Publicado em O GLOBO (07/04/2019)
O que é espantoso
neste governo é como ele é capaz de perder o próprio tempo e o nosso.
Bizarrices, debates ociosos ocupam as horas e consomem energias que deveriam
estar dedicadas ao esforço de enfrentar os inúmeros problemas que o país tem.
Perder tempo quando se tem tanto o que fazer é ruim. Mas são as mentiras que
mais ameaçam. Se a ditadura foi ditadura, se o Hitler era de direita ou
esquerda, se é melhor ir aos bancos para saber o número de desempregados em vez
de consultar o IBGE, se o diálogo do presidente com os partidos é velha ou nova
política. Esses são exemplos de temas pautados por este governo. Parecem só
inutilidades, mas são, muitas vezes, mentiras perigosas.
O presidente
dizer que não se arrepende de ter feito xixi na cama com cinco anos é bizarro.
Quando ele compara esse ato infantil involuntário com a defesa que fez na vida
adulta de fechamento do Congresso passa a ser ameaça. Ele nunca soube dar peso
às próprias palavras, mas exibir, como presidente, essa desordem no sistema de
valores é assustador.
É preciso saber
separar. De tudo o que fez, falou e provocou na última semana, a mais perigosa
é a revisão do passado. Quem diz que não houve golpe nem ditadura no Brasil não
está provocando polêmica, está mentindo. Algumas questões da História comportam
interpretações, outras, não. Esta é uma república que já viveu dois graves e
longos ciclos autoritários.
Um regime que
fechou várias vezes o Congresso, interferiu no Judiciário, suspendeu garantias
constitucionais, impôs uma constituição autoritária, cassou, prendeu, torturou,
matou e ocultou cadáveres de opositores, proibiu estudante de estudar,
suspendeu eleições, censurou a imprensa é uma ditadura. Não cabe relativizar. É
fato absoluto. Relativa é a tendência política de cada um. O presidente Bolsonaro
gostou do período, acha que foi um bom momento, e que os atos do regime não
foram crimes. Cada um é livre para ter a própria opinião. Pode gostar ou não.
No caso de um presidente da República, essa preferência tem que pôr em alerta
as instituições.
A discussão não é
apenas bizantina, não é mais uma esquisitice do governo, nem deve ser vista com
a condescendência que se dedica aos loucos. Na quarta-feira, Vélez Rodriguez
falou em mudar livros escolares. A ideia de impor aos jovens uma versão mentirosa
dos fatos históricos é criminosa e ataca a ordem constitucional. Tratar como
sendo mais um sintoma de sandice pode ser o pior risco. A queda do ministro não
resolve o problema, porque a ideia pode sobreviver a ele.
A revisão
histórica em relação ao nazismo é horripilante, porque é a tentativa de
reescrever uma das páginas mais dolorosas do século XX: o holocausto dos judeus
na Alemanha de Hitler. Não se brinca com questão de tal gravidade. Relativizar
o que houve é o primeiro passo para esquecer o que jamais pode ser esquecido.
Na extraordinária
capacidade de o governo nos fazer perder tempo, apesar da agenda lotada de
questões urgentes, há uma enorme dose de falta de noção. Dias e dias foram
perdidos com ofensas em redes sociais de pai e filhos a potenciais aliados na
agenda econômica, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. As lutas travadas
entre olavetes e não olavetes, os tuítes mal escritos, insensatos e agressivos
dos filhos do presidente, a criação de entidades desconhecidas do mundo real
são exemplos do mais puro desperdício de tempo.
O perigo é o país
se cansar de tanto assunto sem sentido que o governo traz à tona e deixar de
reagir com a veemência necessária àquelas questões que realmente nos ameaçam.
Intervir na metodologia do IBGE, reescrever livros de história, deixar a
educação à deriva, fazer apologia de crimes políticos passados são riscos
graves contra os quais o país precisa se proteger.
Quem foi eleito
governa durante o seu mandato, cumpre sua agenda, monta sua aliança, nomeia os
ministros, tenta passar no Congresso as medidas que acha relevantes para seu
projeto. Esse é o jogo democrático. Quem foi eleito não vira dono do país. As
instituições precisam estar atentas aos perigos reais que podem estar atrás de
uma frase sem noção, de um ato descabido, uma leviandade, uma mentira que se
tenta impor como verdade. A democracia em tempos modernos não tem morte súbita.
Morre aos poucos.
Miriam
Azevedo de Almeida Leitão nasceu em Caratinga MG no dia 7 de Abril de 1953 e já passou pelas
principais redações da Imprensa Brasileira. Atualmente é colunista do jornal O
Globo, comentarista do Bom Dia Brasil na TV Globo e apresentadora de um
programa com seu nome na GloboNews. Tem diversos livros publicados e uma ficha corrida
de excelentes serviços prestados ao Jornalismo.
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