Thursday, August 24, 2017

CHIFRE EM CABEÇA DE CAVALO (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)



Nas andanças pelo Reino Unido, mais em Londres do que em Belfast, entrava, saía e topava com a heráldica do governo local. Uma espécie de brasão: assim como em qualquer país, um símbolo do poder central.

Até aí, nada demais, exceto por dois bichos encontrados nesse tal brasão: um leão e um unicórnio (se não me falha a memória). O primeiro é motivo de piada entre os moradores locais: “Leão?! Onde já se viu...”. Apesar das inúmeras explicações da geologia, da geografia e da biologia em torno do caminho percorrido pelos animais até encontrarem seu ‘habitat’, a probabilidade de leões partirem da bretanha insular e pararem na África é bem científica: algo que começa nela e se mantém nela.

Isso sem contar a mão de obra que tais felinos tiveram com cansativas braçadas até chegar em continente europeu. Depois da maratona aquática, toca se mandar até a Turquia, dar a volta na Judeia, Palestina e Egito para, “voilá!”... finalmente fazerem sucesso em continente africano.

Do jeito que a espécie adora água, certamente a conta não fecha para muitos de nós, leigos.

No caso do unicórnio, com a quantidade de LSD e ecstasy em território inglês, sem levar em consideração o que já se bebeu de gin nos últimos cinco séculos, ‘tá’ explicado.

Viver um pedacinho da evolução do mundo, esse recorte histórico onde todos nós fomos inseridos (alô, papai e mamãe... aquele abraço!), é um pouco de covardia (ou sacanagem “para conosco”!). Como não havia ninguém há três mil anos atrás para o sumiço dos mamutes tundra afora, dinossauros, florestas, entre outras bossas, é confiar no que está escrito.

Ou seja, como diz a cineasta Madeleine Alves: “... a vida é a ficção em sua melhor prática”. A vida não existe: o que existe é ficção pura, os diversos unicórnios que existem nos brasões bem escondidinhos lá nos recônditos secretos e silenciosos de cada um de nós.

Afinal, cada um imagina a quimera que melhor lhe praz.

O ‘pobrema’ é transformar o trem em convicção para lá de profissional. Aí, caro(a) freguês(a), é uma merda colossal. “Ele(a) me ama..”, “... ele(a) me deu mole...”, “... sou o(a) melhor ______ do mundo”, “(fulano(a) de tal) é honesto(a)”, “... como ser alguém na porra do século XXI...”, “... sou bom ‘pra’ caralho nessa bexiga...”, “... esse cacete aí é ‘clubinho fechado’...”, “(...) eu te puxo/e tu me lambe (...)”, “... não ‘tá’ vendo que eu te amo/‘tô’ a fim de você...”, “... sou apaixonado(a) por você desde aquela época...”, “... ‘bora’ ser feliz...”, “homem/mulher é tudo igual”, “... ‘tô’ morrendo de saudade...”, são premissas cujo o ‘radix’ está enterrado nas profundidades do éter.

E não nos iludamos, querido(a) freguês(a): premissas erradas, conclusões erradas.

Nos casos de contração de núpcias, “the bitter end”, como já previsto por Deleuze, costuma ser delírio e “estado clínico” (ou o que vier primeiro!). Na situação de delírio, ainda há uma válvula de escape para a criatividade em nome da salvação do ‘maledetto’ casório. No segundo, é trancar o(a) sujeito(a) numa camisa-de-força e retirar de circulação.



Sim! De alguma forma, acreditamos em unicórnios. Dizemos isso ‘numa boa’, sem estresse, tudo numa ‘nice’. Aí, é só aplicar umas cafungadas de humanismo, um “cabeção-sonífero” (como dizia Fausto Fawcett) por intermédio daquela (im)postura “I like to travel light” e ver qual é o(a) desavisado(a) que morderá a isca.

Acreditamos, sim, piamente, nesses unicórnios que só existem em nossas cabeças. Pensem... cavalinho bacana, mítico, de chifre único. Cavalos com chifres... chifres únicos, singulares! E nada de confessar publicamente nossa fé num troço desses.

Até aí, vai...! O pior vem sempre na forma de escalar alguém (ou qualquer um) para a inglória tarefa desse atendimento aos unicórnios sem, ao menos, uma exata ideia de quem é esse pessoa e a quantas andam as coisas que a cerca. Uma espécie de ‘comunicação de pauta’ ao invés do colóquio e dana a enquadrar quem for para uma correspondência que só existiria na cabeça de um dos lados da mesa.

Aquilo que os mineiros chamam de “ver fantasmas ao meio-dia”. Algo que persiste em algumas circunstâncias difíceis de explicar. Vale-se de um forte desejo que quase sempre mostra o seu lado de inegociabilidade. Não sobra muita coisa: o que advém disso é a troca, como fruto de se vestir a pele do outro, deixada de lado.

Enquanto isso, mantém-se a velha rima comum no brasão institucional do Reino Unido: um leão de um lado, um unicórnio, do outro. Há muita imagem, mas nenhuma decente constatação.


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO



No comments:

Post a Comment