Friday, May 31, 2019

POEMA EXPRESSO: PELA FRESTA NA JANELA (por Fábio Rossi)



Pela fresta da janela
Resta a luz, no rosto dela
Seu sorriso se amarela
A cidade se ilumina
Manhã triste que desperta
Nas mãos vazias e desertas
Olhos postos no horizonte

Tardes frias e cinzentas
Chuva chora sua ausência
A paisagem se transforma
A lua se afugenta
As palavras que me consomem
São no peito a sentença
A certeza que se morre

Noite, madrugada adentro
Seu perfume me consola
Quartos, sala um mundo imenso
Sem seu corpo, sua presença
A tristeza que me assola
É ver seu sorriso virar choro
O fechar de minha janela

Casas brancas e amarelas
Na paisagem pela janela
Um jardim verde e florido
Colorindo seu caminho
No olhar triste e sozinho
Nenhum aceno de adeus

Pela fresta da janela
Reza a luz
A ausência dela
Meu coração, então, se fecha
Pulso fraco, quase para
Varanda triste e deserta
Vara a noite, a luz de vela



Fábio Rossi é um cara admirável.
Santista radicado em São Paulo,
é dublê de advogado
e poeta de mão cheia.
Brinda constantemente seus amigos
com seus poemas disparados pelas Redes Sociais.
Poemas intensos e precisos,
de uma delicadeza singular,
que são a cara dele.



UM DIA CULTIVADO (para Walt Whitman, por Flavio Viegas Amoreira)



Vivemos um Tempo sem tempo ,  a pressa se impõe ‘a percepção,  o caos não criativo substitui a reflexão criadora,  a busca de um sucesso oco escraviza nosso cotidiano estéril.  ´´Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração´´ diz-nos Drummond : para onde vão todos na manhã que se esvai como se esvai o dia, o mês que corre, o ano que escoa nessa sensação de que tudo voa e nada se fica em nossas retinas tão cansadas de tanto e tudo?  Talvez só os poetas não se impõem essa correria doida porque os poetas são antenas da raça e precisam observar a atmosfera eterna por trás da paisagem barulhenta das cidades.  Os poetas são mantenedoras do encanto,  da fruição atemporal , das nesgas de infinito que ainda deitam raízes em nossos hábitos prosaicos,  o eterno que ainda teima colorir nossas pegadas por esse mundo já esgotando-se  por maus tratos .  É preciso alguns minutos para contemplação,  alguma pausa para saudade,  algum olhar para a lua cheia escondida pelo trânsito e os fios elétricos da noite sem silêncio de noite.  Se o crepúsculo não foi notado em seu esplendor de prece,  talvez na madrugada que se anuncia você sorva o vinho notando o dourado nas ondas.  Outro poeta,  Baudelaire, dizia com tristeza que a vida moderna nos roubara a ´aura´ :  a aura da distância, do brilho nos olhos,  da fantasia , das boas ilusões.  Assistir um filme numa matinê tranqüila , entrar numa exposição de Paul Klee ou Tarsila enquanto as bolsas de valores se esgoelam,  percorrer estantes numa recôndita livraria longe do bulício das multidões lá fora do teu recanto.  Quem se permite sossego, silêncio, encontro, afago, uma prosa com toda sua poesia? Na Roma antiga um outro poeta ( sempre nós os poetas ) , Horácio,  definiu um termo, um conceito delicioso: ´´Carpe Diem´´.  Sim! Pompéia, Herculano, as cidades romanas já provocavam stress para os padrões de patrícios e plebeus.  Cultive, curta, colha com sutil delicadeza o seu dia não de modo desenfreado de ´aproveitar ou saciar´ os sentidos . Cultivar é curtir com espírito,  não exigir demais da vida material e do consumo ,  procurar no casamento da alma com o mundo a comunhão perfeita através dos prazeres do instante.  Despojar-se das ansiedades vãs,  não prender-se a ambições que aprisionem num futuro improvável,  vivenciar o tempo que passa porque vivenciar é viver com noção do milagre perceptível.  Ouvir uma sonata de Mozart,  caminhar observando a variedade de árvores de tua terra,  vibrar no íntimo com um beija-flor inesperado no batente diante um pátio que remete a tua infância.  Uma coleção de epifanias suplicam tua atenção no teu tempo e o tempo é o teu dia. Esse mês a literatura celebra 200 anos de nascimento de mais um poeta que viveu conforme esse ´´Carpem Diem´´ : Walt Whitman.  Patriarca das artes norte-americanas e profeta do homem livre de preconceitos ,  Whitman cantou o amor fraterno, a generosidade radical entre os seres,  o louvor ao planeta e suas criaturas mais simples.  Ao lado de Thoreau e Emerson formou a trindade de ouro do pensamento libertário ocidental que iriam desaguar em Gandhi  e Mandela.  Em tempos de ódio ele pregava a liberdade e a mudança : ´´Me contradigo? Claro , eu contenho multidões! ´´  Quem muda de idéia afinal se recupera da intransigência, não tem compromisso com erro.  ´´Para cada minuto que você se aborrece, você perde sessenta segundos de felicidade´´ , esse conselho que Emerson aprendeu com Whitman vale por muitas vidas ! Saudo-te  Walt Whitman como fizeram Pessoa e Lorca!  Carpem Diem!





Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).



MUITO, MUITO DIFERENTE... E PARA PIOR! (por Marcelo Rayel Correggiari)



Cada país possui seu jeito: uns acertam mais, outros, bem menos.

Com o último dia de circulação do Expresso Popular nesta sexta, 31 de Maio de 2019, vi jornalistas e ex-empregados da casa lamentarem o fechamento do jornal.

O que, realmente, é lamentável mesmo que o "Expresso..." não seja mais um "modelo de negócio" pertinente.

Compreensível.

Vi algumas manifestações, aqui & acolá, sobre a efeméride de amanhã. Em alguns, o "... o Brasil encolhe...", em outras, "...o jornalismo está em crise...", nessa linha.

Algumas comparações com o tipo de jornalismo que se faz em outros lugares do planeta. Vira, mexe, cai na BBC como uma espécie de 'modelo a ser seguido'.

Opa! Por conta de uma amiga pessoal, a Srª Susan Lovell, "comissioner" da BBC Ulster (Irlanda do Norte), "... dessa empresa, eu conheço".

Começam, assim, "as jabuticabas", internacionalmente conhecidas como "delírio brasileiro".

Acreditem! Como o(a) brasileiro(a) "delira"... coisa de maluco!

Os municípios, no Reino Unido, são agrupados em 'county', um "condado". Por exemplo, se a Baixada Santista, com seu conjunto de cidades, recebesse uma classificação britânica, ela seria chamada, provavelmente de "County Down" (o "condado da baixada").

Um condado, lá, além de agrupar um conjunto de cidades, também é uma organização político-judiciária (uma espécie de divisão política do território com comarca judiciária). Sei, sei, sei... sei bem que é um troço difícil de explicar para o tipo de divisão territorial que há em nosso país.

Um conjunto de comarcas, lá, formam as regiões (Essex, Cumbria, Ulster, ...) que, bem mal comparando, seriam os nossos "estados" (São Paulo, Santa Catarina, Goiás, Bahia, ...).

Pois, vejam! A Srª Susan Lovell é "comissioner" de um desses "estados", o Ulster, se bem que, ultimamente, anda também trabalhando com a República da Irlanda (independente), ou seja, com toda a ilha da Irlanda.

O que é um(a) "comissioner"?

É a pessoa que tem a palavra final e a chave-do-cofre da empresa. Tudo o que você vê na TV e ouve nas rádios tem de ter o 'sim' desse(a) profissional. Tudo! Absolutamente tudo! Até a cotação do preço do papel higiênico da turma da reserva técnica e transporte da emissora tem de ter o 'sim' desse posto da empresa.

