Em tempos de crise, é preciso diversificar. Uma Mercearia não pode ficar restrita apenas aos seus secos-e-molhados que, porventura, fazem a cabeça da freguesia.
É preciso diversificar, lidar com itens intangíveis, mas igualmente queridos desse(a) freguês(a). Algo que toque mais a alma para que se acesse a emoção do bolso do(a) cliente.
Ou seja, é possível se aperceber de que não está simples para ninguém...
Comenta-se, dos vários hábitos e passagens folclóricas de Sebastião Rodrigues Maia (nome de batismo do cantor e compositor Tim Maia, Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1942 – Niterói, 15 de março de 1998), que ele faltava a shows. Adquirir entradas para uma de suas exibições era um itinerário pontilhado de fortes emoções. Um terror para os produtores locais de qualquer cidade brasileira.
Corria-se à boca pequena certo insucesso para o cumprimento de compromissos, em especial os que envolviam dinheiro. Se isso era verdadeiro ou não, a força de folclore (como dito há pouco) em torno dele acabou por conferir a essas inverdades um caráter definitivo principalmente a seu sistema de trabalho.
Quando ele comparecia aos próprios shows, o risco permanecia. Grande compositor, letrista e um cantor de mão-cheia, tinha no palco um perfeccionismo que lhe faltava nos assuntos pessoais, particulares e privados. ‘Id est’, as fortes emoções da apresentação não chegar ao fim continuavam.
Em que pese alguns produtores locais sequer saberem ler um ‘mapa de palco’, o público tinha lá suas dúvidas quanto a tamanho esmero. Nem tanto pela qualidade do som para a plateia, mas do som que o músico precisa ouvir durante sua performance.
Esse som ‘voltado para quem está sobre o palco’ é popularmente chamado de ‘”retorno”, a possibilidade do próprio músico ouvir sua própria atuação e corrigir tom, campo harmônico, entre outros detalhes, logo no início do show.
E, aí, sobrava para um técnico de som que fazia parte de sua ‘trupe’, de sua ‘equipe técnica’, de nome Santiago. Tim subia ao palco e o som do “retorno” era muito baixo, ou de baixa qualidade. Ele não pestanejava: “Santiago... Porra, Santiago! Cadê o retorno, Santiago?!”.
“Santiago” e “mãe”... palavras doces...
Bem sabemos que, nos tempos de hoje, talvez nos falte a tal da doçura. Provavelmente mais de cinco bilhões de seres humano na face da Terra confundem gentileza com ‘otarice’: basta o(a) candidato(a) a generoso(a) oferecer dois tostões de um gesto mais caloroso, ou humano, e é escalado(a) para otário(a) no minuto seguinte.
Se imaginarmos a ‘generosidade’ como uma superfície de área onde as pessoas participam de nossas vidas (e vice-versa) no intuito de melhor conhecer quem somos, quais as nossas essências, o ‘cerne’ de nós mesmos, sua simetria (no outro) é deveras importante. Sem ela, não se é possível permitir trocas importantes para a perenidade de qualquer interação.
Nos dias de hoje, infelizmente, “compartilhar” é um botão de ‘posts’ em redes-socais.
E esse espaço que deveria ser o de ‘compartilhamento’ vem sendo degradado a cada dia. Ocupar, e possibilitar ocupação, dessa superfície de área que essa atormentada Mercearia aqui chama de ‘generosidade’ demanda investimento de esforço, disposição, dinheiro (às vezes), tempo cronológico e uma tremenda ‘boa-vontade’.
Bom... já deu para sacar que não ‘rola’, né?!
Do jeito que a necessidade de sobrevivência é imperativa a cada giro dos ponteiros, esqueçam esse negócio de ‘investimento de tempo’. Da boca para fora, “você é meu melhor amigo” quando, na verdade, o que há é um coleguismo, e nada além disso. Porque quando o tempo destinado para o lazer chega, em geral, é ocupado com atividades individualistas que podem ser acompanhadas por pessoas escolhidas muitas vezes por intermédio de um critério macabro.
Operamos dessa maneira, dessa forma. E quando decidimos transformar esse cenário, lá vêm os ‘vivaldinos’ a se locupletarem de nossa nobre atenção dentro dessa ‘generosidade’ e a ‘puxada-de-tapete’ se avizinha.
Caberia aqui o ‘conformismo’?! Se pensarmos que, desde que o mundo é mundo, “... sempre foi assim...”, cabe nos enfurnarmos nesse tipo de constatação e viver a melancolia resultante de tal expediente. “Tá bom?!”. Não! Claro que não está!
A fim de evitarmos a quantidade excessiva de toxidade em tudo, erguemos muros, sistema de defesa. Caso contrário, ninguém aguenta. Contudo, perceba, querido(a) freguês(a), a utilização por parte dessa semi-inepta Mercearia da palavra “investimento”.
Opa! Começamos, assim, a finalizar o texto dessa quinta...!
Ainda está para nascer ser humano que não veja quaisquer interações como uma relação de “investimento” e seu consequente “retorno”. Qualquer pessoa perde o ímpeto quando percebe esforços sem retorno, ou quando ele é muito baixo.
Assim como o Homem é um bicho ‘de crença’ e ‘de justiça’, ele também é um animalzinho de verificar ‘retorno’ nas coisas, ou em tudo aquilo que faz.
As pessoas fazem isso não ‘com maldade’, ou em nome dela, mas para avaliarem se não há algum tipo de abuso na assimetria dessa superfície de área, e em sua devida ocupação, que aqui damos o nome de “generosidade”.
“Compartilhar” ou “dar like” só em botões de ‘posts’ em redes-sociais, não vale! Tem de trazer para perto. Mas... aí... dá trabalho, né?! E se ‘der trabalho’, que se pague um salário, um ganho, uma ‘paga’, não?! Que se tenha um ‘retorno’... não é assim?!
O que seria um dispositivo para nos defendermos dos biltres, acaba se tornando uma prática deletéria. E todas as construções boas acabam tendo o mesmo fim das ruins: indo ralo abaixo.
É compreensível o ser humano se apoiar no incentivo que um ‘retorno’ oferece: dá ânimo, ‘gás’, oxigênio para os dias. Sem o ‘retorno’, tudo se acinzenta, torna-se lúgubre para, mais a frente, se revelar periculoso.
A prática do ‘retorno’ é natural em todo mundo para nos defendermos de um gesto que edificamos contra nós mesmos: o de abusar de nosso livre-arbítrio. O abuso do livre-arbítrio, de desrespeitar regras básicas de uma condução condizente das nossas próprias vidas, violentando nossas essências, nos leva à dor.
Abuse do álcool e encha a cara que logo o fígado lhe dará sinais inequívocos de tal abuso. Abuse de seu joelho e não tardará aquela cirurgia maneiríssima do cruzado anterior entrar porta adentro de seu prontuário médico.
O abuso (do livre-arbítrio) leva à dor, cedo ou tarde. É no ‘retorno’ dos investimentos afetivos que se verifica se esse abuso vem se erguendo, ou não.
Essa Mercearia não desapontará o Dr. Luiz Antônio Cancello, em acidental deslealdade, pelo lançamento, na presença de sacas de feijão e arroz, pacotes de açúcar e garrafas d’água, de edições referentes à “psicologia de almanaque” daquelas bem requentadas. Quanto a isso, ele pode dormir tranquilo. Nesse ínterim, é bom o(a) querido(a) freguês(a) já ir decorando a mais célebre de todas as célebres frase do saudoso Tim Maia: “Ô, Santiago... Porra, Santiago! Cadê o retorno?!”.
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
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