Saturday, April 13, 2019

DAS BIZARRICES E DAS MENTIRAS (por Miriam Leitão)


Publicado em O GLOBO (07/04/2019)


O que é espantoso neste governo é como ele é capaz de perder o próprio tempo e o nosso. Bizarrices, debates ociosos ocupam as horas e consomem energias que deveriam estar dedicadas ao esforço de enfrentar os inúmeros problemas que o país tem. Perder tempo quando se tem tanto o que fazer é ruim. Mas são as mentiras que mais ameaçam. Se a ditadura foi ditadura, se o Hitler era de direita ou esquerda, se é melhor ir aos bancos para saber o número de desempregados em vez de consultar o IBGE, se o diálogo do presidente com os partidos é velha ou nova política. Esses são exemplos de temas pautados por este governo. Parecem só inutilidades, mas são, muitas vezes, mentiras perigosas.

O presidente dizer que não se arrepende de ter feito xixi na cama com cinco anos é bizarro. Quando ele compara esse ato infantil involuntário com a defesa que fez na vida adulta de fechamento do Congresso passa a ser ameaça. Ele nunca soube dar peso às próprias palavras, mas exibir, como presidente, essa desordem no sistema de valores é assustador.

É preciso saber separar. De tudo o que fez, falou e provocou na última semana, a mais perigosa é a revisão do passado. Quem diz que não houve golpe nem ditadura no Brasil não está provocando polêmica, está mentindo. Algumas questões da História comportam interpretações, outras, não. Esta é uma república que já viveu dois graves e longos ciclos autoritários.

Um regime que fechou várias vezes o Congresso, interferiu no Judiciário, suspendeu garantias constitucionais, impôs uma constituição autoritária, cassou, prendeu, torturou, matou e ocultou cadáveres de opositores, proibiu estudante de estudar, suspendeu eleições, censurou a imprensa é uma ditadura. Não cabe relativizar. É fato absoluto. Relativa é a tendência política de cada um. O presidente Bolsonaro gostou do período, acha que foi um bom momento, e que os atos do regime não foram crimes. Cada um é livre para ter a própria opinião. Pode gostar ou não. No caso de um presidente da República, essa preferência tem que pôr em alerta as instituições.

A discussão não é apenas bizantina, não é mais uma esquisitice do governo, nem deve ser vista com a condescendência que se dedica aos loucos. Na quarta-feira, Vélez Rodriguez falou em mudar livros escolares. A ideia de impor aos jovens uma versão mentirosa dos fatos históricos é criminosa e ataca a ordem constitucional. Tratar como sendo mais um sintoma de sandice pode ser o pior risco. A queda do ministro não resolve o problema, porque a ideia pode sobreviver a ele.

A revisão histórica em relação ao nazismo é horripilante, porque é a tentativa de reescrever uma das páginas mais dolorosas do século XX: o holocausto dos judeus na Alemanha de Hitler. Não se brinca com questão de tal gravidade. Relativizar o que houve é o primeiro passo para esquecer o que jamais pode ser esquecido.

Na extraordinária capacidade de o governo nos fazer perder tempo, apesar da agenda lotada de questões urgentes, há uma enorme dose de falta de noção. Dias e dias foram perdidos com ofensas em redes sociais de pai e filhos a potenciais aliados na agenda econômica, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. As lutas travadas entre olavetes e não olavetes, os tuítes mal escritos, insensatos e agressivos dos filhos do presidente, a criação de entidades desconhecidas do mundo real são exemplos do mais puro desperdício de tempo.

O perigo é o país se cansar de tanto assunto sem sentido que o governo traz à tona e deixar de reagir com a veemência necessária àquelas questões que realmente nos ameaçam. Intervir na metodologia do IBGE, reescrever livros de história, deixar a educação à deriva, fazer apologia de crimes políticos passados são riscos graves contra os quais o país precisa se proteger.

