Thursday, May 26, 2016

DIA DE DESCANSO (por Marcelo Rayel Correggiari)



O gerenciamento de uma Mercearia pressupõe descanso. Domingo. Exceto plantonistas de alguma emergência, dia parado.

Todos têm direito ao repouso. Nesse dia a esmo, não há horário para muita coisa: almoço de domingo, casa de ‘vó’, jogo de futebol, ‘churras’ despreocupado, o aniversário que caiu no meio da semana.

Por recomendação médica, esse insistente estabelecimento comercial opera à noite, fora do horário comercial e completamente distante de aglomerações. Quem sabe, no dia da alta, essas paredes voltem a atuar como um bom ‘secos-e-molhados’ em Ana Dias, ou algo semelhante.

A jornada do afastamento tem o lado bom: da beira-d’água, voltada para a ilha, esta loja que tenta sempre servir o(a) digníssimo(a) freguês(a) com o que é possível de mais fino ofertar consegue ver muito mais do que prédios tortos e luzes amarelas.

Como as portas só abrem à noite, domingo é de cenário pacato.

Um silêncio pouco usual zune nos ouvidos. De musicalidade própria e harmonia compacta, tais pausas são estranhadas pelos tímpanos. Não há habitantes nas janelas. Das ruas, o que se vê são cômodos acolhidos pelas luzes dos ‘abat-jours’. Iluminação confortável. Pálpebras pesam o dia inteiro.

À porta de uma edificação, em gesto simultâneo e recíproco, um casal chupa as línguas. Ele de bicicleta, ela de short muito curto e meias amparadas por sandálias de dedo. “Isso deve ser bom”, alguém imaginaria. Mal não faz. É bom procrastinar a chegada ao mundo dos adultos.

Quantidade vultosa de pessoas com o cão de estimação na coleira. Coco, calçada, saco plástico. Civilização. Passeio de domingo. Domingo à noite.



Recentemente, foi recebida missiva de um grande amigo que não fala nossa língua, recomendando Pascal Garnier. Falecido em 2010, o que diria o romancista desse passeio de olhos?!

“Improvável essa Mercearia ver tudo isso somente”, diria o francês. Pelas vias principais, barulhentas carroças compridas, dessas que carregam muita gente ao mesmo tempo, destoam na paisagem escurecida. Tudo, absolutamente tudo, embrulhado pela iluminação amarelecida.

O que permanece entre o domingo e a segunda é apenas esse silêncio. Onze da noite e a maré começa a encher. O frio completa o sentido. Ainda de portas abertas, pensando na próxima liquidação, o único freguês ao balcão já bebeu todas as aguardentes da prateleira.

“Já vi gente levar rasteira, mas igual a você, em tão pouco tempo, ‘tá’ ‘pra’ nascer”, provocou o romancista francês. Não estava, assim, tão errado. Mas tudo bem. Quem teve a manha de escrever “Les Insulaires” e gastou montanhas em cachaça naquela noite tem direito a zoar com a gerência.

Pais, dentro dos automóveis, levam os filhos embora de algum lugar. ‘Amanhã tem aula’. O pânico das vinhetas de domingo não atingem quem foi colocado de lado. A segunda será igual àquela noite, a terça, igualmente. Como a luz do dia só alcança as portas fechadas da descansada Mercearia, o que foi feito de sol-a-sol acaba caindo numa perfeita ignorância.

Ignorância, recomendação médica.

Nas luzes brancas fluorescentes, a indústria da pequena alimentação desce o esôfago. Uma pilha de fritura, pão e queijo derretido. Batatas. Gelo adocicado. E todas essas maravilhas que encurtam a vida.

O tempo vaza pelos ponteiros calados de um relógio pendurado na parede. Domingo é esse dia. Dia de descanso. O intervalo da semana em que todos entendem o afastamento. A arte não tem importância, os assuntos da mente também. As pernas guiam o resto do corpo pelas calçadas. O que pesa, mesmo, é a disparo inconteste da reclusão.

E quando o feriado cai na quinta, quanta alegria!



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


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