Tudo, gente! Tudo! Da qualidade do conteúdo à logística, tudo tem de ter o 'joinha' do(a) "comissioner".

Acima dos(as) "comissioners", o(a) presidente da BBC. Seria a única pessoa que 'breca' qualquer inconveniência de alguma(a) "comissioner". Tanto que as 'reuniões de cúpula' (presidente e "comissioners" das regiões) acontecem a cada quinzena, na sede, em Londres.

É, minha gente... 'cês num' têm ideia! É cada história...!

Aí, começam os 'delírios nacionais' de comparação (Brasil-sil-sil-sil-sil !!!). O primeiro, a BBC É UMA EMPRESA PÚBLICA! PERTENCE AO POVO DO REINO UNIDO! Aliás, um troço que não entra na cabeça dos compatriotas nem f... Compreensível: o máximo de TV pública que há no país são as 'TVs culturas' que são confundidas (com razão!) com TVs estatais (ou estaduais), mantidas por 'governos de estados' e, logo, a reboque do sabor político do(a) governador(a) de plantão.

Segundo: A TV NO REINO UNIDO É PAGA! TODAS! Mesmo que o sinal seja o tal "aberto", paga-se! Há uma taxa de pagamento anual mesmo que a TV que você assista seja de "sinal aberto".

A 'anuidade' é coletada e paga o funcionamento da BBC ao longo do ano.

Simples assim!

Não tem rainha, não tem primeiro(a)-ministro(a), nada disso! Recolhe-se o dinheiro do povo e se faz o conteúdo da emissora para o povo que financia, diretamente, essa emissora.

Uma ideia que não entra na cabeça dos compatriotas nem f...

Afinal, tudo aqui, no Brasil, é "feudo" de alguém: tem dono (como o caso do Expresso Popular). O modelo-de-negócio não anda bem, fecha-se 'a bagaça' e muda-se de ramo, se for o caso.

Aplica-se, no Brasil, o mesmo modelo de gerenciamento de negócio igualzinho às Capitanias Hereditárias, tanto para a 'coisa pública' quanto para a 'coisa privada'.

Pelo 'jeitão' da coisa, acho que nosso modelo anda meio falido, não?!

E tem gente que quer fazer a comparação...

... 'cês tão' em qual planeta, ou tomam qual remédio?!

Sem contar a avalanche de asneira que se produz no jornalismo brasileiro a respeito do Brexit. Aí, é de doer! "280% brasiliæ delirium".

O terceiro grande delírio jabuticabal: a última coisa que a BBC contrata é gente com bacharelado em comunicação social. Isso, para eles, pode ser 'veneno no sangue'. Susan Lovell é historiadora! Nunca estudou "jornalismo". Foi ser jornalista "na prática", lá dentro da maior e melhor emissora de rádio e TV do mundo.

Se você entrar na redação de uma BBC, certamente encontrará bacharéis em Letras, História, Geografia, Matemática, Física, Sociologia, Filosofia, Antropologia, Biologia, Química, Astronomia, menos "jornalista".

Nada mal para quem produz o conteúdo que produz, e tem a credibilidade que tem, não?! "Jornalismo", lá, para eles, pode ser um belíssimo sinal de "coisa de miopia".

Um belo conteúdo, afinal. Tão bom que aquelas coberturas jornalísticas e documentários ESPETACULARES que não podem ser passados na própria BBC são exibidos no famoso Channel 4, se eu não me engano uma associação de capital da BBC com a iTV.

O conteúdo do Channel 4 dá surra em qualquer um! Qualquer um! O jornal, a rádio e a TV brasileiros não conseguem sequer se aproximar da sola dos pés de um Channel 4.

Sei que os fatos são duríssimos! Mas... dados da vida!

Logo, não fiquem com medo da queda da obrigatoriedade do diploma de jornalismo para se fazer jornalismo: quem sabe, essa será nossa primeira grande oportunidade de se aproximar com o que há de melhor em termos de conteúdo ao redor do planeta.