Quem foi eleito governa durante o seu mandato, cumpre sua agenda, monta sua aliança, nomeia os ministros, tenta passar no Congresso as medidas que acha relevantes para seu projeto. Esse é o jogo democrático. Quem foi eleito não vira dono do país. As instituições precisam estar atentas aos perigos reais que podem estar atrás de uma frase sem noção, de um ato descabido, uma leviandade, uma mentira que se tenta impor como verdade. A democracia em tempos modernos não tem morte súbita. Morre aos poucos.


Miriam Azevedo de Almeida Leitão nasceu em Caratinga MG no dia 7 de Abril de 1953 e já passou pelas principais redações da Imprensa Brasileira. Atualmente é colunista do jornal O Globo, comentarista do Bom Dia Brasil na TV Globo e apresentadora de um programa com seu nome na GloboNews. Tem diversos livros publicados e uma ficha corrida de excelentes serviços prestados ao Jornalismo.



A SOLIDÃO DO HOMEM FOFO #1 (por Germano Quaresma aka Manoel Herzog)



A SOLIDÃO DO HOMEM FOFO

Capítulo I

No capítulo de hoje Mateos prepara para sua namorada Sâmila, uma pasta al dente com calamares. Vinho tinto com notas de framboesa. De sobremesa, aguardemos. Kleber, o amigo invejoso, o machista retrô, a tudo assiste.

Capítulo II

Mateos descobre a epifania que é o ralador de formaggio Parmigiano. Prenda que lhe regalou, por ocasião do casório, seu amigo Kleber.

Capítulo III

Mateos deliberou, depois de muita convivência com Kleber, tentar ser uma pessoa sensível. Um homem fofo. A despeito de toda a crítica do amigo, que o acusava de aviadamento, fato é que Mateos experimentou delícias a partir da adoção do novo modus operandi. As sensibilidades forçadas que ele simulava o fizeram experimentar sucesso inédito no meio feminino. Era agora considerado um carinha especial, ao contrário do tosco Kleber, cada vez mais desmoralizado no Pattigirl Bar, o café que ambos frequentavam.

Capítulo IV

Sâmila levanta às 06:32h, dois exatos minutos após soar o Concerto Brandemburgo n. 3 no celular, melodia que Mateos escolheu para o despertar do casal. Ela vai ao banheiro, abre a torneira de modo a que o namorado não ouça o jacto de sua micção e, quando volta, tem uma surpresa. Mateos, a calcinha de Sâmila sobre o rosto, repousa em decúbito dorsal, as mãos trançadas sobre o peito, qual um defunto. Em cada narina um tufo de algodão, e um sorriso epifânico nos lábios.

"Morri. De felicidade."

Passado o susto, ela se abre num riso infantil.

"Você é um fofo!"

É preciso negociar muito para que ele a deixe ir trabalhar. A barganha se fecha quando ela promete ir sem calcinha. Mateos exigiu que ela deixasse a peça com ele.

"Pra eu lembrar do seu cheiro o dia todo."

Ai, como ele é fofo.


Acompanhe as emoções de
A SOLIDÃO DO HOMEM FOFO
aqui em LEVA UM CASAQUINHO

Um oferecimento de
EROS FOMENTOS FUNDOS E CAUÇÕES
(capitalização com amor) e
HOTEL FAZENDA LOVE NATURE
(onde a paixão acontece naturalmente).



Germano Quaresma, ou Manoel Herzog,
nasceu em Santos, São Paulo, em 1964.
Criado na cidade de Cubatão,
trabalhou na indústria química
e formou-se em Direito.
Estreou na literatura em 1987
com os poemas de Brincadeira Surrealista.
É autor dos romances
A Jaca do Cemitério É Mais Doce (2017),
Dec(ad)ência (2016), O Evangelista (2015)
Companhia Brasileira de Alquimia (2013),
além dos livros de poemas
6 Sonetos D’amor em Branco e Preto (2016)
A Comédia de Alissia Bloom (2014).
Este é seu próximo trabalho: 



FÁBIO CAMPOS FOI ASSISTIR "UM ATO DE ESPERANÇA" E SAIU ENTUSIASMADO



Um Ato de Esperança parte de uma premissa nada sutil, Adam, um garoto prestes a completar 18 anos, com um problema de saúde, necessita de uma transfusão de sangue, mas, como a família é Testemunha de Jeová, ele a recusa, o que poderá causar sua morte. O hospital, então, solicita à justiça que uma transfusão seja efetuada no paciente mesmo que sem o seu consentimento.

