CAPÍTULO XXVI
Na
verdade
Perder
contato é fácil
Astronautas
sabem disso
Também
os controladores nas torres
Devia
haver um avião bem aqui
Mas
ele não está aqui, nem ali
Ou
em lugar algum
Na
verdade
Perder
contato é fácil
Antes
nos víamos quase todos os dias
Agora
trocamos e-mails de vez em quando
Escrever
cartas nem pensar
Seria
muito íntimo
E,
afinal, somos adultos
Na
verdade
Perder
contato é fácil
Antes
havia algum sentido
Acordar
de manhã
Escovar
os dentes e dar um beijo em você
Levar
o lixo lá fora
Sair
de casa
Voltar
Deitar
ao seu lado
Dormir
e acordar
Na
verdade
Perder
contato é fácil
Basta
a gente se distrair
Não
sabia por que, mas tinha resolvido começar a ler A Porta dos Fundos do Paraíso
pelas páginas com poesias, localizadas mais ou menos lá pela metade do
livro. Nunca gostara de poesia, na
verdade achava poesia um tremendo pé no saco. Além disso, nunca soubera que
João fazia poesia. Aliás, eles dois faziam questão de declarar, pra quem
quisesse ouvir – e principalmente quando havia por perto alguém metido a poeta
– que odiavam poesia, que poesia era coisa de babaca, escroto e assim por
diante.
No
entanto, aquelas poesias, jogadas lá no meio do livro, estavam, por estranho
que parecesse, lhe dizendo alguma coisa,
em especial aquela, que falava da perda de contato. Ele compreendia exatamente
o que aquelas palavras queriam dizer, porque ele se sentia exatamente assim,
olhando para os navios ancorados na barra, aguardando a hora de entrar no canal
para atracar no porto, um pouco mais além.
Talvez
comentasse sobre isso no próximo e-mail que mandaria para o João.
No
momento, porém, a prioridade era arranjar um lugar para passar a noite.
CAPÍTULO XXVII
“Nós
só queremos que Deus nos mostre a sua face”.
Foi
o que ele disse, lá sentado naquele sofá
Em
frente às câmeras de TV
Ele
não teria dito nada
Mas
então o sujeito lhe perguntou:
“O
que vocês pretendem?”
Então
ele disse:
“Nós
só queremos que Deus nos mostre a sua face”.
E
o apresentador ficou calado
E
os homens atrás das câmeras ficaram calados
E
todas aquelas pessoas sentadas na plateia também ficaram caladas
Então
ele se levantou, disse boa noite e foi embora
Outra
boa poesia, sem dúvida, mas o que ele queria mesmo era que o shopping abrisse
logo. Precisava, urgentemente, usar o banheiro. Estava há três dias vivendo nas
ruas e seu dinheiro o obrigava a fazer, todas as noites, uma escolha crucial:
ou pagava por um lugar para dormir ou comia no dia seguinte. Como comer sempre
lhe pareceu mais importante, ele descobriu que dormir nos bancos dos jardins da
praia não era tão ruim assim, ainda mais durante a primavera, que naquela
cidade era quase tão quente quanto o verão.
Mas sua principal preocupação naquele momento não tinha nada a ver com
comida ou cama, mas com o fato de que, logo, também não teria mais dinheiro
para usar os computadores das lan-houses.
Sendo assim, teria que interromper a narração da sua história até que as
coisas melhorassem. A ironia daquilo tudo é que havia gasto um dinheiro
precioso, na situação em que se encontrava, comprando a porra do livro de João.
Era incrível como João ainda continuava complicando a sua vida, mesmo distante
e sem que tivessem qualquer contato há anos.