Afinal, o "jornalista especialista", o que cursou o tal curso de comunicação social, pode não ter cultura, erudição, sequer bagagem, para um conteúdo que seja, de fato, relevante, coisa que a BBC dribla contratando o profissional de Letras, Literatura, Química, História, Geografia, ...

***

Lamento & lamentamos muito o fechamento do Expresso Popular, mesmo sabedores que, de repente, o negócio anda mais 'no vermelho' do que 'no azul'. Lamenta-se pelas famílias que não terão mais o seu sustento num país com já tantos desempregados. Sempre é bom uma região como a nossa ter bastantes jornais e emissoras de rádio e televisão. Nunca é bom começo o fechamento de um jornal. Lamenta-se pelo desaparecimento da memória afetiva pertencente aos(às) profissionais que por lá passaram, alguns fundadores do jornal. É uma perda irreparável! Contudo, acho que chegou também o momento de se questionar se realmente estamos com "essa bola toda". Na minha humilíssima opinião, situações como a do fechamento do "Expresso.." mostram bem que talvez estejamos na "Idade das Trevas", sem qualquer visão de como as coisas funcionam ao redor do planeta, de fato. O sumiço da erudição, da Cultura, do bom trato com o 'fazer artístico' e de uma educação que nos permita à civilização andam mexendo demais com a nossa mentalidade (que, de tão péssima, nos coloca na situação de realmente duvidarmos se temos uma!). Não, meus caros e minhas caras, não é somente uma questão de educação e cultura. É uma questão de mentalidade!

Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É autor de Areias Lunares
(à venda na Disqueria,
Av. Conselheiro Nébias
quase esquina com o Oceano Atlântico)
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

ONDE ANDARÁ ANA MARLOW? (por JR Fidalgo)