Emma Thompson, numa grande atuação, é a juíza Fiona Maye que fica encarregada do caso justamente no meio de uma crise conjugal. O que deixa o filme bastante interessante é que o roteiro, que é de Ian McEwan, baseado num livro também de sua autoria, carrega a trama com sutilezas. Após seu marido – Stanley Tucci, sempre um ótimo coadjuvante – decide sair de casa, acusando Fiona de não dar a atenção devida ao casamento, ela toma uma decisão inusitada, visitar o paciente no hospital antes de tomar sua decisão, mesmo correndo o risco de autorizar a transfusão tarde demais. Durante essa visita Adam – Fionn Whitehead, de Dunkirk, também ótimo – desenvolve uma imediata conexão com a juíza – chegam a cantar uma musica juntos na cama do hospital – mas, mesmo assim, ele continua recusando a transfusão.




A partir da decisão de Fiona o filme vai ficando mais complexo, não se aprofundando no dilema de respeitar ou não a crença – que já foi explorado diversas vezes no cinema –, mas contrastando a visão do jovem que descobre cada vez mais motivos para viver com a visão conformista de quem já tem uma vida estabelecida há muito tempo e ainda incorporou o viés de juíza, que força uma analise das coisas sempre como certo ou errado, ofuscando justamente as sutilezas.

Ao mesmo tempo em que nos lembramos daquele sentimento delicioso de encontrar alguém que nos motiva a querer mais da vida, a enxergar as coisas com um novo olhar, que descortina novas realidades, temos, do outro lado, o frescor de se sentir novamente uma musa, de inspirar algo melhor em alguém, de ser, literalmente, o motivo de alguém viver. Juntamente com isso vem o conflito entre uma visão jovem e inconsequente, de alguém que finalmente está descobrindo a vida, e uma visão adulta e extremamente atenta às responsabilidades, o que gera os melhores momentos do filme.


Apesar de uma direção competente, a força do filme está nas interpretações e no excelente roteiro que levanta uma serie de discussões secundárias interessantes; quando começamos a ter autonomia de nossas vidas? Como lidar com grandes desilusões? Quando e por que abrir mão de desejos imediatistas em prol de algo maior e mais longevo?

Provavelmente vai ser difícil assistir ao filme no cinema, ele foi lançado em poucas salas e saiu de cartaz rapidamente, mas é um filme muito interessante de ser descoberto quando chegar às plataformas on demand ou mesmo aos canais de cabo convencionais. No mínimo vai render bons questionamentos e, quem sabe, boas discussões.



UM ATO DE ESPERANÇA
(The Children Act 2019)

Diretor
Richard Eyre

Escritor
Ian McEwan
a partir de seu romance 
"A Balada de Adam Henry"

Elenco
Emma Thompson
Fionn Whitehead
Stanley Tucci

Duração
1h 46m



Fábio Campos convive com filmes e música
desde que nasceu, 52 anos atrás.
Seus textos sobre cinema passam ao largo
do vício da objetividade que norteia
a imensa maioria dos resenhistas.
Fábio é colaborador contumaz
de LEVA UM CASAQUINHO.

Thursday, April 11, 2019

EDUARDO CAVALCANTI SAÚDA OS 50 ANOS DE 'ERA UMA VEZ NO OESTE" DE SERGIO LEONE EM PRÓXIMA PARADA







Eduardo Rubi Cavalcanti
é jornalista desde a década de 80.
Trabalhou em A TRIBUNA de Santos
e em outras publicações.
É Mestre em Comunicação Social
pela Universidade Metodista de São Paulo
e leciona Jornalismo na Unisantos,
onde cursou sua graduação.
Publica domingo sim, domingo não,
em A TRIBUNA de Santos,
a página PRÓXIMA PARADA,
que reproduzimos aqui.


