Friday, March 30, 2018

TODAS AS ESTRELAS DA BAIXA FIDELIDADE (por Marcelo Rayel Correggiari)




Essa acamada Mercearia retoma o tema: em meio a fé, a crença e a interferência.
Certa visita, recebida na última sexta pela manhã, serviu de inspiração para o retorno a esse assunto.
Como já explicado nesse trepidante estabelecimento comercial, a palavra “fidus” é o Latim para o vocábulo “confiança” em Português, também ‘radix’ (‘raiz’) para outros verbetes como ‘fiel’, ‘fidelidade’, ‘fiar’, ‘fiança’, e por aí vai...
A confiança é um ente bilateral: é quando o(a) indivíduo(a) percebe que ‘o meio’ não causará mal algum ou grandes danos ao longo de certo período de tempo. Isso também vale entre duas pessoas. Saber que ‘o meio’ não é nocivo torna-se componente fundamental para a composição da confiança.
Esse vocábulo em Latim, “fidus”, também é pai de uma das palavras mais conhecidas em nosso idioma: a “fé”.
“Fé” é exatamente essa confiança que ‘o meio’ não será hostil ou apresentará sérios contratempos, em especial aqueles que destroem nossa ‘vida emocional’. Quanto mais percebemos que esse ‘meio’ é pródigo em não interferir sobremaneira em tudo aquilo que sentimos, mais ‘fé’ temos em nós mesmos, na nossa capacidade de transformação (‘auto’ e em relação àquilo que nos cerca), em tempos melhores batendo a nossa porta.
Se esse ‘meio’ for hostil, inóspito, sanguinário, agressivo principalmente nos tipos de interação, perde-se a ‘fé’. O que entra em seu lugar é um sistema de pensamentos próximos do delírio e que em certa altura muito auxilia no total e completo descolamento da realidade.
Quando a ‘fé’ desaparece, passa-se a “a-creditar”, “... dar crédito” a um conjunto de características que julgamos imprescindíveis para um êxito quase delirante sobre esse ou aquele ponto.
É batata! Podem verificar: quanto mais perdemos a ‘fé’,mais nos ligamos às instituições religiosas com um sistema de crenças que nos confortam diante de interferências fatais e barreiras intransponíveis.
Quando o sistema não é religioso, mais entregamos nossas cabeças a “a-creditar”, “dar crédito” a certos critérios completamente questionáveis, em geral, aplicados sobre “o(a) outro(a)”: ‘tem de ter isso’, ‘tem de ter aquilo’, ‘tem de fazer isso’, ‘tem de fazer aquilo’, ‘só serve se for desse jeito e não daquele’, ‘tem de vestir isso’, ‘tem de dirigir aquilo’, ‘tem de se divertir desse jeito’, ‘tem de frequentar esses lugares’, ‘tem de se adaptar a essa tertúlia’, tem de beber isso e não aquilo’, ‘tem de apresentar esse corte de cabelo’, ‘tem de se comportar desse jeito’...
... enfim! Nem seria necessário dizer que o ‘ser humano’, sua composição e sentimentos, é a última coisa que vale na equação, sem contar que essa perturbada abordagem é igualmente pródiga na produção do que há de mais tépido sobre a face da Terra.
Muito simples: é roubada das pessoas a possibilidade de serem o que são, apenas, com toda a riqueza de fertilidade quanto à origem e itinerário que as trouxeram até aqui.
O não-entendimento de vários mecanismos físicos, psicológicos e sociais faz com que vários lados se degladiem: “... o meu vale mais que o seu!” e o pau começa a comer. Não há a menor temperança e/ou paciência para se entender que seus componentes não precisam, necessariamente, ‘ser comprados’, mas podem, perfeitamente, ser conhecidos do(a) querido(a) freguês(a).
Com esse conhecimento em curso, surge a possibilidade do convívio e, fundamentalmente, a de se encantar com aquele(a) ‘que não sou eu’. Do jeito que ele(a) é! É aí que está a riqueza da coisa. Não se trata de “adaptar” o(a) outro(a) ao meu modo, ou àquilo que penso ser meu modo (um troço perigosíssimo!), mas de justapor uma existência à minha.
Saiu disso, podem carimbar: é tentativa de ‘colonização’, de ‘colonizar o(a) outro(a)’.
São inúmeros os componentes quanto ao paladar e ‘inclinações’, esmiuçados de forma brilhante por Immanuel Kant (22 de abril de 1724, em Königsberg, Alemanha - 12 de fevereiro de 1804, em Königsberg, Alemanha) no seu fundamental “A Metafísica dos Costumes”. Conhecê-los evitaria inúmeros atropelamentos brutais (como acontece nos dias de hoje) e muito ajudaria no entendimento ‘do processo’ que fez alguém ‘gostar mais disso do que aquilo’.
Esse entendimento é necessário para que o convívio não se torne nem arte, nem ofício, mas simplesmente um convívio. Um convívio que pode se revelar surpreendentemente encantador: entre os vários desdobramentos, amizades que duram décadas e outras que acabam até em casamento.
