Nunca
escondi minha humilde origem do jardim Casqueiro, e mesmo guardo qualquer
orgulho das referências literárias que trouxe de lá. Pra além dos comuns que,
com seu falar próprio, me ajudaram a formar essa linguagem que venho
paulatinamente impondo à Literatura contemporânea, mais me valeu foi o que
aprendi dos tipos folclóricos do bairro.
Havia
diversos: a Velha do Papo, o bêbado Corta-Essa, Bidu, João
Vê-Direito-Essasparte, Kirias, Reginaldo Bichinha, Mica Doido. Cada um dessa
fauna trazia uma peculiaridade, um mote, um aforismo que me marcou de forma
definitiva e, se colho hoje os louros da glória, não é senão por uma
apropriação cultural indevida.
Com
Pardal foi diferente. Nunca repeti sua fala, e me hão de entender. Pardal, mais
velho que eu, estacionou na idade mental de um ano e o único que falava era:
"Piu
Piu Piu. Eu eu eu..."
Quem
tenha conhecido o velho jardim Casqueiro há de lembrar dessa figura querida.
Passava o dia na Padaria Brasil, os bêbados cuidavam daquela criança grande, o
dono da padaria o alimentava. Pardal sentava e ficava recitando, bem alto, os
dois únicos versos que seu singelo ano de cultura ensinara:
"Piu
Piu Piu
Eu
eu eu
Ueu
eu eu eu
Piu
Piu Piu...."
Às
vezes se masturbava na calçada. Perto do clímax a declamação se tornava mais
plangente:
"Ueeeee
ueeeeeu eeuuuu
U
Piu Piu Piiiiiu!"
Não,
eu jamais utilizei o bordão do Pardal em qualquer dos personagens dos muitos
livros com que logrei eternizar o Jardim Casqueiro, esta Macondo lusófona, na
calçada da literatura universal. Mas sou obrigado a declarar de público a
referência que esta figura representa. Dos poetas contemporâneos Pardal, com
seu "piupiupiu eueueueueueueu" é o que foi mais longe. Os demais
ainda não alcançaram as sutilezas do "Piu". Nem eu, confesso.
Triste
geração de poetas que só falam eueueueueueueu.
Germano Quaresma, ou Manuel Herzog,
nasceu em Santos, São Paulo, em 1964.
Criado na cidade de Cubatão,
trabalhou na indústria química
e formou-se em Direito.
Estreou na literatura em 1987
com os poemas de "Brincadeira Surrealista".
É autor dos romances
"A Jaca do Cemitério É Mais Doce" (2017),
"Dec(ad)ência" (2016), "O Evangelista" (2015)
e "Companhia Brasileira de Alquimia" (2013),
além dos livros de poemas
"6 Sonetos D’amor em Branco e Preto" (2016)
e "A Comédia de Alissia Bloom" (2014)
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