Estava lá, pichado na parede do velho armazém de café abandonado: “Eu te amo, Ana Marlow”.
Quem seria Ana Marlow, e quem estaria apaixonado por ela?
Será que Ana Marlow ainda estava viva? E quem pichou aquela frase na parede do armazém abandonado, ainda estaria vivo?
Ou será que Ana Marlow era apenas uma musa imaginária de algum vagabundo louco que vivia por aquelas ruas?
Impossível saber quem era Ana Marlow ou mesmo se ela existia. No entanto, era um nome bonito. “Ana Marlow, a rainha do gueto!”
Ele pensava essas bobagens quando resolveu fazer uma coisa que não fazia há muitos anos: sentar numa praça. E aquela era a principal praça da área central da cidade.
Como era hora do almoço, havia bastante gente circulando pela praça, a maioria, com certeza, pessoas que trabalhavam por ali.
Então ele começou a refletir sobre a função das praças nas cidades.
Concluiu que as praças eram lugares onde a gente sentava para não fazer absolutamente nada, ou apenas para ver as pessoas passarem, ou somente para pensar, como ele estava fazendo naquele momento.
Mas as praças também eram locais onde a gente ia para encontrar outras pessoas.
E em outros tempos, ele lembrou, as praças também serviam para as pessoas realizarem manifestações, a favor ou contra determinadas coisas.
Percebeu, então, que as praças, principalmente nas cidades maiores, estavam perdendo sua função, já que poucas pessoas as utilizavam para sentar e não fazer absolutamente nada, nem para ver as pessoas passarem, nem para pensar, nem para encontrar as outras pessoas, nem para se manifestarem a favor ou contra alguma coisa.
As praças estavam se transformando em simples locais de passagem ou em lugares onde se dava um tempo até a hora de voltar para o emprego, como acontecia naquela praça, onde ele agora estava sentado.
Mas que diabo queria dizer aquilo?
“Compreenda a influência do humano em tudo”.
A frase estava estampada na camiseta de um rapaz que passava pela praça acompanhado de uma garota. Nunca tinha visto nenhuma camiseta com aquilo escrito. Aliás, nunca tinha visto aquilo escrito em nenhum lugar.
“Compreenda a influência do humano em tudo”.
Se fosse a influência do divino, seria fácil de entender. A camiseta estaria quem sabe divulgando algum movimento religioso ou coisa parecida. Mas a influência do humano?
Quem estaria exaltando – ou criticando, o que também era possível – a influência do humano em tudo?
Saber essa resposta não era, com certeza, a preocupação do funkeiro que passava logo a seguir por ali, ouvindo um “proibidão” no seu celular.
O cara deu uma sentada num dos bancos, esperou o “proibidão” terminar, fechou o celular e saiu andando.
Doido por doido, ele se identificava mais com o sujeito que arrastava um saco de lixo preto de um lado pra outro da praça, reclamando em voz alta não se sabia do que nem pra quem.
Reparou, então, que apenas os doidos – e sempre havia vários deles nas praças – ainda davam a devida importância às praças das cidades, já que, em geral, faziam delas seus territórios de resistência e sobrevivência.
Se continuasse a elaborar teorias como aquela – e principalmente se começasse a acreditar nelas -, em breve acabaria transformando uma das praças da cidade no seu território de resistência e sobrevivência.
Portanto, resolveu levantar-se e continuar caminhando.
Já tinha refletido bastante sobre praças, vagabundos e loucos.
Era hora de cuidar da vida e isso significava ir a uma farmácia comprar os medicamentos que nos últimos tempos era obrigado a ingerir diariamente.
Estava fazendo seu pedido ao balconista da farmácia quando percebeu um vulto se aproximando à direita.
O homem insistia em que ele lhe desse um trocado. Ele disse que não tinha.
O homem continuou insistindo.
Ele, irritado com o assédio, repetiu em voz alta que não tinha trocado, “porra!”.
O homem finalmente se afastou.
Ele continuou pedindo os remédios, depois foi até o caixa e pagou.
Diabos, por que não dera um trocado ao sujeito?
Ele não tinha trocado mesmo, justificou-se.
Mas ele sabia que não era isso.
Ele sabia que não dera um trocado ao homem porque sempre se sentia acuado com aquele tipo de situação e sempre reagia de forma agressiva.
Saiu da farmácia e foi até a padaria da esquina tomar um café, ainda ruminando a sua atitude diante do pedinte da farmácia.
Enquanto tomava o café, percebeu o homem da farmácia se aproximando do caixa e depois do balcão.
“Uma pinga, já está paga”, disse ele ao copa, que rapidamente o serviu.
O homem entornou rapidamente o álcool na garganta, virou as costas e saiu da padaria.
O homem finalmente havia arrumado um trocado.
Ele acabou seu café e foi embora.
Em geral, pensou ele, as pessoas ficariam satisfeitas de terem negado uma esmola que se transformaria em cachaça no balcão mais próximo.
Ele, porém, continuava se culpando por não ter dado o trocado ao homem que o abordara na farmácia.
Ele sabia que aquele homem precisava desesperadamente matar a sua sede.
Contudo – e apesar de tudo -, ele tinha de continuar caminhando.
Então, quando se dirigia à livraria, cruzou com um colega dos tempos de faculdade, que fingiu não conhecê-lo.
Normalmente, ele agradeceria por aquilo, já que ele próprio vivia evitando cumprimentar pessoas com as quais não ia muito com a cara nas ruas.
No entanto, não sabia bem por que, naquele momento a atitude do ex-colega de faculdade o irritou, fazendo-o murmurar baixinho entre os dentes para o sujeito que passava: “Babaca de merda!”
Depois, lembrando dos ensinamentos da sua mãe e das reflexões do seu terapeuta, questionou-se se, por acaso, sua hostilidade contra o ex-colega de faculdade não era motivada pelo fato do sujeito ter se dado bem melhor na vida do que ele, no quesito dinheiro.
Mas logo chegou à conclusão de que não gostava de playboys, fossem eles ricos, pobres ou marcianos.
Aí perguntou a si mesmo: “E o que diabo vem a ser um playboy?”.
“Ora, você sabe muito bem do que estou falando”, respondeu, dando-se por satisfeito com a própria resposta.
Entrou na livraria e se tocou de que não fazia a mínima idéia do motivo que o levara até ali.
Ficou por um tempo observando os livros nas prateleiras e, de repente, chegou à conclusão de que definitivamente não gostaria de livrarias.
Então se perguntou por que diabos vivia entrando em livrarias e por que insistia em escrever livros. Afinal, onde ele imaginava que talvez seus livros um dia talvez pudessem ser vistos e comprados a não ser em livrarias?
Dessa vez não tinha nenhuma resposta satisfatória para suas próprias perguntas. Por isso continuou andando, agora em direção à praia.
Sentou-se num dos bancos próximos à areia, ajustou os fones do mp3 e ficou olhando o mar no meio da tarde de sol.
Sentiu-se um idiota ali, sentado naquela praia, naquele meio de tarde, com uma seqüência de músicas antigas dos Rolling Stones entrando, uma após outra, pelos buracos dos seus ouvidos.
Aos poucos, porém, começou a se sentir bem, muito bem mesmo.
Estava no local certo, na hora certa, fazendo a coisa certa.
Então, pensou: “Onde andará Ana Marlow?”


