Essa acamada
Mercearia retoma o tema: em meio a fé, a crença e a interferência.
Certa visita,
recebida na última sexta pela manhã, serviu de inspiração para o retorno a esse
assunto.
Como já
explicado nesse trepidante estabelecimento comercial, a palavra “fidus” é o
Latim para o vocábulo “confiança” em Português, também ‘radix’ (‘raiz’) para
outros verbetes como ‘fiel’, ‘fidelidade’, ‘fiar’, ‘fiança’, e por aí vai...
A confiança é um
ente bilateral: é quando o(a) indivíduo(a) percebe que ‘o meio’ não causará mal
algum ou grandes danos ao longo de certo período de tempo. Isso também vale
entre duas pessoas. Saber que ‘o meio’ não é nocivo torna-se componente
fundamental para a composição da confiança.
Esse vocábulo em
Latim, “fidus”, também é pai de uma das palavras mais conhecidas em nosso
idioma: a “fé”.
“Fé” é
exatamente essa confiança que ‘o meio’ não será hostil ou apresentará sérios
contratempos, em especial aqueles que destroem nossa ‘vida emocional’. Quanto
mais percebemos que esse ‘meio’ é pródigo em não interferir sobremaneira em
tudo aquilo que sentimos, mais ‘fé’ temos em nós mesmos, na nossa capacidade de
transformação (‘auto’ e em relação àquilo que nos cerca), em tempos melhores
batendo a nossa porta.
Se esse ‘meio’
for hostil, inóspito, sanguinário, agressivo principalmente nos tipos de
interação, perde-se a ‘fé’. O que entra em seu lugar é um sistema de
pensamentos próximos do delírio e que em certa altura muito auxilia no total e
completo descolamento da realidade.
Quando a ‘fé’
desaparece, passa-se a “a-creditar”, “... dar crédito” a um conjunto de
características que julgamos imprescindíveis para um êxito quase delirante
sobre esse ou aquele ponto.
É batata! Podem
verificar: quanto mais perdemos a ‘fé’,mais nos ligamos às instituições
religiosas com um sistema de crenças que nos confortam diante de interferências
fatais e barreiras intransponíveis.
Quando o sistema
não é religioso, mais entregamos nossas cabeças a “a-creditar”, “dar crédito” a
certos critérios completamente questionáveis, em geral, aplicados sobre “o(a)
outro(a)”: ‘tem de ter isso’, ‘tem de ter aquilo’, ‘tem de fazer isso’, ‘tem de
fazer aquilo’, ‘só serve se for desse jeito e não daquele’, ‘tem de vestir
isso’, ‘tem de dirigir aquilo’, ‘tem de se divertir desse jeito’, ‘tem de
frequentar esses lugares’, ‘tem de se adaptar a essa tertúlia’, tem de beber
isso e não aquilo’, ‘tem de apresentar esse corte de cabelo’, ‘tem de se
comportar desse jeito’...
... enfim! Nem seria
necessário dizer que o ‘ser humano’, sua composição e sentimentos, é a última
coisa que vale na equação, sem contar que essa perturbada abordagem é
igualmente pródiga na produção do que há de mais tépido sobre a face da Terra.
Muito simples: é
roubada das pessoas a possibilidade de serem o que são, apenas, com toda a
riqueza de fertilidade quanto à origem e itinerário que as trouxeram até aqui.
O
não-entendimento de vários mecanismos físicos, psicológicos e sociais faz com
que vários lados se degladiem: “... o meu vale mais que o seu!” e o pau começa
a comer. Não há a menor temperança e/ou paciência para se entender que seus
componentes não precisam, necessariamente, ‘ser comprados’, mas podem,
perfeitamente, ser conhecidos do(a) querido(a) freguês(a).
Com esse conhecimento
em curso, surge a possibilidade do convívio e, fundamentalmente, a de se
encantar com aquele(a) ‘que não sou eu’. Do jeito que ele(a) é! É aí que está a
riqueza da coisa. Não se trata de “adaptar” o(a) outro(a) ao meu modo, ou
àquilo que penso ser meu modo (um troço perigosíssimo!), mas de justapor uma
existência à minha.
Saiu disso,
podem carimbar: é tentativa de ‘colonização’, de ‘colonizar o(a) outro(a)’.
São inúmeros os
componentes quanto ao paladar e ‘inclinações’, esmiuçados de forma brilhante por Immanuel Kant (22 de abril
de 1724, em Königsberg,
Alemanha - 12 de fevereiro de 1804, em Königsberg,
Alemanha) no seu fundamental “A Metafísica dos Costumes”. Conhecê-los evitaria inúmeros
atropelamentos brutais (como acontece nos dias de hoje) e muito ajudaria no
entendimento ‘do processo’ que fez alguém ‘gostar mais disso do que aquilo’.
