Impossível
ser regional sendo santista. Há uma cumplicidade universal com tudo que venha
bater nesses costados: Santos vai além
da cidade, é um olhar amplo para o mundo a partir de sua costa mítica, suas
reentrâncias ao continente, seu porto disposto a todos antros do planeta. Por aqui Américo Vespúcio que daria nome ao
continente, Hans Staden que inauguraria
nossa crônica e primeira literatura, os
versos de Anchieta e mais além uma plêiade de escritores de relevo brasileiro. Alguns nomes de ruas no Rio e São Paulo que
ninguém mais revela origem: Xavier da Silveira por exemplo, imenso poeta! Morrido jovenzinho foi dos primeiros bardos
anti-escravagistas e oradores libertários. Ainda no século XIX um autor que
se tornaria também santense escreva o primeiro best-seller nos idos de 1890 : "A Carne", obra proibida pela Igreja e censurada pela época , que seria
livro de cabeceira dos adolescentes até
para "ilustrar" o vício solitário na iniciação ao sexo. Julio Ribeiro descreve aí além das definições
de orgasmo feminino, um capítulo inteiro sobre a geografia e alma desse
micro-civilização santista.
Que mistério
literário guarda Santos afinal? Vicente
de Carvalho e Martins Fontes, poetas internacionais lidos por Fernando
Pessoa, Paulo Gonçalves e Ribeiro Couto quase esquecidos até a santista por adoção Patrícia Galvão e o
jabaquarense por tesão Plínio Marcos, maior dramaturgo brasileiro ao lado do
não menos futebolístico Nelson Rodrigues! Que águas do Itororó e do José Menino embalam tantos talentos a germinar
da sua seiva criativa? Não bastassem os
daqui, Neruda cantou Santos duas vezes em antológicos versos falando da
estiva, do cheiro de café e da maestria de Pelé! Jorge Luis Borges dedicou seu mais importante
conto, o "Aleph", a mitológica ilha em forma de cabelo de cavalo
que guardava o segredo trazido pelo cônsul britânico Richard Burton,
legendário tradutor do Kama Sutra e das Mil e Uma Noites para o inglês, que viveu cinco
anos entre o Valongo e a Várzea do Carmo. O segredo da origem de todos enigmas
e senha de todos os mistérios estaria contido num manuscrito nesse mesma Vila
de Santos que ainda não era Belmiro. Para Santos o primeiro poema brasileiro da maior poeta norte-americana Elizabeth Bishop, por Santos passaram e sobre a terra e sua
gente escreveram Lorca, Saint-Exúpery,
Camus e, claro, nossos Mário de Andrade e Manuel Bandeira.
Santos tantos! Mas agora preciso dar por
encerrada minha exegese histórica porque soa infinda... Toma-me o ímpeto
rastrear os novos autores que são desdobramento desse milagre artístico
imorredouro: os poetas surgidos depois
de Roldão Mendes Rosa e Narciso de Andrade, esses mestres que ficaram mais
restritos a nosso território por timidez ou falta dum olhar mais apurado da
crítica nacional. Jovens nascidos feito
eu em meados dos anos 60 e começo dos anos 70, numa cidade então sufocada como
nenhuma pela ditadura, mas com essa boa condenação de aberta aos ventos de toda parte onde bafeje
literatura. Por aí surgiram para a
escrita ainda inéditos o prosador Torero, os poetas Marcelo Ariel e André
Argolo, e para cá vieram outros de tão grande talento como Ademir Demarchi. Todos nós "personas literárias" que labutamos em áreas próximas do mesmo
ofício : jornalismo, redação
profissional, publicidade. E vou
acumulando percepção fascinada para outros que poderiam passar
desapercebidos por serem mais
reconhecidos por outras facetas.
É o
caso do poeta por essência Vladir Lemos tão jornalista, repórter, apresentador
muito querido das torcidas todas, mas para mim gongórico que sou além de tudo
isso visceralmente poeta! Não sou dado
ao futebol, mas admiro seus meandros líricos e mesmo semiológicos. Pasolini,
Lins do Rego, o próprio Nelson Rodrigues eram aficcionados. Camus foi
goleiro...mas tudo isso é da conta de outro conterrâneo da outra banda da ilha
o calunga Wisnick elucubrar. O apelo e função desse ensaio é uma mirada
necessária na poética do Vladir telúrico, de delicado simbolismo na elaboração
e "umidade" imagética em suas estrofes. Ecos de Drummond com certeza muito lido em seu tônus discursivo, reflexivo e muito do coloquialismo de
Bandeira. Alguns poemas quase
micro-contos ou crônicas versificadas e jogos de contraposições típicas dos
oximoros de Pessoa. Atavismo oceânico?
A temática marítima é reafirmação desse martelado "sentimento atlântico do
mundo" que tanto caracteriza poetas das
duas margens desse Tejo infindável. Teço essas depois de reler "Os dias em mim", lançado pela Dobra literatura em 2015, reunião eloquente que revelam já a pena segura: poesia
exige maturidade. Painel do poeta
atemporal: espelha trajetória de
experimentos, esboços, versos já
densamente alinhavados e veredas dos poemas porvir. Não sei se Vladir tenciona a prosa, a tessitura do conto, notável é que
o poeta já está consolidado pela voz peculiar e personalidade delimitada.
CORPUS IN PROCESS
O
rio não se importa com o sol
na
soleira da porta
Frutos
se escondem nas folhas
perto
do chão
A
lontra, o peixe, a jaguatirica
os
morangos silvestres
perdidos
no orvalho da manhã
o
vôo dos pássaros
me
atam ao canavial, outro rio
Quando
o sol já partiu
frutos
ainda entre samambaias
SÍTIO
Contenção
circular, aliteração intrínseca, um
processo quase mântrico que perpassa toda produção se encadeando onda, vaga,
pendular poética.
Escrevo
versos
com
tinta vermelha
da
cor da carne da tua boca
que
excita
e
incita
Não
cabe no verso
Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).
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