Thursday, April 11, 2019

NO CAMINHO DE CAMUS, UM CAIÇARA ESTRANGEIRO (por Flávio Viegas Amoreira)



[Diário encontrado por um poeta desterrado no mítico porto de Santos a partir de garrafas náufragas desde Argel através do sentimento atlântico do mundo]

Camus no Brasil, a chegada recontada

[ junho 1949 - Passava-mos pela Linha do Equador, fujo para a proa, contemplo a lua e o Cruzeiro do Sul ]

´´Uma lua crescente sobe por cima dos mastros. Até perder de vista, na noite ainda não inteiramente densa, o mar, - e um sentimento de calma, uma poderosa melancolia sobem, então, das águas. Sempre apazigüei tudo no mar, e essa solidão infinita me faz bem por um momento, embora tenha a impressão de que este mar hoje esteja chorando todas as lágrimas do mundo.  As águas estão pouco iluminadas na superfície, mas sente-se sua escuridão profunda. O mar é assim, e é por isso que eu o amo. Chamado de vida e convite ‘a morte.]

[ 15 de julho -  ´´’As quatro da manhã, um estardalhaço no convés superior me desperta. Saio. Ainda está escuro. Mas a costa está muito próxima: serras negras e regulares, muito recortadas, mas os recortes são redondos- velhos perfis de uma das mais velhas terras do globo. Ao longe luzes. Seguimos o litoral, enquanto a noite clareia, a água mal estremece, fazemos uma grande manobra, e as luzes agora estão diante de nós, mas longínquas.
Volto para o camarote. Quanto torno a subir, já estamos na baía, imensa, um pouco fumegante no dia que nasce, com súbitas condensações de luz, que são as ilhas. A névoa desaparece rapidamente. E vemos as luzes do Rio correndo ao longo da costa, o Pão de Açúcar, com quatro luzes no seu topo.... A riqueza e a suntuosidade das cores que brincam sobre a baía, as montanhas e o céu, fazem calar a todos, uma vez mais.   Desembarcamos ainda no raiar do dia. O Brasil me parece um país alternando alegria e enfermidade. Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar. O contraste mais impressionante ao chegar ao Brasil é fornecido pela ostentação de luxo dos palácios e dos prédios modernos com as favelas. Nunca o luxo e a miséria me pareceram tão insolitamente mesclados. Cinicamente um jornalista comenta : ´´Aqui os pobres apesar de tudo se divertem´´ , ao que imagino o quanto não se divertem os ricos que os oprimem.  Saudado como um deus, um Proust nos trópicos, um exaltado poeta me revela: ´´ O Brasil precisa de sua paciência. Paciência, eis o que é preciso ter com o Brasil´´, nada mais acertado.]


DELOS
Poema oceânico de Apolo

[Fernando Caeiro]

´´Minha mesa ancora sobre navios plúmbeos nítidos verídicos pelo horizonte improvável
cortado pela esponjóide faca das águas

só o Mar é verdadeiro primal indiferenciado
qual nau de chumbo do universo

aqui estou diante o Mar cinzento específico de Santos
estuário que encorpa torce sacralizando as rotas por onde passam os anjos de marujos das viagens sem mais rumos
versa uma angústia de despedidas sombreadas pela conchas rosadas
maleáveis nesse solo lunático do Oceano fundo
estrelas decaídas
desalmados cacos das profundezas: alvorada percorres os sentidos espalhados das retinas lacrimosas de maresia do ontem longínquo
morrendo a foz nas areias recortadas de canais funestos
veios dorsais retribuindo pelo vento os excessos da ressaca das vértebras concavadas desse Oceano que descansa em cais de chegadas
remanso arrebatado / Mar sedentário sem garras
sal de noroeste quente como as estrelas de Bandeira!
Manuel amanhã nos servirão a chuva como alimento de outroras!
o Mar, Manuel! é o beco! insula ferruginosa beócia
ondem aportam Neruda / Borges / Bishop , demais americanos ressoam timbres e tambores do jazz da Louisiana!
e chegam de mim aos braços marejados ombros músculos membros que me encarnam da sensualidade de Tânger!  aparato pelo meu sexo dadivoso aos que navegaram até meu corpo transido de desejo , corpo barco
marejam .... Rimbaud vem ao largo, nada núbio abissínio:
malditos sejamos nós os desmedidos! malditos anjos dos antros genetianos!
nós /  léguas/ malhas, cardumes gongóricos milhas desfazem náutico górdio
terceira margem o Mar contêm? lajeado solto
banal pedaço do não-ser líquido das esferas decaídos ‘as ondas
meço recomeço pelo método poético dos vastos campos

sem-eira nem beira bradam os peixes agarrados a vida das redes :
tua ilha vale para os trópicos tanto quanto Helesponto
desapega da mente ‘a tábua das marés todos teus sonetos
que nem estacas te seguram ó ilha, ilha, ilha!
nem flor ou hora diáfana brote sem consentimento de teu poema leme
delineando as vagas : vagabumdemos pela praia como amantes dessa Rimini brasileira!

o verso lúbrico de plânctons relampeja trovoa!
companheiro franciscano: irmão onda / irmão cai / costeiro
fraterno onde desterram sujeitos superlativos
filamentos dunas predicados / nenhum objetivo direto sendo escrito de fonte permanente: só o Mar na verdade conhece do riscado


(estuárioemasculando interfaces glúteas imantando pássaros avarentos
falcões davincianos dúmida úmbria brasiliana / anatomia hidrográfica dessa maré transversa da toscana / gitanos ginetes de baleeiras cafetinando málagas salamancas: Santos tantos!
demiúrgicos tessituradigam! bafejem! barcos ébrios demiurgem!
corporificados aguaceiro caracteres corálicos sedimentados
nessa literatura que faz mofa da tristeza bizantina em verbos artesianos
montanha fatiadas em areai/ vazio regresso/ filamentos ajuntam gotas
é uma nuvem que passa e um navio que corta uma rua estreita
feito um cu de ondas intestinas )

qual a senha? Aleph: desenterraram um mistério no atracadouro de âmbar
viajando nauta qual a frase enunciada : (des)-propositivo
(des)-propositado: a bagagem que me pesa sai de quem me cansa.
Jogado derradeiro pescado/ exaurindo de Beleza
sigo a ronda vesperal  luminando de Apolo dourado brocado de galáxias
é o crepúsculo deitado com aurora dirão as brisas

quem sabe a paragem das águas?  nenhum acento fixo exaurido de netunos
até o deus nomeado por condicionante
tudo vaga para o recomeço de cronos pelas ondas

é para ter sido hoje o parto desses mares uterinos / para ter sido:
parábola istmo / hão ou não?  chega-se andando ao vão sem trilha do arcano elemento gênesis das coisas criadas
o poeta é como mar criador de espumas por encanto
oceano que metaforiza o absurdo que é o nado raso do instante
eterno adeus ainda que estrofes embarquem no papel em prantos :  letra por letra é o Oceano de Santos que reconta o paraíso terrestre : cardume por
berço do Atlântico.´´




Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).


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