A LIBERDADE É AZUL, A IGUALDADE É BRANCA E A QUALIDADE É SECUNDÁRIA (por Marcelo Rayel Correggiari)


Qualidade. Qualidade é um ente objetivo?!
Diz a técnica que ‘sim’. Seria. Há grandes dúvidas? Sim. Como quase tudo ao redor do planeta é subjetivo, ...
Vejam o caso das Letras: típica área onde, bastando alfabetização e algum lustro de certa erudição, o(a) candidato(a) se habilita a dar pitaco.
Assim como no cinema, basta ser um(a) ‘entusiasta do negócio’: professor de língua pátria, língua estrangeira, linguísta, revisor, tradutor... todo mundo pode ser. Basta saber ler.
Basta saber ler?!
Na cara que não! Nos troncos básicos de um bom curso de Letras, a saber, a Linguística e a Literatura, há bastante técnica por trás. Logo, o bom texto, a boa análise estética, o bom encaminhamento de um romance literário, a aplicação de regras consagradas na elaboração de uma didática no ensino de idiomas, a linguística aplicada no trabalho de tradução, tudo isso possui ordenamentos e técnicas tão elaboradas quanto à Engenharia, à ciência médica e jurídica.
Como dizia A Feiticeira, em remoto comercial de televisão, “(...) não é feitiçaria... é tecnologia! (...)”.
#sqn
Para boa parte da população brasileira (que, segundo a deputada federal Tábata Amaral (PDT/SP), é avessa às ‘humanidades’, num show costumeiramente grotesco de desprezo) é ‘hashtag só que não’! O(A) ‘entusiasta’ do jornalismo entra na seara das Letras, o(a) ‘entusiasta’ do cinema entra na seara das Letras, o(a) ‘entusiasta’ da medicina entra na seara das Letras, o(a) ‘entusiasta’ do direito entra na seara das Letras, o(a) ‘entusiasta’ da administração entra na seara das Letras...
... tudo isso sem ter sentado um diazinho sequer numa carteira do referido curso.
Super fácil, caros(as) fregueses(as)! Invertam! Um profissional de Letras fará uma cirurgia cardíaca na pessoa que você mais ama. Um profissional de Letras fará a defesa de uma contenda jurídica que lhe ameaça o patrimônio. Um profissional de Letras acabou de construir um edifício de 40 andares.
Viu como, nas Letras, basta ser alfabetizado?! Não existe ‘exame-de-ordem’, por exemplo. Não existe uma OLB, ou algo semelhante, daquelas que possibilita o(a) sujeito(a) ter uma ‘carteira funcional’ para a prática da escrita de romance literário, ou poesia. Um médico, por exemplo, pode dar aula de linguística... sem problemas! Ninguém ‘pegará no pé’ ou entrará em pânico se o(a) seu/sua filho(a) tem aulas de português com um advogado... sem problemas! Mesmo que o honroso membro da OAB não saiba sequer o que é uma oração subordinada substantiva predicativa do objeto.
“Não precisa!”, quase todo mundo diz.
“Ah! É português... é linguística! É só dar uma aula legal que ‘tá’ tudo certo!”, é o que pensam mais de 70% da população, ...
... incluindo intelectuais e artistas!
Vejam onde fomos parar!
Vai um(a) ‘profissa’ egresso das Letras tirar um CRO, um CREA, um CRM, uma OAB, com o seu bacharelado de Letras e verifiquem se ela(a) não vira piada & ‘meme’ no minuto seguinte?!
O contrário, pode! ‘Tá’ liberado! Já pensaram, exame de ordem, carteira funcional, “ah... quer ser romancista?! Tem a ‘carteirinha’, passou no ‘exame da ordem’?! Poooxa...! Que pena! Não pode escrever romance, esquece poesia, meu anjo! Tem de ter ‘exame da ordem’!”.
As Letras possuem seus ritos, seus regramentos, suas bases de análise, mas a quantidade de ‘entusiastas’ no meio-campo é tão grande que esse papo de ‘reserva de mercado’ soa como se alguém chegasse numa roda de amigos dizendo que nem lua, nem sol giram em torno de alguma porra pendurada no espaço, por aí.
Sabe... papo de maluco?!
Pobre Letras! Pobre Literatura!
A quantidade de orelhudos(as) nessa área chega a ser monumental! Como diz meu amigo Joel ‘Neguinho’: “É a área que mais emprega curioso(a)!”.
Letras é a única área que seu/sua egresso(a) está desautorizado(a) até mesmo de andar na rua e/ou tomar um pingado na padoca mais próxima de sua residência.
Egresso(a) de Letras é desautorizado(a) até de respirar!
