por Francisco Russo
para AdoroCinema
Você com certeza conhece a frase "o Brasil é um país sem memória", legado de décadas de incompetência administrativa na manutenção de documentos e construções. Com a velocidade dos dias atuais e o avanço da tecnologia, pode-se dizer que tal conceito ficou ainda mais amplo com a inevitável tranferência de CDs, DVD e outros objetos em matéria digital. Consciente desta época em que o novo é glorificado e o velho deixado de lado por muitos, o diretor Kleber Mendonça Filho fez deste o mote principal de seu novo filme: Aquarius, selecionado para a mostra competitiva do Festival de Cannes.
O confronto entre o velho e o novo surge na figura de Clara, personagem entregue a Sonia Braga. É ela a dona de um apartamento cobiçado por uma imobiliária, que já adquiriu todos os demais imóveis do prédio. O objetivo é pôr tudo abaixo e construir um prédio novo, mas Clara se recusa a vendê-lo. É seu lar há décadas, foi onde criou seus filhos e, ainda hoje, vive bem. Daí surge o conflito, que resulta em ameaças veladas e provocações.
Mais do que simplesmente criar opostos, Aquarius quer tratar do valor da memória através da compreensão do que é antigo, sem que seja necessário descartar o novo. Tal imagem está representada na própria protagonista, escolhida a dedo. Estrela maior do cinema brasileiro nos anos 1980, Sonia Braga andava meio sumida. Seu resgate é não apenas uma imensa homenagem a tudo que fez pelo cinema nacional como também uma quebra de expectativa em relação ao que representou como símbolo sexual, potencializando o próprio conceito explorado pelo longa-metragem. Só que Sonia não se contenta apenas com este simbolismo automático e entrega uma das maiores atuações de sua carreira, fruto de uma complexidade emocional e ética impressionantes.
O público tem a chance de conhecer Clara ainda nos anos 1980, no flashback que abre o filme. A partir de suas origens, é construída a personalidade desta mulher independente e decidida, apaixonada por música e liberal, afetuosa e que mantém o desejo carnal em dia. Entretanto, é através das relações que Clara mantém com os demais personagens que se entende melhor o carinho e o respeito com os quais trata e exige ser tratada. Porque ela não é mulher de engolir desaforo, muito pelo contrário, e deixa isto bem nítido. Trata-se de uma personagem fascinante que, além de possibilitar a explosão do talento de Sonia, ganha relevância ainda maior por ser um papel feminino tão intenso, de alguém que não depende da ajuda de homens para seguir em frente.
Só que Aquarius não se resume apenas ao talento de Sonia e à valorização da memória. Assim como fez em O Som ao Redor, o diretor espalha vários comentários e situações ácidas que tão bem representam a hipocrisia existente na convivência diária entre classes sociais no país. O próprio conceito de ética é também trabalhado em relação ao mercado, pela forma como os representantes da construtora se comportam a partir das seguidas recusas de Clara. Há ainda o olhar absolutamente natural sobre a sexualidade, como algo decorrente da existência humana. Inclusive, chama a atenção o contraponto criado da primeira memória sexual surgir justamente durante uma pacata reunião familiar.
Com um olhar extremamente afetuoso em Clara e a partir dela, Aquarius ainda brilha pela trilha sonora, repleta de referências emocionais e históricas ao que é ser brasileiro. A fotografia solar também merece destaque, ressaltando as várias fases e a beleza da praia de Boa Viagem, e também a amplitude do apartamento em que Clara vive. Além disto, há certos enquadramentos que impressionam, seja por criar falsas espectativas sobre o que está por vir ou simplesmente pela sequência de eventos tão díspares exibidos com um mero movimento de câmera.
Lidando com a linha tênue entre a nostalgia e a memória, Aquarius é um belíssimo estudo sobre o Brasil atual e suas idiossincrasias, apontadas com olhar clínico e sem lantejoulas pelo diretor, muitas vezes de forma bastante política. O melhor exemplo é a discussão ocorrida sobre a falta de caráter humano, de uma importância abissal para a própria vida e que poderia ser facilmente encaixada em vários outros absurdos cotidianos do nosso país. Um filme marcante e necessário, especialmente para uma época sombria de relações humanas tão degradadas.