É
claro que ele poderia muito bem procurar Marisa e lhe pedir algum dinheiro
emprestado. Contudo, não lhe parecia uma boa ideia pedir ajuda à irmã, depois
de ter destruído o carro de seu cunhado, alguns anos antes, quando capotou na
avenida da praia, sem qualquer motivo, a não ser estar completamente bêbado e
chapado. João estava com ele e o mais impressionante foi que, ainda dentro do
carro, virado de cabeça para baixo, ficaram olhando um para a cara do outro,
até começarem a sentir um forte cheiro de gasolina e perceberem que o tanque
estava vazando e que aquela porra podia explodir a qualquer momento. O carro
não explodiu e eles sofreram apenas alguns arranhões, mas seu cunhado nunca
mais falou com ele, nem com João.
Outra
razão para não procurar nem a irmã, nem mais ninguém naquela cidade era que
queria permanecer anônimo o máximo de tempo possível. Sempre sonhara em fazer
isso um dia e agora ali estava a oportunidade. Tivera uma intuição de que, se
ninguém soubesse que ele estava na cidade, poderia contar melhor a história que
queria contar.
No
entanto, embora não gostasse da ideia, a única alternativa, naquela situação,
era procurar Júlio e tentar vender as coisas que deixara guardadas com ele,
antes de ser obrigado a dar o fora. Mas isso envolvia dois problemas: primeiro,
encontrar Júlio depois daqueles anos todos; segundo, será que Júlio ainda
estava com as coisas que ele havia lhe pedido para guardar?
Era
bem improvável que Júlio ainda morasse no mesmo lugar, um minúsculo e velho
apartamento, no último andar de um prédio caindo aos pedaços, localizado numa
avenida que levava ao atracadouro das balsas que faziam a travessia para a
cidade que ficava na ilha vizinha.
Localizar
o prédio não foi difícil. Embora a fachada da construção tivesse passado por
uma reforma total, o que lhe dava uma aparência bem diferente da imagem de
decadência que o edifício apresentava antes, o prédio se destacava ao
contrário, por ser o mais baixo naquele trecho da avenida, dominado por novas e
altas edificações.
Então
era subir até o último andar e checar se ainda havia notícias de Júlio por ali.
Agora existia uma guarita junto ao portão, mas nenhum guarda dentro dela.
Jeremias apertou várias vezes o que parecia ser uma campainha, mas ninguém
apareceu. Já estava quase desistindo, quando uma velhinha, atrás dele, com uma
chave em riste, pediu licença para abrir o portão que Jeremias estava
inadvertidamente bloqueando. Ele se afastou, a velhinha abriu o portão e já ia
fechando de novo, quando Jeremias arriscou perguntar: “O Júlio ainda mora nesse
prédio?”. “Quem, aquele vagabundo?”, devolveu a velhinha. “Bom, é o sujeito que
morava no último andar.” “É, aquele vagabundo. Infelizmente, ele ainda mora
aqui sim, aquele vagabundo”, afirmou a velhinha, batendo o portão com força na
cara de Jeremias.
Pelos
primeiros indícios, Júlio não só continuava morando ali como também preservara,
durante todos aqueles anos, a imagem que tinha na vizinhança, o que fez
Jeremias especular sobre o que mais na vida de Júlio permanecia exatamente
igual a antes. Dependendo do grau de
imutabilidade, Jeremias certamente teria de se cuidar.
“O
que o senhor deseja?”. A voz forte veio de dentro da guarita, assustando
Jeremias e arrancando-o de suas reflexões existenciais. “Estou procurando o
Júlio”, respondeu, olhando para o vidro escuro da guarita que falava. “Qual o
número do apartamento?”, perguntou a guarita fantasma. “O número eu esqueci,
mas fica no último andar”. “E qual o seu nome?”, perguntou mais uma vez a
guarita falante, após um breve intervalo. “Jeremias”.
Um
ruído eletrônico destravou o portão e Jeremias avançou alguns passos para
dentro, bem ao lado da janela lateral da guarita. Lá dentro, um homem negro
disse: “Pode subir. O número do apartamento é 72.” No elevador, que também
havia sido reformado, apresentando agora um aspecto limpo e espelhos nos dois
lados, Jeremias riu, recordando que Júlio nunca se dera bem com os vizinhos,
mas sempre mantivera boas relações com os empregados do prédio. Parece que isso
também não mudara.