Isso produz umas aberrações de doer na alma. Como parte das Letras, a escrita, tem a ver com ‘liberdade de expressão’, não seria oportuno um exame de ordem sob risco de condicionar uma manifestação por escrito a certa burocracia. Isso, certamente, seria visto como um atentado contra a ‘liberdade de expressão’.
Todo mundo 1X0 Letras.
Há também a interferência sobre eventos culturais, literários, economia criativa & os escambau. “O quê?!? Moacir Scliar não pode participar da mesa?!? Onde já se viu!!!”. Em alguns eventos, não todos, o “critério de seleção” mais ou menos recai na condição de “amiguxo(a)” do(a) curador(a) do encontro em questão. Nem fodendo uma mesa de debates sobre Literatura & Letras conter profissionais de Letras “puro-sangue”! Na de administração, administradores. Na de medicina, médicos. Na de Literatura & Letras, até o encanador ‘tá’ bem na fita!
Quem for ‘entusiasmado’ de livro e literatura, a porta ‘tá’ encancarada.
Todo mundo 2X0 Letras.
Mais cinco minutos de leitura e o ‘7X1’ se avizinha.
É uma realidade da vida: vida, essa energia destinada a quem tem muita cara-de-pau e/ou muito dinheiro no bolso. Sob a justificativa de “... lutei muito para estar aqui!”, as piores barbaridades ganham curso... e vulto!
Sabemos, e bem, que em todas as áreas da vida, não são o talento, a competência e muito menos a qualidade que levam alguém a algum lugar. Não, não... não! O que leva alguém a algum lugar é o que chamamos de RP, as Relações Públicas, uma espécie de ‘violinada’ aqui & acolá que ‘dá uma mãozinha’ no caso do trabalho em si possuir alguma graça e/ou reconhecida qualidade.
O ‘pobrema’ é que, se a qualidade fica em segundo plano, tem uma penca de trambolho bem ‘meia-boca’ que garante espaço onde profissionais (como os(as) de Letras) foram excluídos na maior.
Ou seja: se o seu texto possui lá alguma qualidade, tente a ‘violinada’ da RP e esqueça de fazer uma obra bacana, legal: você, de fato, só será visto(a) nos casos de ‘amiguxisse’ com o(a) curador(a).
Então, não é Literatura! É lobby! Não é conteúdo! É marketing! Não é Arte! É ‘social club’!
Qual a merda disso tudo?! Quem, porventura, está começando ou tem algo novo para mostrar ao público, tem de ‘pagar pedágio’: certamente não será lembrado(a) quanto à possibilidade de comunicação da novidade se “... não pagar o preço”. “Descamisado(a), você, meu anjo?! Fooooda-se!!! Nem te conheço!”. “Praticaste a ‘violinada’ que eu gosto?! Não?!? Fooooda-se!!! Vai ‘pra’ lá...”.
Certamente, aquela generosidade dos anos 1950 aos 1970 sumiu de vez. Nem perca seu tempo! ‘Violinada’ primeiro, depois “... vou pensar no seu caso”, com boa chance de tudo ficar como sempre vem sendo. Se você tem coisa legal para pôr na praça, “... xiiiiiiiii !!!”: vais chupar o dedo.
Esse merceeiro não sabe quanto mais de vida tem pela frente. Assim, se a eventualidade de conselhos aos mais jovens me for favorável, aqui vão alguns deles:
a. Trepem muito! Não percam seu tempo para mesas & eventos literários que, repetindo o dizer do querido amigo Joel ‘Neguinho’: “É a área que mais emprega curioso”. A não ser que vocês sejam desprovidos(as) de quaisquer preconceitos contra ‘entusiastas’. Aí... tudo bem. Caso contrário, não percam seus preciosíssimos tempos para deixarem de dar uma bela de uma foda;
b.   No caso de enveredarem para a Literatura, relaxem! O texto pode ser uma belíssima de uma merda. Nem esquentem a cabeça em tentar diminuir, ou melhorar, essa merda que vocês escreveram. O importante são duas coisas: honrar bem uma excelente equipe de marketing, e ter dinheiro a rodo para ‘pagar os pedágios’. Um formidável time de relações públicas, devidamente azeitado, é o bastante para se conseguir o Nobel de Literatura (ou afins) mesmo em detrimento daquela bosta que coincidentemente recebeu o nome de ‘texto’.
Caros jovens: o mundo sempre será dos(as) espertalhões(onas)! Não é qualidade do que se faz, mas como você ‘se mostra’ interessante no mercado de compras & vendas.
Ah! Foda-se a Literatura! Não tem a menor importância, esse troço...
E, por favor, em caso de dúvida, ocupem seus valiosos tempos com uma bela de uma trepada.