DO QUE SÃO FEITAS AS MEMÓRIAS
por Marcelo Hessel
para Omelete
Especialidade de Kleber Mendonça Filho nos seus curtas e no seu primeiro longa, O Som ao Redor (2012), o cinema de tensões e de suspense crescente cede um pouco o lugar em Aquarius à busca pela empatia. Essa percepção de que o filme - que desde sua primeira exibição pública em Cannes não foge à sua vocação política - só está atrás de enfrentamentos é uma noção equivocada que não se consuma no filme em si.
A trama segue Clara (Sônia Braga), jornalista e crítica de música, viúva, última moradora do Aquarius, edifício antigo na valorizada orla da praia da Boa Viagem, Recife. Personificada no engenheiro Diego (Humberto Carrão), que quer derrubar o Aquarius, a especulação imobiliária é o pesadelo que assombra os dias e as solitárias noites de Clara. KMF esboça aqui um suspense de mal estar social parecido com o de O Som ao Redor, também próximo do terror, simbolizado no véu do arranha-céu vizinho que avança sobre a janela de Clara como um fantasma de fato.
O diretor se especializa nesse tipo de tensão porque sabe ditar muito bem a disrupção, o compasso dos cortes, o ritmo que passa da calmaria ao incômodo e o choque. Em Aquarius, sempre que um plano se interrompe de repente, no latido de um cachorro, no salto de um gato, é como se a câmera se assustasse com o ruído, e isso nos deixa num estado permanente de pavor, sempre à espera do pior. Ver dois carros em marcha a ré numa mesma garagem (que KMF filma em plano fechado para nos deslocar espacialmente e aumentar o incômodo) se transforma, de repente, numa espécie de colisão psicossomática.
Embora não negue o confronto, porém, Aquarius está atrás de outra coisa. Por ser uma história de resistência contra o medo, não faz sentido alimentar até o fim nos próprios protagonistas de Aquarius esse sentimento que KMF instilava tão bem por todo O Som ao Redor. E aos poucos o filme começa a se desenhar de fato como um manifesto pelo afeto. Se parecia um pouco constrangida no início, a festa de aniversário nos anos 1980 que abre o filme, por exemplo, logo se transforma num dos muitos alicerces da empatia que o filme se esmera em levantar. Aquarius se parece um pouco com O Franco Atirador (1978) nesse sentido: a atenção estranhamente dedicada a uma longa cena de abertura deslocada da trama, uma festa em família, para fornecer a base emocional da história de fato que vem a seguir.
Estabelecer esses laços do zero é importante em Aquarius porque, embora o filme trate da preservação da memória, existe uma preocupação de não fazer da memória algo estanque, saudosista. KMF não está interessado em nostalgia, em resumo, como a própria Clara deixa claro, impaciente, quando é entrevistada sobre vinis e mp3. Como falar de memória sem o saudosismo? Mostrando a memória no agora, em construção. Então, seus momentos que teoricamente seriam tempos fracos (o aniversário no início, outro aniversário na laje, os passeios com o sobrinho, a tarde olhando fotos com a família, momentos que não fazem mover a trama principal) são aqueles responsáveis por dar substância a essa memória.
Embora o diretor tenha um referencial próprio, mais amplo, talvez por conta do seu trabalho prévio como crítico de cinema, que vai de John Carpenter a Elia Suleiman, Aquarius se aproxima do tipo de dramaturgia que se tornou a vanguarda oficial no Brasil nos anos 2000, em filmes como No Meu Lugar (2009) e no cinema de Beto Brant e Karim Aïnouz, preocupados com os tempos fracos como consolidadores da narrativa. Há as variações. Se em Cão sem Dono (2007) de Brant as conversas do protagonista homem no bar, na rua, ajudam a dar forma e entendimento ao seu drama pessoal, em Aquarius (um filme que também valoriza a solidão como um tempo de autodescoberta) o ponto de vista feminino acaba inevitavelmente se confundindo com um senso de maternidade e família: a memória de Clara se constrói não sozinha mas em torno dos seus.