JR Fidalgo: um jornalista que tem preguiça de perguntar, um escritor que não tem saco pra escrever e um compositor que não sabe tocar. (mas que, mesmo assim, já escreveu três romances e uma quantidade considerável de canções ao longo dos últimos 45 anos)

A SOLIDÃO DO HOMEM FOFO #3 (por Germano Quaresma)


A SOLIDÃO DO HOMEM FOFO
Cap X

Volto aqui eu, o narrador, para uma breve reflexão:

O que quer o homem fofo? Filho espúrio de uma época de ocaso, protagonizada por tristes figuras qual Fernando Gabeira, o homem fofo surge como reação ao crepúsculo de um macho romântico, sadio e bondoso, que amava as mulheres sem alienar sua alma ao diabo. Na aurora de enxofre que sucedeu o arrebol do velho macho luziu este espécime execrável, descontextualizado (ele próprio se diz "desconstruido"), sem identidade nem opinião firme. Arroja-se a infâmias como comer saladinhas, cheirar a rolha do vinho e fazer observações sobre safra, acidez, oxidação, combina cores de roupa. Degradou-se, enfim, no afã de agradar a pauta feminista impositiva que matou seu antecessor. Pra não sucumbir, capitulou. Em vez de lutar, aliou-se ao dominador.

Mas, tal e qual o colonizador norte americano tem profundo desprezo pelo índio brazuca que o bajula, as mulheres nutrem pelo homem fofo verdadeiro nojo. Via de regra, quando na companhia de um alfa generoso, que as ame de fato, soem falar mal de um antigo companheiro fofo, a quem atribuem as piores infâmias.

Opinião igual não colhe o fofo entre seus pares homens. Tratam-no como a um traidor, um pelego, um pária, e isso por razões óbvias. Enfim, resta-lhe o isolamento, eis que também entre outros homens fofos não construiu algo como solidariedade, sororidade, etc. Triste arremedo de varão.

A SOLIDÃO DO HOMEM FOFO
Cap. XI

Prossigo eu, vosso humílimo narrador.

Pode-se compendiar todo o pensamento do século das luzes, o dezenove, e chegar--se-á à inequívoca conclusão de que o animal homem vive primordialmente para perpetuar sua espécie. Outra coisa não nos diz Darwin, e aqui me dispenso de explicação. Outra coisa não nos diz Marx, que atrás da ideologia de classe outra coisa não sugere que a multiplicação da classe operária para dominação do mundo. Outra coisa não nos diz Freud, que tudo reduz a sexo, e o sexo é motor da procriação. Ainda que ao pensamento do dezenove se viesse somar Nietzsche, este também não prega outra coisa que o surgimento de um novo homem. Ora, não há como surgir novo homem sem procriação.