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É autor de Areias Lunares
(à venda na Disqueria,
Av. Conselheiro Nébias
quase esquina com o Oceano Atlântico)
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

NO CAMINHO DE CAMUS, UM CAIÇARA ESTRANGEIRO (por Flávio Viegas Amoreira)



[Diário encontrado por um poeta desterrado no mítico porto de Santos a partir de garrafas náufragas desde Argel através do sentimento atlântico do mundo]

Camus no Brasil, a chegada recontada

[ junho 1949 - Passava-mos pela Linha do Equador, fujo para a proa, contemplo a lua e o Cruzeiro do Sul ]

´´Uma lua crescente sobe por cima dos mastros. Até perder de vista, na noite ainda não inteiramente densa, o mar, - e um sentimento de calma, uma poderosa melancolia sobem, então, das águas. Sempre apazigüei tudo no mar, e essa solidão infinita me faz bem por um momento, embora tenha a impressão de que este mar hoje esteja chorando todas as lágrimas do mundo.  As águas estão pouco iluminadas na superfície, mas sente-se sua escuridão profunda. O mar é assim, e é por isso que eu o amo. Chamado de vida e convite ‘a morte.]

[ 15 de julho -  ´´’As quatro da manhã, um estardalhaço no convés superior me desperta. Saio. Ainda está escuro. Mas a costa está muito próxima: serras negras e regulares, muito recortadas, mas os recortes são redondos- velhos perfis de uma das mais velhas terras do globo. Ao longe luzes. Seguimos o litoral, enquanto a noite clareia, a água mal estremece, fazemos uma grande manobra, e as luzes agora estão diante de nós, mas longínquas.
Volto para o camarote. Quanto torno a subir, já estamos na baía, imensa, um pouco fumegante no dia que nasce, com súbitas condensações de luz, que são as ilhas. A névoa desaparece rapidamente. E vemos as luzes do Rio correndo ao longo da costa, o Pão de Açúcar, com quatro luzes no seu topo.... A riqueza e a suntuosidade das cores que brincam sobre a baía, as montanhas e o céu, fazem calar a todos, uma vez mais.   Desembarcamos ainda no raiar do dia. O Brasil me parece um país alternando alegria e enfermidade. Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar. O contraste mais impressionante ao chegar ao Brasil é fornecido pela ostentação de luxo dos palácios e dos prédios modernos com as favelas. Nunca o luxo e a miséria me pareceram tão insolitamente mesclados. Cinicamente um jornalista comenta : ´´Aqui os pobres apesar de tudo se divertem´´ , ao que imagino o quanto não se divertem os ricos que os oprimem.  Saudado como um deus, um Proust nos trópicos, um exaltado poeta me revela: ´´ O Brasil precisa de sua paciência. Paciência, eis o que é preciso ter com o Brasil´´, nada mais acertado.]