O
corredor do sétimo andar também havia sido repaginado. Massa corrida nas
paredes e uma nova pintura cobriam completamente as rachaduras, desenhos em
spray e pichações. As portas, inclusive a do apartamento 72, estavam revestidas
de uma cor bege bem suave e sóbria. Apertou a campanhia, mas não ouviu barulho
algum. Resolveu bater na porta. Esperou um pouco e bateu de novo. A fechadura
então fez barulho e lá estava ele, Júlio, cara inchada de quem havia acabado de
acordar. Como já eram quase quatro horas da tarde, Jeremias concluiu que os
hábitos de Júlio em relação ao sono também não haviam sofrido grandes
transformações.
–
E aí, cara?
–
Puta que pariu! Assombração!
–
Você achou que eu tinha morrido?
–
Não… na verdade não tinha certeza, mas achava que não. Essas coisas a gente
sempre acaba sabendo.
–
Bom, mas e aí?
–
Ah, então, entra aí cara, entra aí.
Jeremias
fez um rápido resumo do que havia acontecido e do que havia mudado nos últimos
tempos, enquanto Júlio fez um rápido resumo do que não havia acontecido e não
havia mudado no mesmo período.
Recordaram a última vez em que tinham se visto: num domingo, também na
casa de Júlio. Como em quase todas as tardes de domingo, eles se reuniam para
ensaiar a banda que um dia se transformaria em sucesso nacional e, quem sabe,
até internacional. Bastava, para isso, que as pessoas finalmente sacassem que
as músicas deles eram infinitamente melhores do que tudo o que havia no mercado
na época. Enquanto não eram descobertos, eles ensaiavam, ou pelo menos chamavam
de ensaios aquelas reuniões dominicais no apartamento de Júlio, regadas a
litros de álcool e a razoáveis quantidades de qualquer tipo de droga que
eventualmente fosse disponibilizada a cada encontro. guitar-player
Aliás,
Jeremias lembrava bem daquele último ensaio que fez com Júlio, anos atrás.
Estavam só os dois passando algumas músicas, quando chegou um tal de Murilo,
que Júlio havia conhecido alguns dias antes. O sujeito tocava guitarra, e
tocava bem, como demonstrou quando começou a ensaiar com eles. Só que, de
repente, ele parou, abriu um pacote de cocaína, separou uma parte e perguntou
se tinha água destilada. Era lógico que não havia água destilada ali, na
verdade não havia nem água filtrada, já que Júlio nunca se dera ao trabalho de
instalar um filtro no buraco que chamava de cozinha.
–
Destilada não tem, mas você pode ferver, tem panela aí, disse Júlio.
–
Não precisa não, eu dou um jeito aqui mesmo, respondeu Murilo, que em fração de
segundos estava tirando sangue da veia de seu braço esquerdo com uma seringa
que pareceu ter surgido por mágica em suas mãos. Completada a operação, Murilo
foi até a cozinha e trouxe uma colher, onde depositou o sangue retirado de seu
braço. Depois jogou a cocaína na colher e mexeu o sangue com dedo. A seguir,
sugou a mistura com a seringa, balançou um pouco e injetou em seu braço.
Enquanto
Murilo batia a porta do apartamento, depois de ter se despedido pedindo
desculpas pelo “vacilo, mas não deu pra segurar”, Jeremias e Júlio ainda
estavam de boca aberta, tentando assimilar o que havia acontecido. Não voltaram
a tocar. Desceram e foram para um bar encher a cara.
Depois
de relembrar essa história junto com Júlio, Jeremias começou a reparar um pouco
melhor onde estava. Talvez estivesse delirando, mas tudo dentro daquele
apartamento parecia, depois de tantos anos, estar exatamente igual àquele dia
em que Murilo devolveu seu sangue às suas veias, após adicionar cocaína nele.
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