E acaba sendo uma coisa muito bonita em Aquarius quando a tendência de KMF ao estranhamento (planos e contraplanos que vão aumentando com zoom-ins, como se silenciosamente fossem estabelecendo e alimentando um atrito) se revela na verdade uma procura pelo entendimento. Isso fica mais evidente na cena, na sala do apartamento, em que Clara fica observando, encantada, a namorada do sobrinho. O que ela vê na menina? No que pensa? O filme não verbaliza, nem precisa, porque entendemos que Clara está gravando na mente aquele momento, que automaticamente se torna mais uma memória para protegê-la do que é mau ou incerto.
A memória, no mais, traz consigo o bom e o ruim, indiscriminadamente. Aquarius não coloca seus personagens numa bolha de segurança (embora essa seja a função do apartamento de Clara), nem se esquiva do mal estar. Há fantasmas sociais que realmente ganham corpo em cena (o maior golpe de Diego contra Clara não seria outro senão atacar sua culpa burguesa de patroa aposentada) e, se KMF comete um exagero, é o da tentação de fazer do filme uma cornucópia das nossas mazelas: a menção às ligações religiosas de Diego, a cena dos crentes, a insinuação de um envolvimento político de um filho de Clara, tudo isso fica meio perdido dentro de Aquarius, a título de "painel completo do Brasil".
São arestas de um filme no geral muito bem acabado, que foi pensado e feito por um diretor ciente não só do que queria dizer mas principalmente consciente da presença absolutamente magnética de Sônia Braga, que entra em cena pela primeira vez com uns bons 20 minutos de filme, vestida com uma saída de praia branca, da esquerda para a direita, tocada pelo vento, diante da janela do apartamento, carregando consigo toda uma história do cinema brasileiro - uma memória não dita que, mesmo assim, transpira neste filme onde as memórias ganham corpo e alma.
AQUARIUS
(2016, minutos)
Roteiro e Direção
Kleber Mendonça Filho
Elenco
Sonia Braga
Maeve Jinkins
Humberto Carrão
Julia Barnat
em cartaz nas Redes Roxy e Cinespaço
DO QUE SÃO FEITAS AS MEMÓRIAS
por Marcelo Hessel
para Omelete
Especialidade de Kleber Mendonça Filho nos seus curtas e no seu primeiro longa, O Som ao Redor (2012), o cinema de tensões e de suspense crescente cede um pouco o lugar em Aquarius à busca pela empatia. Essa percepção de que o filme - que desde sua primeira exibição pública em Cannes não foge à sua vocação política - só está atrás de enfrentamentos é uma noção equivocada que não se consuma no filme em si.
A trama segue Clara (Sônia Braga), jornalista e crítica de música, viúva, última moradora do Aquarius, edifício antigo na valorizada orla da praia da Boa Viagem, Recife. Personificada no engenheiro Diego (Humberto Carrão), que quer derrubar o Aquarius, a especulação imobiliária é o pesadelo que assombra os dias e as solitárias noites de Clara. KMF esboça aqui um suspense de mal estar social parecido com o de O Som ao Redor, também próximo do terror, simbolizado no véu do arranha-céu vizinho que avança sobre a janela de Clara como um fantasma de fato.
O diretor se especializa nesse tipo de tensão porque sabe ditar muito bem a disrupção, o compasso dos cortes, o ritmo que passa da calmaria ao incômodo e o choque. Em Aquarius, sempre que um plano se interrompe de repente, no latido de um cachorro, no salto de um gato, é como se a câmera se assustasse com o ruído, e isso nos deixa num estado permanente de pavor, sempre à espera do pior. Ver dois carros em marcha a ré numa mesma garagem (que KMF filma em plano fechado para nos deslocar espacialmente e aumentar o incômodo) se transforma, de repente, numa espécie de colisão psicossomática.