DELOS
Poema oceânico de Apolo

[Fernando Caeiro]

´´Minha mesa ancora sobre navios plúmbeos nítidos verídicos pelo horizonte improvável
cortado pela esponjóide faca das águas

só o Mar é verdadeiro primal indiferenciado
qual nau de chumbo do universo

aqui estou diante o Mar cinzento específico de Santos
estuário que encorpa torce sacralizando as rotas por onde passam os anjos de marujos das viagens sem mais rumos
versa uma angústia de despedidas sombreadas pela conchas rosadas
maleáveis nesse solo lunático do Oceano fundo
estrelas decaídas
desalmados cacos das profundezas: alvorada percorres os sentidos espalhados das retinas lacrimosas de maresia do ontem longínquo
morrendo a foz nas areias recortadas de canais funestos
veios dorsais retribuindo pelo vento os excessos da ressaca das vértebras concavadas desse Oceano que descansa em cais de chegadas
remanso arrebatado / Mar sedentário sem garras
sal de noroeste quente como as estrelas de Bandeira!
Manuel amanhã nos servirão a chuva como alimento de outroras!
o Mar, Manuel! é o beco! insula ferruginosa beócia
ondem aportam Neruda / Borges / Bishop , demais americanos ressoam timbres e tambores do jazz da Louisiana!
e chegam de mim aos braços marejados ombros músculos membros que me encarnam da sensualidade de Tânger!  aparato pelo meu sexo dadivoso aos que navegaram até meu corpo transido de desejo , corpo barco
marejam .... Rimbaud vem ao largo, nada núbio abissínio:
malditos sejamos nós os desmedidos! malditos anjos dos antros genetianos!
nós /  léguas/ malhas, cardumes gongóricos milhas desfazem náutico górdio
terceira margem o Mar contêm? lajeado solto
banal pedaço do não-ser líquido das esferas decaídos ‘as ondas
meço recomeço pelo método poético dos vastos campos

sem-eira nem beira bradam os peixes agarrados a vida das redes :
tua ilha vale para os trópicos tanto quanto Helesponto
desapega da mente ‘a tábua das marés todos teus sonetos
que nem estacas te seguram ó ilha, ilha, ilha!
nem flor ou hora diáfana brote sem consentimento de teu poema leme
delineando as vagas : vagabumdemos pela praia como amantes dessa Rimini brasileira!

o verso lúbrico de plânctons relampeja trovoa!
companheiro franciscano: irmão onda / irmão cai / costeiro
fraterno onde desterram sujeitos superlativos
filamentos dunas predicados / nenhum objetivo direto sendo escrito de fonte permanente: só o Mar na verdade conhece do riscado


(estuárioemasculando interfaces glúteas imantando pássaros avarentos
falcões davincianos dúmida úmbria brasiliana / anatomia hidrográfica dessa maré transversa da toscana / gitanos ginetes de baleeiras cafetinando málagas salamancas: Santos tantos!
demiúrgicos tessituradigam! bafejem! barcos ébrios demiurgem!
corporificados aguaceiro caracteres corálicos sedimentados
nessa literatura que faz mofa da tristeza bizantina em verbos artesianos
montanha fatiadas em areai/ vazio regresso/ filamentos ajuntam gotas
é uma nuvem que passa e um navio que corta uma rua estreita
feito um cu de ondas intestinas )

qual a senha? Aleph: desenterraram um mistério no atracadouro de âmbar
viajando nauta qual a frase enunciada : (des)-propositivo
(des)-propositado: a bagagem que me pesa sai de quem me cansa.
Jogado derradeiro pescado/ exaurindo de Beleza
sigo a ronda vesperal  luminando de Apolo dourado brocado de galáxias
é o crepúsculo deitado com aurora dirão as brisas

quem sabe a paragem das águas?  nenhum acento fixo exaurido de netunos
até o deus nomeado por condicionante
tudo vaga para o recomeço de cronos pelas ondas

é para ter sido hoje o parto desses mares uterinos / para ter sido:
parábola istmo / hão ou não?  chega-se andando ao vão sem trilha do arcano elemento gênesis das coisas criadas
o poeta é como mar criador de espumas por encanto
oceano que metaforiza o absurdo que é o nado raso do instante
eterno adeus ainda que estrofes embarquem no papel em prantos :  letra por letra é o Oceano de Santos que reconta o paraíso terrestre : cardume por
berço do Atlântico.´´




Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).