Esse
entendimento é necessário para que o convívio não se torne nem arte, nem
ofício, mas simplesmente um convívio. Um convívio que pode se revelar
surpreendentemente encantador: entre os vários desdobramentos, amizades que
duram décadas e outras que acabam até em casamento.
O que
escapou no “A Metafísica...”, visto que a ciência neurológica e psiquiátrica
era bem menos desenvolvida do que em nossos dias, foi elencar o mau
funcionamento do cérebro como cenário devido para que se desenvolvesse todo o
esquadrinhamento em torno das inclinações. Bom... nada, no fundo, no fundo, é
lá muito perfeito. Porque há de se levar em consideração que um sujeito como
Nero não gozava do melhor de seu estado enquanto imperador romano e um cineasta
como François Truffaut (6 de fevereiro de 1932, em Paris, França - 21
de outubro de 1984, em Neuilly-sur-Seine, França) não praticou qualquer denúncia vazia em seu quase derradeiro “La Femme
d’à Cotè” (“A Mulher ao Lado”).
Em qualquer
ponto da história, sempre fomos ladeados por pessoas que não tinham grande perfeição
no pleno funcionamento de suas faculdades mentais.
É
exatamente esse o ponto onde o “fidus” (a “fé”) dá lugar ao “crédito” (o
‘a-creditar, o ‘dar crédito’) a sistemas de crenças que, muitas vezes, estão
completamente descoladas do mundo real e só existem na cabeça de quem as adota.
Sinal
inequívoco de que algumas, ou várias, coisas não andam bem.
Uma vez
esse sistema de crenças em curso, o inferno da interferência. O(A) querido(a)
freguês(a) não valeria ‘pelo que é’, mas pelo quanto se permite a aceitar o que
lhe é determinado. Mecânica simples de um convivío que se revelará abusivo em
certo ponto pelas mãos da intromissão.
Em algum
momento, a coisa se torna uma queda-de-braço: o que advém disso é o discurso da
‘vendetta’ onde o importante é a ‘revanche’. Triste fim de humanidade. Todas as
coisas boas e positivas são rebaixadas a uma ‘raia-miúda’, classificações em
tábula-rasa... e tome mais agressividade. Além da pergunta “onde é que isso
tudo começa?!”, mais relevante é a indagação “quando é que isso tudo
cessará?!”. A ausência de resposta põe qualquer um ‘a fuso’.
O que entra
no lugar é esse discurso comum nas ruas e redes sociais sob roupas quase
inofensivas e supostamente ‘bem-humoradas’ do “... sou mais eu...”, “... eu sou
assim e foda-se!”, “... superação...”, “... quando eu brilho...”, “... sambar
na cara da sociedade...”, “... você vai ver...”, “... cada um cuida de si...”,
“... eu pertenço a mim mesmo(a)...”, “... agora sou eu quem mando...”, todas
vindas de uma mesma cepa: o ódio que protagonizou o gesto do opressor é o mesmo
que move a vingança do oprimido.
No final
das contas, é sempre o ódio. Cansativo, isso. Um cenário eterno de despedida do
“fidus” para a perenidade da crença.
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Bom, os
temas que nortearam essa Mercearia nos últimos meses chegaram ao fim. No início
desse mês, esse merceeiro teve de encarar mais uma ocorrência profundamente
desagradável dentro de seu fôro privado, mais uma somada a tantas outras que
povoaram os últimos seis meses. Assim como em alguns momentos da vida, nem
sempre há algo que pudesse ser feito diante de comportamentos que beiram ao
bizarro. Após quase 30 dias, pouco resta, exceto se concentrar numa Mercearia
que enfrentará, nos próximos quatro meses, devida reforma e reestruturação. Há
trabalho pela frente. Boa parte de amigos(as)-irmãos(ãs), pessoas que também
foram modelos a esse modesto merceeiro, desapareceram em anos recentes:
todos(as) em torno da casa dos 50. Assim, é possível se aperceber de que não há
muito tempo sobrando para cafés pequenos, requentados e tremendamente amargos. Qualquer
pessoa, de qualquer nível social, gênero, inclinação, itinerário, origem,
deficiência, composição e constituição terá portas abertas no desejo de
participar da vida desse modesto comerciante. Qualquer pessoa, em qualquer
momento, que queira entrar e/ou retornar será sempre bem-vinda. Contudo, apenas
roga, no caso desse desejo se cristalizar, por favor e gentileza, que venha
e/ou retorne em devida transformação. Uma transformação para melhor. Uma
transformação imersa numa condução de si mesmo(a) minimamente amorosa. Uma
condução pelo Amor, não por uma construção gigantesca de tralha no lugar Dele. E
esse assistido merceeiro levará às Letras seu posto avançado, o cinema, semana
que vem, a primeira do mês de Abril. Sempre a eterna gratidão e agradecimentos
pela paciência e carinho da atenção da leitura.
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
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