[Diário
encontrado por um poeta desterrado no mítico porto de Santos a partir de
garrafas náufragas desde Argel através do sentimento atlântico do mundo]
Camus no Brasil,
a chegada recontada
[ junho 1949 - Passava-mos
pela Linha do Equador, fujo para a proa, contemplo a lua e o Cruzeiro do Sul ]
´´Uma lua
crescente sobe por cima dos mastros. Até perder de vista, na noite ainda não
inteiramente densa, o mar, - e um sentimento de calma, uma poderosa melancolia
sobem, então, das águas. Sempre apazigüei tudo no mar, e essa solidão infinita
me faz bem por um momento, embora tenha a impressão de que este mar hoje esteja
chorando todas as lágrimas do mundo. As
águas estão pouco iluminadas na superfície, mas sente-se sua escuridão
profunda. O mar é assim, e é por isso que eu o amo. Chamado de vida e convite
‘a morte.]
[ 15 de julho
- ´´’As quatro da manhã, um estardalhaço
no convés superior me desperta. Saio. Ainda está escuro. Mas a costa está muito
próxima: serras negras e regulares, muito recortadas, mas os recortes são
redondos- velhos perfis de uma das mais velhas terras do globo. Ao longe luzes.
Seguimos o litoral, enquanto a noite clareia, a água mal estremece, fazemos uma
grande manobra, e as luzes agora estão diante de nós, mas longínquas.
Volto para o
camarote. Quanto torno a subir, já estamos na baía, imensa, um pouco fumegante
no dia que nasce, com súbitas condensações de luz, que são as ilhas. A névoa
desaparece rapidamente. E vemos as luzes do Rio correndo ao longo da costa, o
Pão de Açúcar, com quatro luzes no seu topo.... A riqueza e a suntuosidade das
cores que brincam sobre a baía, as montanhas e o céu, fazem calar a todos, uma
vez mais. Desembarcamos ainda no raiar do
dia. O Brasil me parece um país alternando alegria e enfermidade. Os motoristas
brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia
deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que
custar. O contraste mais impressionante ao chegar ao Brasil é fornecido pela
ostentação de luxo dos palácios e dos prédios modernos com as favelas. Nunca o
luxo e a miséria me pareceram tão insolitamente mesclados. Cinicamente um
jornalista comenta : ´´Aqui os pobres apesar de tudo se divertem´´ , ao que
imagino o quanto não se divertem os ricos que os oprimem. Saudado como um deus, um Proust nos trópicos,
um exaltado poeta me revela: ´´ O Brasil precisa de sua paciência. Paciência,
eis o que é preciso ter com o Brasil´´, nada mais acertado.]
DELOS
Poema oceânico de
Apolo
[Fernando Caeiro]
´´Minha mesa
ancora sobre navios plúmbeos nítidos verídicos pelo horizonte improvável
cortado pela
esponjóide faca das águas
só o Mar é
verdadeiro primal indiferenciado
qual nau de chumbo
do universo
aqui estou diante
o Mar cinzento específico de Santos
estuário que
encorpa torce sacralizando as rotas por onde passam os anjos de marujos das
viagens sem mais rumos
versa uma
angústia de despedidas sombreadas pela conchas rosadas
maleáveis nesse
solo lunático do Oceano fundo
estrelas decaídas
desalmados cacos
das profundezas: alvorada percorres os sentidos espalhados das retinas
lacrimosas de maresia do ontem longínquo
morrendo a foz
nas areias recortadas de canais funestos
veios dorsais
retribuindo pelo vento os excessos da ressaca das vértebras concavadas desse
Oceano que descansa em cais de chegadas
remanso
arrebatado / Mar sedentário sem garras
sal de noroeste
quente como as estrelas de Bandeira!
Manuel amanhã nos
servirão a chuva como alimento de outroras!
o Mar, Manuel! é
o beco! insula ferruginosa beócia
ondem aportam
Neruda / Borges / Bishop , demais americanos ressoam timbres e tambores do jazz
da Louisiana!
e chegam de mim
aos braços marejados ombros músculos membros que me encarnam da sensualidade de
Tânger! aparato pelo meu sexo dadivoso
aos que navegaram até meu corpo transido de desejo , corpo barco
marejam ....
Rimbaud vem ao largo, nada núbio abissínio:
malditos sejamos
nós os desmedidos! malditos anjos dos antros genetianos!
nós / léguas/ malhas, cardumes gongóricos milhas
desfazem náutico górdio
terceira margem o
Mar contêm? lajeado solto
banal pedaço do
não-ser líquido das esferas decaídos ‘as ondas
meço recomeço
pelo método poético dos vastos campos
sem-eira nem
beira bradam os peixes agarrados a vida das redes :
tua ilha vale
para os trópicos tanto quanto Helesponto
desapega da mente
‘a tábua das marés todos teus sonetos
que nem estacas
te seguram ó ilha, ilha, ilha!
nem flor ou hora
diáfana brote sem consentimento de teu poema leme
delineando as
vagas : vagabumdemos pela praia como amantes dessa Rimini brasileira!
o verso lúbrico
de plânctons relampeja trovoa!
companheiro
franciscano: irmão onda / irmão cai / costeiro
fraterno onde
desterram sujeitos superlativos
filamentos dunas
predicados / nenhum objetivo direto sendo escrito de fonte permanente: só o Mar
na verdade conhece do riscado
(estuárioemasculando
interfaces glúteas imantando pássaros avarentos
falcões
davincianos dúmida úmbria brasiliana / anatomia hidrográfica dessa maré
transversa da toscana / gitanos ginetes de baleeiras cafetinando málagas
salamancas: Santos tantos!
demiúrgicos
tessituradigam! bafejem! barcos ébrios demiurgem!
corporificados
aguaceiro caracteres corálicos sedimentados
nessa literatura
que faz mofa da tristeza bizantina em verbos artesianos
montanha fatiadas
em areai/ vazio regresso/ filamentos ajuntam gotas
é uma nuvem que
passa e um navio que corta uma rua estreita
feito um cu de
ondas intestinas )
qual a senha?
Aleph: desenterraram um mistério no atracadouro de âmbar
viajando nauta
qual a frase enunciada : (des)-propositivo
(des)-propositado:
a bagagem que me pesa sai de quem me cansa.
Jogado derradeiro
pescado/ exaurindo de Beleza
sigo a ronda
vesperal luminando de Apolo dourado
brocado de galáxias
é o crepúsculo
deitado com aurora dirão as brisas
quem sabe a
paragem das águas? nenhum acento fixo
exaurido de netunos
até o deus
nomeado por condicionante
tudo vaga para o
recomeço de cronos pelas ondas
é para ter sido
hoje o parto desses mares uterinos / para ter sido:
parábola istmo /
hão ou não? chega-se andando ao vão sem
trilha do arcano elemento gênesis das coisas criadas
o poeta é como
mar criador de espumas por encanto
oceano que
metaforiza o absurdo que é o nado raso do instante
eterno adeus
ainda que estrofes embarquem no papel em prantos : letra por letra é o Oceano de Santos que
reconta o paraíso terrestre : cardume por
berço do Atlântico.´´
Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).
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