O problema foi o pensamento do subsequente, o triste século vinte, que produziu Einstein, o relativizador que não trepava, e Sartre, o promíscuo que trepavaa desbragadamente, mas não para procriar. Do abismo existencial em que o século vinte nos lançou, com suas duas bombas atômicas, chegamos ao presente com esta excrescência que é tomada pelo novo homem nietzschiano: o fofo.

Nascido do espólio do proletariado lutador em cruza com a burguesia falida, o homem fofo tem uma compulsão mórbida por se reproduzir, coisa de que se deveria furtar. E para tanto, via de regra elege uma mulher que de fofa só tem a aparência: uma leoa autoritária que o humilha diuturnamente.

Mateos, o melhor correntista do Eros Fomento Fundos Calções etc, casou com a Sâmila, gerente de relacionamento, um casamento com direito a álbum, floricultura, madrinhas, festança e um padre a abençoar com palavras vagas que nada somavam à fé da assembleia. Do casamento falamos outro dia, hoje importa relatar, num salto temporal, que dois meses depois a menstruação da Sâmila não desceu. Os dois foram à farmácia, ela mijou num potinho e deu positivo. Este secular ritual humano, que nada de original contém, a parelha achou por bem documentar, partilhando na rede social desde a primeira suspeita, entre múltiplos emoticon hearts. Confirmada a prenhez da Sâmila, Mat não se pejou de postar uma foto de ambos, barrigas de fora, com o título:

GRÁVIDOS

Seguiam, à bizarrice de tal enunciado, três pontos de exclamação e um emoticon heart.

Bem, eu devia contar, e me olvidei, que a goma encontrada sobre o assento de Sâmila Sem Calçola não era, como julgou o grosseiro Kleber, resquício de amores noturnos. Ela ovulava ostensiva, fêmea em flor a pedir zangão que lhe adoçasse o mel. 🍯

Amanhã tem mais se Deus quiser

A SOLIDÃO DO HOMEM FOFO
capítulo XII

Acordo amargurado nesta manhã tardia de outono por escrever mais um capítulo deste bizarra história em que me meti, por buscar algum sentido à existência, hoje amargurada feito eu, este vosso humílimo narrador, que busca na rede virtual um lampejo de alegria, com a depressão a lhe fuçar o cangote diariamente (sicut Felicidade, Neuza, op. cit.). Eu próprio, vosso humílimo narrador, que me recusei terminantemente a abandonar a arena e virar a porra de um homem fofo, eu, que ainda professo um machismo sadio, um machismo moleque, um machismo arte etc. Buá. Retomemos a trama:

Fiz um avanço temporal pra mostrar que o casamento de Mateos, o Fofo, com Sâmila, a Imperatriz, redundará no nascimento de Raoni (assim se haverá de chamar o petiz), mas só daqui a muitos capítulos. Por ora, retomemos o recorte inicial, em que Sâmila, que tinha ido ao labor diário no banco, sem calcinhas, a pedido de Mateos, que as queria inalar ao longo do dia, fora ao toalete deixando sobre o assento de sua chaise-directeur uma poça de goma, que Kleber inopinadamente colheu na ponta dos dedos sendo interceptado por Getúlio. Os dois foram por fim interceptados por Sâmila.

Getúlio: "Que porra é essa?" (a substância nos dedos de Kleber)

Kleber: "É exatamente isso, Dr. Getúlio: porra."

Sâmila arroja um sonoro bofete na face esquerda de Kleber. Duas horas depois está na sala de Getúlio expondo que está em período fértil e que desgraçadamente ovulou sem reparar que havia lambuzado a cadeira, mas que não cabia ao escroto do Kleber (a esta altura já demitido por justa causa) e ameaçando processar banco gerente e o caralho a quatro.

