Tuesday, March 20, 2018

A RONDA DA NOITE (por Marcelo Rayel Correggiari)



Essa noturna Mercearia deu um tempo em suas sociofobias momentâneas e partiu para uma maratona de fim-de-semana.

Nada com o que se preocupar, de fato: celebrações de aniversários. Alguma coisa mais ‘família’ nesse momento de reforma.

Valeu esse princípio de retorno: as pessoas certas nos lugares certos, nada de multidões acéfalas ou o exército-de-conteúdo-duvidoso.

Alegria, sim! Mas só alegria: cerveja e ‘conversa fora’ cujos temas dariam um livro de ensaios ao longo da semana. Papo-leve, sim, mas sobre assuntos desse cotidiano que virou máquina de fazer louco. Alegria, sim! Mas sem ‘oitavas intenções’ que quase sempre não levam a lugar algum. Tudo pelo sabor: da conversa, do flerte, do encontro, dos temas, dos parabéns, da música, da cerveja, da dança, da suave brisa noturna, o ceú estrelado por testemunha...

E também constatar que tudo está em seu lugar: um Bruno de la Rosa performático para um Ugo Castro Alves se rachando de rir. Há de se entender: os músicos, sábado último, tinham puxado praticamente dois ‘arrastões’ (a saber, a ‘feijuca’ do Naipe e o Fórum na abertura da ‘night’) e às duas ‘de la mañana’ no Mundi tudo pode acontecer.

Zoada no sobrado do bar e restaurante: madrugada avançando e o samba comendo. Tudo bem que terminou com a sofisticação de um Edu Lobo... mas ‘tá’ valendo!

No intervalo do primeiro para o segundo bloco do show, o esporte favorito desse merceeiro com a melhor ginga norueguesa jamais vista nesses mares-do-sul: o colóquio. O alerta foi dado pelo próprio Bruno: vivemos tempos de um ‘cronos’ bem, bem diferente.

Em meio à biritagem, fui alertado pelo músico e compositor sobre o açodamento e instantaneidade de um relógio que, hoje, gira de um modo muito, muito peculiar.

Contamos o tempo de uma forma singular e única, segundo Bruno. É o mundo das ‘curtidas & likes’ como endorfina para o cérebro, e tudo o que haveria de amoroso e humano nas tertúlias segue a passos largos para o vinagre.

Em que pese muito dos nossos dias se mostrar estragado pelos avançados estados de desordem psíquica (obrigando muita gente a encher a veia do pescoço para não enlouquecer junto), essa ‘instantaneidade’ das coisas partiu para cima das interações humanas. Trocou-se a curtição natural do “laisser-faire” por baladas bem mais assemelhadas a uma ‘performance’ quase competitiva, algo típico de um mundo cuja mediação é eletrônica e, logo, superficial.

Não existiria a “melhor balada”: existem as opções da noite. E só! Cada um se encaixa no sua e ‘segue o baile’.

Saiu disso, vira uma ‘livre-associação’ com uma eventual ‘qualidade’ que nem sempre existe nas “melhores baladas do mundo”.

Essa tentativa de transformar qualquer festança em ‘Ibiza’ é um esforço que sequer o europeu acompanha: baixe no Soho, em Londres, e veja, querido(a) freguês(a), que será a diversão menos ‘glamourosa’ que se possa conceber. Essa tentativa de pausteurizar tudo como um “Made in Chelsea” fatalmente produziu uma superficialidade onde as nuances se perderam por completo. Os “movimentos de alma” (olá, Renata Pallottini... aquele abraço!) perderam para os egos em desespero, sem contar os(as) portadores(as) de disfunções cerebrais sérias no meio do caminho. Não há mais um “... entendimento do todo...”, do “... the big picture...” da coisa: o(a) sujeito(a) é medido pelo ‘topos’ do lance, por sinais ‘tópicos’ que, justamente por serem ‘sinais’, apenas são a representação de parte de um todo bem mais profundo, complexo.

O perigo das “baladas” se transformarem na “ditadura da felicidade”: “... vá à balada ‘tal’ que é garantia de diversão!”. “... vá à balada ‘tal’ que é ‘coisa fina’!”. ‘Tá’! Divertir-se por que? Pelo prazer de algumas horas de distração num lugar onde as ruas e os pés te levaram, sem lenço, sem documento e sem destino, ou simplesmente para se esquecer desesperadamente da miséria que se é?!

Que tal primeiro dissolver tal miséria para depois se divertir?

Há uma certa sorte de ‘carroça na frente dos bois’ que também se reproduz na vida noturna. Lamentável? Lamentável. Esse merceeiro dispensou o Uber e foi ver em que pé estão as coisas... da sexta para o sábado e do sábado para domingo, o testemunhado é de estarrecer: como é que fizeram isso com o ‘progresso da folia’.

Sábado foi de doer: na ‘parte nobre’ dessa perdida ilha dos mares- do-sul, exceto os ‘Toninhos’ da vida, ‘Baccarás’, algumas festanças no centro e o Pink Elephant, tudo jazia em perfeito silêncio. Às quatro da manhã. Nada aberto, tirando postos de gasolina. Dizem que são os encargos trabalhistas e o ‘direito ao descanso’ dos funcionários. OK! Até entendemos...

Mesmo assim, o estarrecimento prosseguia ao testemunhar pequenos grupos de transeuntes madrugativos, rua aqui, rua acolá, com chapéu de leprechaun ofertado por famigerada cervejaria holandesa. ‘Hmm...’! OK! Dia de São Patrício em Enguaguaçu?! ‘Hmmm...’! OK!!! E uma distância gigantesca entre nós e Dublin...

Diversão não é performance: a riqueza de uma “balada” não está no lugar ‘chique’ com ‘gente transadíssima’, mas na qualidade de quem a habita. Sem isso, até o beijo na boca fica insosso.

Mas... mesmo com 33 anos de ‘night’ em lugares meio bizarros como Belfast, Belo Horizonte, Londres, São Paulo, além de nossa amada terrinha, quem seria esse merceeiro na economia do universo, não é verdade?!

Então, façamos silêncio...

... e segue o baile!

O tal merceeiro não se fez de rogado: em meio ao frescor da madrugada, sacou da camisa para aproveitar uma brisinha maneira um pouco antes do sol começar a soltar seus primeiros traços de azul claro no céu. “É hoje que só acordo lá pelas duas da tarde...”, pensou o comerciante. No dois com Carlos Gomes, um casal abriu a porta do carro para refrigerar um romance que tinha mais palavrório do que beijos. A farmácia, firme & forte! No percurso, um & outro ‘amante do sereno’ em seu retorno ao doce lar. Viva a manhã! Viva a noite! Viva!

A ronda da noite guarda a surpresa humana que, por vezes, é imensamente encantadora. Pena ocorrer essa permuta pelas trocas. Quem sabe conviver, convive. Quem não sabe, há boas opções de correção de rota à venda nas farmácias. A noite não é uma disputa pela melhor tralha disponível sob a pele de ‘diversão’: noite é convívio, sem máscaras ou critérios de seleção. A noite é quando o humano, com todas suas imperfeições, se encanta pelo humano.

Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

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