O que escapou no “A Metafísica...”, visto que a ciência neurológica e psiquiátrica era bem menos desenvolvida do que em nossos dias, foi elencar o mau funcionamento do cérebro como cenário devido para que se desenvolvesse todo o esquadrinhamento em torno das inclinações. Bom... nada, no fundo, no fundo, é lá muito perfeito. Porque há de se levar em consideração que um sujeito como Nero não gozava do melhor de seu estado enquanto imperador romano e um cineasta como François Truffaut (6 de fevereiro de 1932, em Paris, França - 21 de outubro de 1984, em Neuilly-sur-Seine, França) não praticou qualquer denúncia vazia em seu quase derradeiro “La Femme d’à Cotè” (“A Mulher ao Lado”).
Em qualquer ponto da história, sempre fomos ladeados por pessoas que não tinham grande perfeição no pleno funcionamento de suas faculdades mentais.
É exatamente esse o ponto onde o “fidus” (a “fé”) dá lugar ao “crédito” (o ‘a-creditar, o ‘dar crédito’) a sistemas de crenças que, muitas vezes, estão completamente descoladas do mundo real e só existem na cabeça de quem as adota.
Sinal inequívoco de que algumas, ou várias, coisas não andam bem.
Uma vez esse sistema de crenças em curso, o inferno da interferência. O(A) querido(a) freguês(a) não valeria ‘pelo que é’, mas pelo quanto se permite a aceitar o que lhe é determinado. Mecânica simples de um convivío que se revelará abusivo em certo ponto pelas mãos da intromissão.
Em algum momento, a coisa se torna uma queda-de-braço: o que advém disso é o discurso da ‘vendetta’ onde o importante é a ‘revanche’. Triste fim de humanidade. Todas as coisas boas e positivas são rebaixadas a uma ‘raia-miúda’, classificações em tábula-rasa... e tome mais agressividade. Além da pergunta “onde é que isso tudo começa?!”, mais relevante é a indagação “quando é que isso tudo cessará?!”. A ausência de resposta põe qualquer um ‘a fuso’.
O que entra no lugar é esse discurso comum nas ruas e redes sociais sob roupas quase inofensivas e supostamente ‘bem-humoradas’ do “... sou mais eu...”, “... eu sou assim e foda-se!”, “... superação...”, “... quando eu brilho...”, “... sambar na cara da sociedade...”, “... você vai ver...”, “... cada um cuida de si...”, “... eu pertenço a mim mesmo(a)...”, “... agora sou eu quem mando...”, todas vindas de uma mesma cepa: o ódio que protagonizou o gesto do opressor é o mesmo que move a vingança do oprimido.
No final das contas, é sempre o ódio. Cansativo, isso. Um cenário eterno de despedida do “fidus” para a perenidade da crença.
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Bom, os temas que nortearam essa Mercearia nos últimos meses chegaram ao fim. No início desse mês, esse merceeiro teve de encarar mais uma ocorrência profundamente desagradável dentro de seu fôro privado, mais uma somada a tantas outras que povoaram os últimos seis meses. Assim como em alguns momentos da vida, nem sempre há algo que pudesse ser feito diante de comportamentos que beiram ao bizarro. Após quase 30 dias, pouco resta, exceto se concentrar numa Mercearia que enfrentará, nos próximos quatro meses, devida reforma e reestruturação. Há trabalho pela frente. Boa parte de amigos(as)-irmãos(ãs), pessoas que também foram modelos a esse modesto merceeiro, desapareceram em anos recentes: todos(as) em torno da casa dos 50. Assim, é possível se aperceber de que não há muito tempo sobrando para cafés pequenos, requentados e tremendamente amargos. Qualquer pessoa, de qualquer nível social, gênero, inclinação, itinerário, origem, deficiência, composição e constituição terá portas abertas no desejo de participar da vida desse modesto comerciante. Qualquer pessoa, em qualquer momento, que queira entrar e/ou retornar será sempre bem-vinda. Contudo, apenas roga, no caso desse desejo se cristalizar, por favor e gentileza, que venha e/ou retorne em devida transformação. Uma transformação para melhor. Uma transformação imersa numa condução de si mesmo(a) minimamente amorosa. Uma condução pelo Amor, não por uma construção gigantesca de tralha no lugar Dele. E esse assistido merceeiro levará às Letras seu posto avançado, o cinema, semana que vem, a primeira do mês de Abril. Sempre a eterna gratidão e agradecimentos pela paciência e carinho da atenção da leitura.


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.

É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


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