Getúlio: "Por tudo o que vivemos um dia, querida. Não faça isso. Você sabe que eu não participei de nenhuma invasão à sua privacidade, e só te defendi dessa grosseria do idiota. Tanto que o demiti imediatamente."

Ela faz um muxoxo, enxuga uma lágrima no canto do olho direito e se aparta. Liga para Mateos.

"Vou chamar meu marido aqui. Ele que vai decidir."

A SOLIDÃO DO HOMEM FOFO
cap. XIII

As ruas do Soho, em London, ainda conservam qualquer charme, a despeito da degradação do bairro (sim, a história se passa em Londres - nota do tradutor). Kleber está num beco de Chinatown, a gravata slim esgarçada, nó frouxo, a camisa desfraldada pra fora das calças. Ele está sentado numa guia de sarjeta com uma garrafa de whiskey, pela metade, na mão esquerda. A mão direita tenta sustentar sua cabeça, que insiste em cair. Ele chora. Um casal de gays se aproxima, o mais sensível acocora-se e lhe acaricia os cabelos:

"Hey, man, o que houve? Quer um abraço?"

Kleber desaba num choro sentido e afunda o rosto no peitoral do jovem halterofilista. Duram 36 segundos suas lágrimas. Logo ele se recompõe e afasta seu salvador com um safanão.

"Bicha escrota do caralho."

Sai correndo, entra num beco, senta de novo e chora mais. Sente-se abandonado como nunca, ou como quando o pai saiu de casa, ou como quando Sâmila começou a sair com o Getúlio lá no banco, ou, lembrando de banco, como quando perdeu seu emprego, o que, aliás, acabou de acontecer. Mais choro convulsivo.

Ainda ontem, depois do esporro que Sâmila deu no gracioso gerente getúlio, o generoso - 4g - chegou no banco Mateos, titular de uma das melhores contas da carteira de pessoas jurídicas, ameaçando tocar o puteiro e processar por danos morais causados à sua senhora, além de, óbvio, encerrar a conta. Panos quentes e contemporização, afinal ela pretende seguir carreira na instituição, e Getúlio vê muito potencial na Gerente de Relacionamento, e já que o pivô da quizília está fora do banco, e por causa justa, sigamos. De noite, na cama:

"Foi machista e babaca a sua atitude de me obrigar a ir trabalhar sem calcinha. E eu, por causa da opressão secular que está introjetada na gente, me permiti. Nunca mais vou fazer isso. Olha a merda que deu, vazou tudo, fiquei exposta. De hoje em diante você só vai usar cueca se eu deixar e... (blergh) " - ela vomita.

"Meu amor, você está bem?"

"Um enjoo. Acho que vamos ficar grávidos."

Os olhos de Mateos brilham.


Wikipedia: The Softman's Solitude é uma série de TV norteamericana inicialmente exibida pela Endemol em EUA e vários países da Europa. Nela são contadas as aventuras de um narrador sem nome, que se suspeita ser uma projeção egoica do autor Harrison Chains. Há correspondências entre a trama e a vida pessoal do autor, que jura ser tudo ficção. No Brasil, a QuaresmaFlix comprou os dreitos de exibição da série e vem publicando capítulos assiduamente. Aqui a obra recebeu o título A Solidão do Homem Fofo, e tem tradução do renomado anglicista Manoel Herzog. Não perdam!


Germano Quaresma, ou Manoel Herzog,
nasceu em Santos, São Paulo, em 1964.
Criado na cidade de Cubatão,
trabalhou na indústria química
e formou-se em Direito.
Estreou na literatura em 1987
com os poemas de Brincadeira Surrealista.
É autor dos romances
A Jaca do Cemitério É Mais Doce (2017),
Dec(ad)ência (2016), O Evangelista (2015)
e Companhia Brasileira de Alquimia (2013),
além dos livros de poemas
6 Sonetos D’amor em Branco e Preto (2016)
e A Comédia de Alissia Bloom (2014).

Este é seu novo trabalho, recém lançado: