de seu braço. Depois jogou a cocaína na colher e mexeu o sangue com dedo. A seguir, sugou a mistura com a seringa, balançou um pouco e injetou em seu braço.

Enquanto Murilo batia a porta do apartamento, depois de ter se despedido pedindo desculpas pelo “vacilo, mas não deu pra segurar”, Jeremias e Júlio ainda estavam de boca aberta, tentando assimilar o que havia acontecido. Não voltaram a tocar. Desceram e foram para um bar encher a cara.


Depois de relembrar essa história junto com Júlio, Jeremias começou a reparar um pouco melhor onde estava. Talvez estivesse delirando, mas tudo dentro daquele apartamento parecia, depois de tantos anos, estar exatamente igual àquele dia em que Murilo devolveu seu sangue às suas veias, após adicionar cocaína nele.



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JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)

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