A gripe, sobrinha da dor de garganta e neta da alergia respiratória, me fez tomar uma decisão: colocar meu corpo à venda neste feriado de Corpus Christi. Não me entenda mal. Jamais ousaria me comparar ao corpo mais famoso neste dia santo. É mais senso de oportunidade, de acompanhar tendências e comportamentos.
Nada de crise, é trabalho. Apenas quero aproveitar o momento para fortalecer a estratégia do negócio. Até porque o Corpus eterno opera milagres e tem índole irrepreensível. O meu corpo, por outro lado, apenas se levanta todos os dias para trabalhar. E vem impregnado de defeitos e vícios.
Antes de discutirmos o preço, acho importante falar sobre o produto. A área é grande, seja na extensão ou na largura do terreno. O metro quadrado já foi 30 quilos maior; em compensação, hoje o solo é mais estável, com alguns desníveis e pedaços de terra fofa, nada que uma reforma - ou repaginada - não seja capaz de dar jeito. A compra é investimento e, claro, exige adaptações ao novo proprietário.
No momento, como expliquei, acontecem problemas pontuais. Há vazamentos, principalmente na região do nariz. A região alagou com a gripe. A boca está sobrecarregada, servindo como respiradouro e também como exaustor. O local é irrigado para evitar a secura e amenizar as dores na região da garganta. O resto dá a impressão de que foi atropelado por uma retroescavadeira, mas - garanto - que é temporário.
Para evitar reclamações por propaganda enganosa, aviso que o corpo é um doce. A diabetes é o vizinho silencioso há seis anos, que exige gastos extras de manutenção todos os meses. Fique tranquilo que cabe no seu orçamento.
O terreno foi arado por anos e está repleto de plantações de refrigerantes, chocolates, bolachas e outras espécies de verduras e legumes da modernidade.
Se você desbastar o mato, vai encontrar no monte abdominal um pouco de cebola, tomate e batatas, cultivados com aquela carne moída, aquela linguiça calabresa em porção, aquela pizza portuguesa, às vezes meia cinco queijos. Se você for religioso (não praticante serve!), saiba que encontrará pães multiplicados, carás, médias, em forma, com ou sem casca. O único senão é que, na maioria das vezes, o pão vem acompanhado de coca-cola, de vez em quando aparece a sofisticação de uma cerveja, um vinho chileno ou um whisky escocês, fruto de doações de parceiros comerciais.
Além disso, o corpo não está em exposição. Falta a ele mobilidade para que se permita uma visita. O interessado não poderá conhecer todo o local, que permanece deitado ou sentado. Os fundos, por exemplo, dependem da confiança da relação entre vendedor e comprador, caso o negócio ocorra. Diante das circunstâncias, não existe a chance de test drive.
Outro ponto para evitar decepções: o corpo não é pronta entrega. A administradora do lugar, Beth Soares, tem a lei do usucapião ao dispor dela. Ela promete que vai colaborar na melhoria das condições do produto, mas a entrega só será feita após a separação da alma. Não dá para entregá-lo em vida, mesmo que a gripe o faça parecer um moribundo, com algumas frescuras de enfeite.
Se você ainda estiver interessado, saiba que não há chance de pechincha. A crise econômica poderia ser a desculpa para segurar o preço, alegando, entre outras coisas, lucro mínimo e juros baixos. O fato é que este corpo, com 41 anos de fabricação, é único dono, com as peças originais e selo de garantia renovado ano a ano pelos melhores institutos dos quais você nunca ouviu falar.
Não se sinta no escuro. Fotos deste corpo podem ser vistas na Internet. Tudo de família, dentro da moral e dos bons costumes. Nada mais atual do que compras online. A descrição está aqui, lida por você via computador ou celular.
As imagens estão disponíveis, em vários ângulos, no Facebook. Como o produto é gourmet, para um público selecionado como você, não utilizamos Instagram, Snap Chat, Tinder ou Linkedin. Se a negociação avançar, transfiro mais informações no chat ou a gente se adiciona no WhatsApp.
A promoção é válida até o término do estoque único de vírus da gripe. Aceitamos pagamento à vista, no cartão ou financiamento bancário. Troca com troco ou pagamento em cheques, não. Quase caímos no golpe num caso de virose.
(publicado originalmente em CONVERSAS E DISTRAÇÕES em 26 de Maio de 2016)
Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros)
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.
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