Embora não negue o confronto, porém, Aquarius está atrás de outra coisa. Por ser uma história de resistência contra o medo, não faz sentido alimentar até o fim nos próprios protagonistas de Aquarius esse sentimento que KMF instilava tão bem por todo O Som ao Redor. E aos poucos o filme começa a se desenhar de fato como um manifesto pelo afeto. Se parecia um pouco constrangida no início, a festa de aniversário nos anos 1980 que abre o filme, por exemplo, logo se transforma num dos muitos alicerces da empatia que o filme se esmera em levantar. Aquarius se parece um pouco com O Franco Atirador (1978) nesse sentido: a atenção estranhamente dedicada a uma longa cena de abertura deslocada da trama, uma festa em família, para fornecer a base emocional da história de fato que vem a seguir.
Estabelecer esses laços do zero é importante em Aquarius porque, embora o filme trate da preservação da memória, existe uma preocupação de não fazer da memória algo estanque, saudosista. KMF não está interessado em nostalgia, em resumo, como a própria Clara deixa claro, impaciente, quando é entrevistada sobre vinis e mp3. Como falar de memória sem o saudosismo? Mostrando a memória no agora, em construção. Então, seus momentos que teoricamente seriam tempos fracos (o aniversário no início, outro aniversário na laje, os passeios com o sobrinho, a tarde olhando fotos com a família, momentos que não fazem mover a trama principal) são aqueles responsáveis por dar substância a essa memória.
Embora o diretor tenha um referencial próprio, mais amplo, talvez por conta do seu trabalho prévio como crítico de cinema, que vai de John Carpenter a Elia Suleiman, Aquarius se aproxima do tipo de dramaturgia que se tornou a vanguarda oficial no Brasil nos anos 2000, em filmes como No Meu Lugar (2009) e no cinema de Beto Brant e Karim Aïnouz, preocupados com os tempos fracos como consolidadores da narrativa. Há as variações. Se em Cão sem Dono (2007) de Brant as conversas do protagonista homem no bar, na rua, ajudam a dar forma e entendimento ao seu drama pessoal, em Aquarius (um filme que também valoriza a solidão como um tempo de autodescoberta) o ponto de vista feminino acaba inevitavelmente se confundindo com um senso de maternidade e família: a memória de Clara se constrói não sozinha mas em torno dos seus.
E acaba sendo uma coisa muito bonita em Aquarius quando a tendência de KMF ao estranhamento (planos e contraplanos que vão aumentando com zoom-ins, como se silenciosamente fossem estabelecendo e alimentando um atrito) se revela na verdade uma procura pelo entendimento. Isso fica mais evidente na cena, na sala do apartamento, em que Clara fica observando, encantada, a namorada do sobrinho. O que ela vê na menina? No que pensa? O filme não verbaliza, nem precisa, porque entendemos que Clara está gravando na mente aquele momento, que automaticamente se torna mais uma memória para protegê-la do que é mau ou incerto.
A memória, no mais, traz consigo o bom e o ruim, indiscriminadamente. Aquarius não coloca seus personagens numa bolha de segurança (embora essa seja a função do apartamento de Clara), nem se esquiva do mal estar. Há fantasmas sociais que realmente ganham corpo em cena (o maior golpe de Diego contra Clara não seria outro senão atacar sua culpa burguesa de patroa aposentada) e, se KMF comete um exagero, é o da tentação de fazer do filme uma cornucópia das nossas mazelas: a menção às ligações religiosas de Diego, a cena dos crentes, a insinuação de um envolvimento político de um filho de Clara, tudo isso fica meio perdido dentro de Aquarius, a título de "painel completo do Brasil".
São arestas de um filme no geral muito bem acabado, que foi pensado e feito por um diretor ciente não só do que queria dizer mas principalmente consciente da presença absolutamente magnética de Sônia Braga, que entra em cena pela primeira vez com uns bons 20 minutos de filme, vestida com uma saída de praia branca, da esquerda para a direita, tocada pelo vento, diante da janela do apartamento, carregando consigo toda uma história do cinema brasileiro - uma memória não dita que, mesmo assim, transpira neste filme onde as memórias ganham corpo e alma.
AQUARIUS
(2016, minutos)
Roteiro e Direção
Kleber Mendonça Filho
Elenco
Sonia Braga
Maeve Jinkins
Humberto Carrão
Julia Barnat
em cartaz nas Redes Roxy e Cinespaço
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